Nos conhecemos no ensino médio, naquele colégio podre — de alma —, num dia qualquer da semana. Eu estava na cantina, na área coberta, com todos eles, todos os meus únicos dois amigos e mais todos os nossos agregados. Começo dizendo ao leitor que nós — eu, Paulo e Daniel — não tínhamos prestígio algum naquele colégio e, portanto, ninguém falava conosco, ninguém nos queria por perto. Ao menos as pessoas da nossa classe. A escola é difícil para quem não se encaixa, e apenas quem sempre pertenceu sente falta de ser adolescente. Nós, para eles e para os outros, éramos indignos de respeito e de empatia; éramos podres de corpo. Três garotos podres na turma do terceiro ano do colégio podre de alma. Parecem poéticos todos esses retoques, porém nossa podridão era apenas repulsiva antes de ser revolucionária ou desafiadoramente paralela ao ambiente que nos oprimia. Eu, Paulo e Daniel apodrecíamos juntos, aos poucos, à medida que as ideias de rebelião nos tomavam pelos gorgomilos e nos gritava para que saíssemos da missa, da sala, da aula, indo embora ao som do cantar das borrachas dos tênis nossa liberdade barata. A tirania nos indignava. Nos tirava a dignidade. Por isso, levantávamos. Os outros ao nosso redor nos odiavam, e não sei dizer ao leitor o motivo certo. O ódio adolescente pelo outro de sua espécie geralmente não tem raízes, mas isso não significa que eu não os culpe pelo que nos fizeram. Nossa vida naquela escola foi miserável do início do ensino médio até o fim dele. Quando ela apareceu, entretanto, as coisas mudaram para mim.
Se, de um lado, havia alunos que nos odiavam, do outro, havia aqueles que gostavam de nós. Os que nos empurravam pelos corredores e colocavam os pés para que tropeçássemos nas escadas eram da nossa classe. Os que nos cercavam na cantina para nos ver jogar Magic e nos chamavam para uma partida de taco eram de turmas mais novas. Os mais novos nos viam com admiração, pois éramos como os rebeldes dos filmes americanos que chutam lixeiras e picham banheiros. Nós três éramos os caubóis fora-da-lei. Éramos, ao invés disso, vândalos blasfemos, tristes, maltratados e irremediavelmente deprimidos, revolucionários implacáveis com medo de viver como os pais e os avós e os bisavós e todos antes deles. Vivíamos sabendo que lá fora, na vida adulta, seria como ali dentro. Nenhum dos mundos — a escola ou o que há atrás dos muros — é para nós, os rejeitados, os renegados, os podres. Não existe lugar para caubóis ou para foras-da-lei ou para rebeldes que chutam lixeiras além da fantasia.
Estávamos comendo na hora do intervalo. Nós três esperávamos na cantina por nossos pupilos, como chamávamos os alunos menores — pois eles visivelmente se inspiravam em nós para seguir em frente. Nos viam como fortes por aguentar tudo aquilo. Eu ria. Paulo dava de ombros. Daniel ficava bravo. Todos concordávamos no fim. Hoje, entendo a confusão. Nenhum de nós concordou em ser forte, apenas precisávamos ser para sobreviver.
Kevin trazia o deque dele, Hugo o dele, Mário Sérgio o dele. Eu tinha um, Daniel tinha vários, Paulo não tinha nenhum. Jogávamos revezando, às vezes trocando deques, cartas. Ela apareceu num dia assim, comum, e sentou com as amigas para conversar conosco. Ouvíamos Hate The Living, Love The Dead dos Misfits no celular do Daniel quando ela entrou na conversa. Como sempre, estávamos acabados, mas nenhuma delas foi embora. Disseram que eram da turma do Hugo e que queriam ver o que nós estávamos jogando. Daniel explicou, Paulo fez uma piada, eu não falei nada.
