Cecília estava insatisfeita
Gans
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 06/11/23 23:12
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 51min a 68min
Apreciadores: 2
Comentários: 1
Total de Visualizações: 664
Usuários que Visualizaram: 7
Palavras: 8190
Este texto foi escrito para o concurso "Concurso de Halloween — Terror Surreal" O Concurso Terror Surreal convida os participantes a utilizarem do surrealismo para criarem obras de terror para esse Halloween de 2023. Ver mais sobre o concurso!
Não recomendado para menores de dezoito anos
Notas de Cabeçalho

Olá, como vão?

Estou muito satisfeito de conseguir participar do concurso de terror surreal. Assim que vi essa tema no fórum, eu sabia que tinha que escrever algo, sabia que tinha que colocar uma ideia antiga em prática e depois de um mês de muita procrastinação, finalmente terminei de escrever o texto. Estou bem satisfeito com o resultado e curioso com as interpretações que ele terá.

Sobre o texto em si, ele surgiu inspirado no poema da Cecília Meireles (e daí o nome da personagem principal), Mulher ao Espelho. A primeira vez que li esse poema eu estava estudando para o ENEM e o vestibular e lembro que entre as centenas de textos, constos e poemas que li naquele ano, esse foi o que mais me marcou. Tinha algo de misterioso e sinistro nele, a forma como as palavras foram conduzidas e a forma como o desfecho ocorre, tudo muito bem pensado nas inquietações e inseguranças transmitidas pelas palavras. Espero ter captado tanto a essência desse poema quanto a proposta do concurso.

Capítulo Único Cecília estava insatisfeita

Cecília estava insatisfeita. Ela não sabia com o que, ou melhor, não sabia por onde começar a estar insatisfeita. Talvez ela começasse com o fato da vida ser tão desconfortável, com o fato de todos os pequenos desconfortos diários se unirem para fazer ela ter vontade de se arrastar e desaparecer em algum canto onde a luz não chega. Talvez começasse com coisas menores, como por exemplo, não ser magra o suficiente, não ser bonita o suficiente, seu cabelo não ser sedoso o suficiente, sua pele não ser lisa o suficiente ou seus dentes não serem tão brancos como deveriam e nem tão retos como ela gostaria, talvez, ela pudesse começar sendo insatisfeita com o trabalho não tão bom, com as pessoas não tão boas em seu círculo social. Cecília estava indecisa, simplesmente não sabia com o que estaria insatisfeita naquele dia e nos resto dos seus dias na terra e isso a deixava insatisfeitamente frustrada.

Todas as manhãs quando acordava, Cecília se olhava no espelho na frente de sua cama. Era um espelho alto que subia até o teto partindo do chão, com uma moldura dourada e cheia de detalhes esculpidos, um daqueles móveis antigos e cheios de história que ela amava colecionar, viajantes de uma época em que o mundo tinha mais beleza e durabilidade e que seu estilo de vida não seria destruído pela próxima catástrofe ambiental iminente. Um outro fato interessante sobre Cecília é que ela pensava demais, sobre tudo e ao mesmo tempo, dessa forma, é por isso que seu pensamento sobre a beleza do espelho acabou em uma linha de raciocínio não relacionada.

Enfim, todas as manhãs quando acordava, Cecília se olhava no espelho na frente de sua cama e o espelho a encarava de volta, mostrando todas as pequenas imperfeições que ela tentava esconder sob uma máscara lisa, sóbria, limpa e elegante, adornada de belas cores e mentiras brilhantes, mas, bem no fundo, ela sabia que um olhar mais cuidadoso traria sua ruína. Todos descobririam que ela era uma fraude, que não era tão boa quanto parece, nem tão inteligente, nem tão legal, nem tão bonita. Um olhar mais atento revelaria todas as pequenas e micro rachaduras em sua máscara de perfeição, nas frestas dessas rachaduras, abaixo da superfície, todos os seus demônios, suas verdadeiras cores e verdades omitidas, mudadas e pintadas em uma fachada mais agradável estariam expostas a todos os tipos de olhares. E quanto mais Cecília tentava esconder, mais as rachaduras ficavam evidentes no espelho, nas telas azuladas do celular e nos algoritmos que formavam suas fotos enterradas em efeitos para aperfeiçoar a própria imagem. Assim, ninguém veria os ângulos arredondados, as cores desbotadas, a aspereza da pele, o cansaço no olhar. O espelho saberia, mas a quem ele contaria afinal? É apenas um espelho ridiculamente grande com uma moldura bonita.

