A maquiagem escura escorria por sua face. O batom vermelho estava todo borrado no canto esquerdo de seus lábios, indo até a bochecha. Os olhos, da mesma cor que o cosmético que pintava sua boca, encaravam-na pelo espelho: pele pálida, um tanto amarelada por causa dos maus cuidados; rosto tão fino quanto o restante de seu corpo alongado e sofridamente mantido naquele padrão considerado perfeito pela sociedade.
Uma modelo. Uma belíssima modelo. Reconhecida no mundo todo, invejada por outras mulheres e, eventualmente, por alguns homens. Não importava a roupa minúscula e apertada que a davam para usar em seus ensaios e desfiles. Ela usava. Usava com maestria e superioridade, mantendo sempre o sorriso magnífico.
Nada estragava seu show. E era por isso que seu nome vagava pelas bocas das pessoas do mundo todo. Por tal motivo, todos a chamavam de rainha da beleza. Sim, de fato. Ela era um rainha. A rainha do mundo. O que ela ditava, o que ela usava... As pessoas seguiam. Um ícone pop fashion.
Lembrou-se de um vídeo que viu pelo YouTube: a garotinha não deveria ter mais que dez anos. Já estava desfilando pelo corredor de sua casa, usando um salto tão alto que mal conseguia manter-se em pé. Seus cabelos estavam cacheados e com as pontas loiras, provavelmente ação de produtos químicos de um salão de beleza e suas eram tão apertadas que pareciam sufoca-la.
“Quero ser como você quando crescer”, foi o que ela disse no começo da filmagem. E, então, passou a desfilar, tentando equilibrar-se nas sandálias altas e manter um gingado na cintura, como se rebolasse enquanto andava.
Rainha da beleza. Isso o que eu sou. E sempre serei. Perfeita. Superior a quaisquer um no quesito fashionista. Ninguém é melhor que eu. Eu sou a Rainha. EU SOU A RAINHA.
Num ato de extrema ira, ela socou o espelho. Vários cacos voaram por todos os lados. Alguns, acertaram-na no rosto, fazendo filetes de sangue escorrerem. Sua mão tremia e doía, mas ela não se importava. Rainhas não se importam com isso ou... Se importam...?
Trêmula, ela abaixou o olhar e passou a observar o sangue que escorria por seus dedos. Escarlate. Da cor de seu batom... Sua pigmentação preferida. Combinava com qualquer coisa e em qualquer ocasião.
Eu sou a rainha...
Seu corpo magro tombou para o lado. A visão tornara-se completamente borrada e sua audição parecia um rádio completamente desregulado. Contudo, conseguira ouvir um grito e pares de sapatos passarem por seus olhos.
E então, nada. Apenas o vazio.
Eu sou a rainha... Eu sou a rainha... Eu sou a rainha...
...
...
...
...
...
Eu sou um nada.
Uma semana depois.
As luzes dos holofotes estavam focados na bela dama vestida de verde. A cor da esperança. Os cabelos estavam soltos, naturais, caindo por sua silhueta já mais definida. Em uma semana, conseguira engordar cinco quilos e já notara uma mudança considerável.
Seu nome fora chamado e ela avançou delicadamente até o microfone.
– Senhorita Singer. Primeira pergunta. O que você espera de sua vida agora? – Questionou um homem perfeitamente arrumado para um show de beleza.
A garota olhou para frente, vendo seu público. Noventa por cento seguravam cartazes acima de suas cabeças, elogiando-a e chamando-a de rainha.
– O que espero da minha vida...? Certo, essa é uma boa pergunta. – Ela sorriu tristemente, olhando para o chão como se fosse uma garotinha indefesa.
As lágrimas invadiram seus olhos e ela estremeceu. Lentamente, abraçou a si própria. Precisava sentir-se um pouco segura.
Eu não sou a rainha.
Levantou a cabeça no mesmo instante em que um flashback atravessava sua mente. Sentiu vergonha de si mesma, além de raiva. Quantas pessoas não estava sofrendo por sua causa? Para serem como ela: uma aberração moldada pela mídia e pela sociedade?
– Sinceramente? – Ela continuou. – Eu tenho olhos, agora, para o meu futuro. Obviamente. Porém, não trilhando esse caminho obscuro que ditavam para mim. Eu quero saúde. Eu quero ser livre. O que eu espero da minha vida? Duas palavrinhas: paz e felicidade.
Então, a coroa que usava foi-se para o chão, a gloriosa fita escrita RAINHA DO MUNDO fora rasgada ao meio. A moça, então, olhou para seu público.
– Quem precisa de uma cirurgia plástica é a nossa alma, não os nossos corpos.
Dito isso, a garota saiu do palco, deixando seu passado para trás. Para sempre.
Eu não sou a rainha do mundo. Eu não sou um nada. Eu sou um ser humano qualquer, assim como todos os outros. Um ser humano que acabou decaindo e se entregando para os padrões doentios da nossa atual sociedade. Eu sou um ser humano que acabara de abrir os olhos.
Eu sou quem eu quiser ser, mas nunca mais serei moldada para satisfazer a ditadura da beleza.