Eu havia sido o primeiro de nós a cair para a depressão, mal comia, mal dormia, mal pensava, mal existia. Tomava banho quando me lembrava. Pensava mais nas larvas dentro do meu corpo — podre — do que em morrer. Eu estava além da morte. A vi de perto. Olhei nos olhos dela. Conversei com ela. A ouvi assobiar. Contudo, a bicicleta que eu tinha minha mãe vendeu, e não me restavam forças para ir até a rodovia esperar que um caminhão me levasse pela estrada. Foi nessa situação que conheci ela.
Se chamava Maria Vitória, era do primeiro ano, magra, meio durona, dentuça, pouco chamativa positivamente. Gostava de usar a regata da escola, praticava esportes, cruzava o braço na hora de falar e me ameaçava com golpes de luta. Nunca gostaria dela se a visse de relance, porém nossos relances foram tantos que me acostumei com suas feições, com sua voz, com seu jeito, e comecei a ver algo nela que me fez sentir. Sentir, simplesmente. A palavra sozinha.
Eu estava amortecido de tanto que doía estar vivo. Era agonizante não sentir. Com ela, senti. Um dia, veio a vontade de ir à escola. Outros para frente, de me levantar cedo. Mais alguns adiante, de ir à cantina. Eu e meu corpo podre — ela conversava conosco. Ela nos via, eu e meu eu apodrecido, como algo digno. Eu não era repulsivo ou detestável para ela, e, nesses dias em que consegui sentir, percebi que não o fui para mim também. Não se engane, leitor. Ela não me curou, assim como o tempo também não. Há certas feridas que ele não cura, mas supura e gangrena. As minhas eu costurei com as larvas dentro, para morrerem de fome ou explodirem de tanto comerem — ainda as sinto tentando roer meu couro duro e cheio de queloides. Continuemos: ela me fez bem.
Éramos amigos, mas não sei em que sentido da palavra. Próximos, sim. Nossas mãos estavam sempre juntas, medindo tamanho ou só conversando entre si, apertadas umas nas outras. Nunca nos abraçamos, porém. Ela sabia que eu me sentia nojento — podre — e não questionava minha escolha. Eu não questionava a dela de não falar sobre si.
Caminhamos pelos meses — continuando, sempre. O pai dela não me deixou ir no aniversário dela. Não deixou nem chamar. Ele não gostava de mim, nenhuma novidade. Ninguém gostava, nem eu mesmo. Eu aceitei não ir. E o que mais faria? Espernear na frente dela, implorando por um convite? Ficaria dividido entre ir e não ir, como se define naquela cena daquele livro conhecido — essa aí. Ela pareceu constrangida em me falar isso, e eu entendi, balancei a cabeça, desejei feliz aniversário. Vi as fotos do encontro — da festa — em questão no dia seguinte e fiquei com isso na cabeça. O pai dela não queria que eu fosse, pois bem, não fui. Continuemos.
Não sei o que houve nesse entremeio. É uma memória estranha e cortada. Talvez eu lembre mais para frente, talvez nunca me recorde. Ao longo da vida, me senti roubado, e esse sentimento é tão familiar que não vale a pena mencioná-lo a uma altura que eu sequer queria ter pertences e tampouco pertencer. Eu queria sumir nessa época, simplesmente. Continuava, porém. Continuava. Continuo, ainda.
Dado momento, ela passou na prova de um Instituto Federal, um feito para a época em que todo mundo buscava ensino técnico na minha cidade — e, sendo gratuito, era um passe para um ótimo futuro. Ela ficou na lista de espera antes disso e falou comigo que talvez ela passasse para lá e teria de sair do colégio caso acontecesse. Ela queria que acontecesse. Eu, não. Não queria que ela passasse, pois assim me veria sozinho — solitário — de novo e perderia tudo. Seria roubado, como sempre acontece e aconteceu. Não se pode ter nada bom, que alegra, que faz sorrir, porque a vida dá um jeito de tirar de nós. Vivemos para ser órfãos eternos e contínuos de família, de amigos, de amor, de bichos, de coisas. Não se pode ter nada bom. O melhor sempre acaba primeiro. E o que aconteceu depois, perto do segundo semestre, julgo em maio, foi o previsível para uma história dessas.