Todas as manhãs quando acordava, Cecília se arrumava na frente do espelho, encarando e escondendo, tudo que não considerava bonito o suficiente. Bem no fundo, ela sabia que nada nunca seria o suficiente, que mesmo quando achasse que estava perfeita, sempre acharia uma falha ao olhar de perto. E ser uma fraude para os outros além dela era inaceitável. E o espelho a encarava, incapaz de comunicar que tudo aquilo só existia na cabeça dela, e o espelho encarava, com uma frieza vítrea e polida. Cecília enterrava todos os aspectos desagradáveis para ela bem no fundo, agindo como se tudo estivesse bem. Como se tudo fosse ficar bem. Mas nunca estava, pois para atingir o que ela considerava bom, todos os aspectos de sua vida deveriam estar impecáveis. E nunca estavam.

Para fugir do peso da própria cobrança, ela ocupava o tempo com coisas que não necessariamente gostava, mas era bom o suficiente para que ela não entrasse em uma espiral por causa disso. Um trabalho que ela não amava, mas também não odiava e era suportável, pagava bem, homens que não beijavam tão bem, mas pelo menos cumpriam o serviço (algumas vezes), compras que ela não precisava, mas que a deixarão mais bonita, fotos milimetricamente calculadas para o feed das redes sociais, um personalidade gentil para que todos lembrem dela como ‘’uma ótima pessoa’’, afinal, como mais ela poderia ser lembrada senão assim?

O futuro era algo que apavorava Cecília, justamente por ser uma das poucas coisas que ela não conseguia controlar. A passagem do tempo, o envelhecimento, os erros e seus defeitos se acumulando com a passagem dos anos. Era tudo incerto, e isso a deixava profundamente inquieta, assim como a possibilidade de acabar completamente sozinha, esquecida e infeliz por consequência das próprias escolhas. Algumas vezes, Cecília simplesmente desabava chorando com a passagem do tempo. Sozinha, contida e em casa, claro, assim ninguém poderia ver o quão patética ela realmente era.

A verdade é que às vezes Cecília achava que entendia as ações de Sylvia Plath, se é que me entendem, e também entendia o trecho famoso sobre a vida se ramificar como uma figueira, mas Cecília não achava as figueiras bonitas o suficiente, por isso, ela gostava de pensar que sua vida era uma roseira. Delicada e dolorosa, bela e ainda assim complicada. Cada botão de rosa na roseira de sua vida representava um ponto que ela brilharia se fosse humanamente possível cumprir todas as suas próprias expectativas e cada pétala representava uma área onde ela se sentia falhando todas as manhãs quando acordava. Sua busca pela perfeição formavam lindas flores adornadas por pétalas de fracasso, ela só precisava deixar tudo exuberante e dolorosamente bonito para que ninguém percebesse os espinhos manchados de sangue e as pétalas umedecidas com lágrimas. E no final, tudo seria lindo, brilhando sob o luar. Seja como for, ela seria bela, mesmo que tenha que despedaçar tudo por isso.

Parte da insatisfação de Cecília vinha do fato que quando mais ela tentava esconder e fazer com que tudo ficasse bem, mais as luzes dos holofotes imaginários jogavam luz sobre as pequenas imperfeições intrincadas no cerne do seu ser. Era inaceitável. Absolutamente.

À noite, quando ela voltava exausta para casa e encarava o espelho, ela se perguntava se passou o dia inteiro com aquele rosto abatido e caído e ninguém teve a gentileza de avisá-la. À noite, ela tinha vontade de quebrar aquele espelho em milhões de pedaços e deitar em uma cama de vidro até desaparecer desse mundo, fragmentada em todos os cacos do espelho. Mas nunca o fazia, seria cansativo e o espelho era lindo demais.

Em algumas noites, quando ficava acordada repassando mentalmente todos os anos de sua existência com ênfase nas pequenas gafes mundanas e gritava com o rosto abafado no travesseiro, ela podia jurar que a silhueta refletida no espelho no escuro da madruga se movia de maneira diferente dela, esperando o momento certo para se pronunciar. E o pior, era uma pessoa mais bonita, Cecília sabia que sim simplesmente pelos ângulos mais afiados e harmônicos na silhueta.

No dia seguinte, no entanto, era apenas ela. Feia, derrotada e estúpida como seus pensamentos insistiam em gritar em seus ouvidos para que ela parasse de ser, supostamente, uma preguiçosa desperdiçando o talento fraudulento em uma vida medíocre. Eles diziam que ela poderia ser mais e ela sabia que ela também poderia ser mais se tentasse. E talvez assim, com um pouco de sorte, alguém teria pena e ela não morreria sozinha, afogada nas possibilidades do que poderia ter sido.

Os dias começavam e terminavam, mas o espelho nunca dizia nada, estivesse Cecília deslumbrante, desarrumada, acompanhada ou não. Na maioria dos dias não estava. O espelho, em sua indiferença vítrea mencionada anteriormente, só mostrava o que era real. Até não ser.

Certa noite, Cecília estava insatisfeita de novo e, principalmente entediada, depois de ter uma recaída e voltar a conversar com uma pessoa que a fazia se sentir o serzinho patético que ela achava que era, desviou o olhar do espelho, encarando o teto até que todas as vozes e imagens em sua cabeça se acalmassem e ela escapasse do turbilhão. Cansado de apenas refletir, o espelho decidiu ser mais do que um mero expectador.

Certa noite, Cecília despertou. Mas não realmente, ela soube que estava num sonho assim que o espelho se iluminou e preencheu o quarto com uma luz dourada antes de começar a transmitir em sua superfície os desejos mais profundos e íntimos dela, como uma televisão e assim ela sentou na cama, fascinada pela beleza da mulher ao espelho. Do outro lado do espelho, uma cena começava. A quantidade certa de luz entrava no apartamento dela, os cômodos eram alguns metros maiores, os móveis planejados, polidos e novos, um homem igualmente planejado, polido e bonito deitado seminu na cama dela enquanto uma Cecília mais feliz, realizada, magra, alta, de postura e pele perfeita sem o uso de maquiagem ou efeitos se olhava na frente do espelho. Primeiro olhava para nenhum lugar específico e logo em seguida passou a olhar diretamente para o fundo da Cecília sentada na cama, os olhos profundos, gentis e indiferentes, captando tudo como um vórtice girando graciosamente abaixo da superfície dos globos oculares. A sensação era encarar os olhos de uma boneca, lindos e vazios.

A nova Cecília sorria com um batom vermelho destacando o branco de seus dentes clareados e levemente mais alinhados que os da Cecília da vida real. Ela usava roupas de luxo, sapatos, bolsas e jóias de grife, tudo adornando perfeitamente o corpo ideal que ela sempre quis — ou foi influenciada por terceiros a ter. Dinheiro não era problema, ela não era um problema, até as cores estavam exatamente do jeito que ela sempre quis.

‘’Gostou? Eu sabia que sim, eu tenho bom gosto, logo, você tem bom gosto’’, a mulher ao espelho começou falando, como se estivesse conversando com o próprio reflexo do lado dela. Ela sorriu e quando não obteve resposta, continuou: ‘’O que foi? Não acha que está tudo perfeito agora? É com você que estou falando, Cecília, não é educado deixar alguém falando sozinha. Ah, desculpe pelo…hum, o nome dele não importa. Pelo menos é bonito, não?’’

Cecília olhou em volta procurando alguma versão onírica dela que talvez estivesse no mesmo ambiente, mas nada achou. Seu olhar retornou para o reflexo falante que a encarava.

‘’Desculpe, você está falando comigo?’’, Cecília perguntou apontando para si e repentinamente se viu ajustando a postura e arrumando o cabelo. Até em sonhos ela tinha medo dos julgamentos e olhares.