Ela passou.
Era longe, mas ela foi.
Precisava começar o ensino médio de novo, mas ela foi.
Precisava largar tudo, e ela foi.
E eu fiquei para trás, devastado.
Não se engane, eu melhorei. Levantei e saí andando sangrando, apodrecendo. Fiz uma viagem aos Bálcãs no mesmo mês. Ia comprar para ela algo de Bucareste. Talvez um broche da Moldávia ou uma caixa de manjar turco. Todavia, quando a encontraria não era uma pergunta que cabia na minha cabeça. Voltei ao Brasil para buscar meus poucos pertences e parti de volta para a Europa.
A faculdade fiz em Terras Brasilis e, em meu primeiro ano, regressei ao buraco do inferno para uma festa junina. O chamativo: ela estaria lá. Eu soube por um amigo, o Daniel, que não sabia de nada nosso — um nosso muito mais meu do que dela — e avisou despretensiosamente. Despretensiosamente, então, fui até lá e vi. Ela estava lá. Conversamos, mas não foi como antes. Mesmo assim, não me importei. Ela estava lá, de jaqueta, pois estava frio, em cima da mureta, rindo com um copo na mão e vários anéis nos dedos. Ainda cruzava os braços para falar, ainda ria aquele sorriso dentuço, ainda me acertava socos no ombro. Não sei falar da noite, porque não a vi passar, ou das pessoas, ou da música. Sei o que estava na minha frente — ela e tudo o que eu queria para o resto da minha vida.
Andávamos juntos pelo pátio, rindo, comendo, falando com os professores, como foi minha formatura lá fora, como foi o primeiro ano de faculdade, como foi aprender romeno, como foi morar na capital. Ela me disse que repetiu de ano, que estudava cunicultura, que precisou sair e deixar para trás os coelhos, porque não se pode reprovar naquele modelo. Talvez ela estivesse triste, mas naquela noite, naquela festa junina, ela estava feliz. Ela segurou a minha mão com a dela — ambas geladas — e apertou como fazia quando estávamos no recreio. Deu a hora de ir, e trocamos telefones, e eu fui até o portão com ela. Conversamos mais, os dois de braços cruzados, eu sorrindo com o rosto inteiro, ela apoiada na grade como se fosse uma mesa da cantina. Ela foi embora antes. Eu fiquei. De extasiado, fui a triste. A vi ir embora no estacionamento e acenei. Ela acenou de volta e desceu a rua. Devastado, me apoiei no muro, sozinho.
Daniel veio falar comigo. Disse que percebeu algo, e eu neguei até a morte — não sei se era para mim ou para ele; falou que ela parecia gostar de mim e que parecia me querer. Eu neguei, claro. Deu a minha hora de ir. Quando estava saindo pelo portão, disse a ele tudo o que diria para ela se ainda a visse na minha frente, rindo com todos os dentes, me acertando socos no braço e esmagando meus dedos. Fui embora rindo, olhando para a noite pela primeira vez: sorridente, cheia de estrelas, mas gargalhando do meu fracasso.
Trocamos algumas mensagens depois disso, pois Daniel não soube — não sabia e não sabe — calar a boca e contou para ela tudo o que eu disse. Contudo, nossas mensagens não foram a lugar algum. Contornamos o assunto, que morreu dias depois. Entre nós restou o silêncio. Nunca mais voltei para lá, assim como nunca mais falei com ela. Entretanto, ainda lembro de quando estava no ônibus, à noite, escutando Saturday Night dos Misfits enquanto lia a voz dela.
— E você ainda pensa nisso? — Ele pousou o manuscrito na mesa.
— O que você acha?
Sua risada preencheu o quarto.
— Ela lembra de você, será?
— Não — disparei.
— Como você sabe?
— Só tem eu aqui.