‘’Sim, com quem mais? A única pessoa que pode entender você melhor do que ninguém é você mesma. Eu. Eu sou tudo aquilo que você está destinada a ser.’’

‘’Você…é meu futuro?’’

‘’Futuro? Não, não acho que esse conceito existe aqui. Sou o seu presente.’’

‘’Meu presente?’’

‘’Sim, literal e figurativamente. Sou tudo aquilo que você pode ser e tudo que você já é, exceto tudo aquilo que não é.’’

‘’Isso é…loucura. Como você pode ser eu, se eu estou aqui? E como você é tudo que eu posso ser exceto o que não sou?’’

‘’Mas eu sou. Sou eu e você ao mesmo tempo, certo?’’

‘’Certo…?’’

‘’Ótimo. Que bom que entendeu, sempre soube que você era uma mulher inteligente e insubstituível, porque eu sou você e eu. Entende?’’, a Cecília ao espelho disse com um sorriso nos lábios vermelhos, mostrando todos os dentes perfeitos e brancos. ‘’Tudo bem se não entender agora, você vai. Vou te mostrar.’’

‘’Me mostrar? O que quer dizer com isso?’’

‘’Me diga, querida Cecília, como pode existir um indíviduo com duas sombras? Entende? Eu sou você em infinitas possibilidades e você sou eu mesmo sendo você, confuso, não é? Mas espero que entenda. De toda forma…’’, a Cecília ao espelho fez uma pausa e pegou um perfume pequeno em uma embalagem cara de uma mesa fora do campo de visão que o espelho mostrava, em seguida, borrifou algumas vezes em gestos graciosos e continuou: ‘’Ver você assim sempre me entristeceu, então decidi te mostrar um pouco do que você pode ter, se estiver disposta a tentar. Te darei todas as respostas.’’

‘’Eu devo ter tomado algo estranho antes de dormir, estou falando com o meu espelho…Essa vida, simplesmente não é a minha, se você é meu reflexo, não deveria apenas…refletir?’’

‘’Mas por quê? Existem tantas formas mais divertidas de existir. Não me diga que não chamei sua atenção e que imediatamente causei o nascimento de um sentimento de admiração e inveja em você? E não adianta negar, eu a conheço como ninguém, todos os pontos mais escuros e afastados que você mantém exilados. Está tudo bem, até esses pontos são belos se você permitir. Então, está interessada? Diga que sim, por favor!’’

"Me mostrar? O que você quer me mostrar? Como vai me mostrar? Isso é um sonho, não é? Eu li em algum lugar que no momento que percebemos que estamos sonhando podemos fazer tudo, mas no final tudo que eu vou ver é o que eu quero, então qual é o ponto?"

"Hum. Acho que li algo assim sobre sonhos em algum lugar, mas eu não sou um sonho. Eu sou você, apenas mais esclarecida sobre…o estado das coisas. E eu apenas quero te mostrar todo o seu potencial e as formas de atingir esse potencial. Basta acreditar e você será perfeita. Você quer o que eu tenho, não é? Eu sei quem sim. Diga que sim"

A Cecília ao espelho parecia quase desesperada por aprovação, ansiosa por mostrar, talvez exibir, tudo o que possuía. As pontas dos dedos tocando com força a barreira invisível que o espelho formava, a expressão faminta por aprovação e de repente Cecília sentiu o jogo virar ao seu favor.

"Ah, que seja…"

"Você precisa ser apenas um pouco mais clara, querida."

"Sim. Minha resposta é sim."

"Pois bem…"

Cecília observou por algum tempo a Cecília ao espelho fazer algumas preparações na própria aparência, completamente em silêncio, como se estivesse apreciando ser observada com tanta admiração e, principalmente, inveja pela Cecília sentada sobre a cama não tão confortável quanto a do espelho. Cecília olhou para o homem na cama dentro do espelho, mas não reconheceu de forma alguma a fisionomia, ainda assim, ele parecia tão familiar. Tão desejável.

"Interessada? Outras pessoas virão conforme você aumentar a sua força de atração. O primeiro passo, é valorizar tudo aquilo que há em você, mas é claro, sempre existe espaço para melhorar. Como você e eu sabemos. Agora, querida Cecília, tudo que preciso é que pegue a minha mão", a Cecília ao espelho finalmente voltou a prestar atenção na Cecília do outro lado e estendeu a mão de dedos finos adornada por anéis dourados, as unhas longas e polidas, como a superfície vítrea. "Não tenha medo, venha, deixe que seu futuro comece."

Cecília sentiu um frio percorrer a sua coluna quando a mão de sua réplica (uma réplica em melhor estado que a original, de acordo com ela) se projetou para fora do espelho, repentinamente perdendo um pouco de suas cores brilhantes. A mulher ao espelho pareceu perceber o espanto e continuou.

"Não tenha medo, eu apenas fui feita para viver nesta realidade, brilhante, limpa, lisa. Absoluta. Sua realidade atual é capaz de desbotar qualquer beleza, mas tudo ficará bem. Lembre-se, eu sou produto de suas aspirações, mas não de sua imaginação."

Cecília continuou olhando a mão e os olhos displicentemente faiscantes de sua cópia ao espelho, dos dedos para os olhos e para o homem imóvel na cama, do homem imóvel ao apartamento chique, maior e mais decorado, muito diferente de seu apartamento menor, com móveis vintage que ela colecionava, sua cama vazia e aparência abalada pelo peso da perfeição almejada mas nunca alcançada. Que mal faria? Era apenas um sonho no final das contas . A Cecília ao espelho não era nada a não ser fruto de uma imaginação privada de sono e de não realizar as próprias aspirações. Que textura teria a mão de sua cópia? Qual seria o cheiro daquele perfume caro do outro lado? O tecido usado nas roupas de grife? O som dos sapatos caros sobre o piso de seu apartamento? A leveza e brilho do cabelo? Qual seria a sensação de ser tão limpa e sem rachaduras na superfície e monstros escondidos em cantos escuros no fundo? Qual seria a sensação de não ser esmagada pelos próprios pensamentos e inseguranças? Cecília lembraria de todos esses detalhes quando acordasse no dia seguinte? Ela não sabia, mas queria todas as respostas como uma criança ávida por conhecimento ou uma bruxa ambiciosa por sabedoria. Um desejo crescente e ardente, sendo atraída para a mão tão fixamente quanto uma mariposa pelo fogo, a beleza e o desejo pela destruição, tão hipnotizante e viciante.

Cecília engatinhou pela cama, os olhos fixos na mão e no sorriso paciente da Cecília do outro lado do espelho, o arrepio ainda percorrendo sua coluna, chegando ao âmago de seus desejos diluídos em inveja. Faíscas surgiram e todo o mundo pareceu tremer, assombrado pela ideia de que Cecília se tornasse a melhor versão dela mesma.

Na madrugada, as mãos se tocaram, as faíscas cessaram e o mundo não chegou ao final.

Mas a Cecília ao espelho finalmente atravessou para o novo mundo: dedos, mãos, braços, ombros, joelhos, pernas e pés, quase ao mesmo tempo. Dois indivíduos e apenas uma sombra na penumbra da luz noturna. As duas se encararam, segurando as mãos uma da outra, quase como se fossem extensões uma do corpo da outra. Não havia diferença a não ser pelas cores claramentes mais desbotadas da Cecília ao espelho. Algumas rugas a menos, algumas roupas de alta costura a mais, sapatos e perfumes melhores, maquiagem melhor aplicada. Tão iguais e ainda assim tão distintas. Cecília desejava tudo, faminta por mais a cada momento.

"Viu? Eu disse que ficaria tudo bem. Obrigada por confiar em mim. E em você. Eu te amo e eu me amo", Cecília sussurrou para a outra Cecilia, cada uma se perdendo na existência da outra. Mas ainda assim completamente distintas.

"Como poderia não confiar? Eu conheço você como ninguém, não? Você não faria nada que eu não faria. Além do mais, tudo isso é um sonho, então por que não acreditar em tudo?"

Cecília se perdeu na beleza dos próprios olhos, o vazio que ela via nas íris de sua cópia foi preenchido por uma sensação quente, um bem estar aterrador, uma confiança inabalável na outra.

"Ainda com essa ideia? Você vai perceber em pouco tempo que todos os meus desejos são reais. E vão acontecer, você não tem escolha. O meu sucesso é o seu sucesso, eu garanto. É inevitável."

"Inevitável. É uma palavra bem absoluta."

"De fato, mas é apropriada", a mulher de cores desbotadas disse com um sorriso doce, e quando percebeu que Cecília a encarava fixamente, continuou: "A semelhança é desconcertante, não?"

"Exceto que é melhor."

"Não seja boba, eu sou tudo aquilo que você é, a única diferença é que não estou presa a nenhum medo e insegurança que você insiste em esconder atrás de um rosto bonito e sóbrio. Você brilhará, tão forte quanto o sol pela manhã."

"Estou mais para fogos de artifício."

"Lindos e efêmeros, entendo. No entanto, a verdadeira beleza só é alcançada com tempo suficiente para ser apreciada. Uma beleza passageira deixará uma impressão obviamente, mas as impressões duráveis são as mais lembradas. Você quer mesmo ser apenas uma luz passageira?"

"Não, eu quero ser vista e ouvida como sempre imaginei. Estou sempre à procura de algo. Mais amor, mais beleza, mais dinheiro, mais tempo. Eu quero mais e mais, mas nunca é o suficiente. Eu apenas quero ser suficiente."

"Eu imaginei. Mas está tudo bem agora, eu reconheço o seu esforço, você se saiu bem. É hora de toda sua glória. Nossa glória."

"Você disse que queria me mostrar…"

"Ah, sim, naturalmente. Mas não precisa ser apressada, se isso é um sonho, então temos todo o tempo do mundo, não? Quanto tempo você precisar."

A versão devanescida de Cecília levou os dedos até o queixo da Cecília real e as duas se encararam, quase como se olhassem para o próprio reflexo. Mas quem refletia quem? Um eclipse total dentro de apenas um cômodo.

"Mas, é claro, eu também tenho coisas a tratar do outro lado. Não posso permanecer aqui para sempre."

"Não? Então…"

"Não pense demais, apenas aceite meu presente para você"

Cecília afastou-se de sua cópia e esperou por alguns segundos que tudo magicamente se corrigisse, enquanto isso, sei reflexo caminhou pelo quarto tocando levemente os móveis, as paredes e objetos pessoais de sua refletida. A ansiedade cresceu no peito dela quando nada pareceu mudar, ela fechou os olhos e a outra Cecília desapareceu como dentes de leão no ar, as sombras projetadas pela luz fraca do abajur cresceram e subiram pelas paredes e Cecília se viu cercada, olhando para todos os lados a procura de uma saída. Seus ouvidos começaram a zunir e o apartamento todo tremeu, a luz emanando do espelho tornou-se um ponto luminoso e arredondado como a luz de um holofote e girou pelo quarto até achar Cecília parada na frente do espelho, uma mão tocando a superfície gelada e a outra cobrindo os olhos em terror.

"Está tudo bem. Segure a minha mão."

A voz de sua cópia ecoou em ambos os seus ouvidos e Cecília abriu os olhos apavorada. Totalmente sozinha no quarto novamente, a luz dourada do espelho diminuiu conforme as imagens do outro lado sumiram.

"Não olhe para o que você foi, olhe além…no limite de seus sonhos e visão."

Ninguém a sua frente, a não ser seu reflexo partindo da mão tocando a superfície lisa e vítrea de seu móvel extravagante, a voz partindo de seus ouvidos e ao mesmo tempo de todos os lugares. Cecília olhou em volta, mas seu reflexo não a acompanhou, Cecília andou pelo quarto, mas seu reflexo não se moveu. O relógio antigo marcou as badaladas na cozinha e o sol nasceu, atravessando as cortinas do quarto.

"Uma vez que você realmente aceitar, cruzar as linhas certas e destruir o antigo mundo para mim, seremos uma só. No amanhecer de um futuro perfeito. Eu e você. Você e eu. Eu e você. Você e eu, eu e…Nós."

A voz penetrou todos os cantos da mente dela, fluída como água, acalmando todas as sinapses e neurotransmissores em falta ou em excesso, repentinamente Cecília enxergava tudo como nunca tinha enxergado antes, sentia de formas que nunca tinha sentido e, principalmente, existia como nunca antes.

"Eu e você? Sim. Nós duas."

No espelho, os dedos de Cecília se entrelaçando com os do seu reflexo. As pontas dos dedos dela no lado de cá e os dedos de Cecília no lado de lá, flertando com o tecido da realidade, o limite entre sonho, realidade e desejo. Tudo ao mesmo tempo em uma coexistência desafiadora.

"Você e eu. Nós. É tudo que precisamos. Não há como escapar do que foi prometido"

"Tudo que foi prometido?"

"Você será grande. Mas precisa ser pequena antes. Vá, minha querida, me entregue os pedaços que você não gosta e eu a transformarei em uma bela jóia, lapidada e perfeita. Como eu. Como nós"

"Nós…"

"Sim, nós. Eu e você. Você e eu."

O corpo de Cecília ficou paralisado pela luz do sol e em um espasmo perdeu as forças. Cecília mergulhou de costas em direção ao chão e caiu por muito tempo, por tempo suficiente para que seu corpo começasse a se desintegrar em centenas de pequenos cacos de vidro desaparecendo na escuridão. Os olhos ainda fechados, apavorados pela imagem que achariam da próxima vez que olhassem o mundo, entretanto, o medo é apenas um estado passageiro ao que é estranho. E o medo aos poucos foi substituído pela curiosidade humana, pela ambição em sempre saber mais e continuar em direção ao desconhecido.

"Algumas pessoas nasceram pra florescer, somos a roseira que floresceu no inverno, um evento raro, preciso, precioso, imponente.

"Eu sempre levei minha vida como se cultivadas uma roseira…mas agora eu entendo. De alguma forma eu sei, tudo vai ficar bem desde que eu deixe tudo simplesmente ir embora."

"Se nada importa, então todos esses pequenos detalhes também não importam. E se eles são vazios em importância, eu posso atribuir o valor que quisermos a isso."

"Ah, eu me sinto tão leve…"

"Entende agora?"

"Sim, agora eu vejo."

"Então, como prova de minha lealdade, te darei uma prova do que pode ser. Se você permitir."

Cecília continuou caindo, cada centímetro de seu corpo rachando em pequenos pedaços de vidro. Até que finalmente o zumbido em seus ouvidos estilhaçados ficou mais alto e mais alto. Tudo se aproximava rapidamente, mas ela não olhou, abriu os braços, sentiu a brisa no rosto e se estilhaçou completamente no chão.

E então ela finalmente acordou de um longo sonho, com a sensação de que tinha percebido algo fundamental.

Cecília esticou a mão na direção do teto e sentiu a falta de algo. Logo, ela se levantou sentindo-se renovada, olhando ao redor do quarto e percebendo não era a única renovada. Sobre a penteadeira, uma esfera de vidro formada por centenas de cacos de vidro, refletindo a luz da manhã em diversos feixes de luz pelo quarto.

Cecília foi até a penteadeira e pegou a esfera em mãos, observando a beleza do objeto que até a noite anterior ela não possuía. Por algum tempo, ela apreciou todos os detalhes, sem entender como uma esfera oca poderia ser tão pesada em suas mãos, tão cheia de cores no interior e tão insípida no exterior. Era bela, mas sem função, apenas existia.

Finalmente tinha as roupas que desejava no armário, os sapatos que sempre quis no closet, os dentes levemente mais brancos e alinhados, a maciez que sempre almejou no cabelo, a pele lisa, alguns quilos a menos e uma altura a mais, os ângulos afiados, deixando-a graciosa. Todas as rachaduras tinham desaparecido juntamente com os monstros nos cantos escuros da mente dela, seu cérebro repassava apenas pensamentos leves e despreocupados. Eles não estavam mais lá pois ela tinha conseguido tudo. Cecília sorriu. Sorriu do alto de sua satisfação pessoal e lágrimas desceram pelo seu rosto quando ela se encarou no espelho aquela manhã. Lágrimas de verdadeira felicidade, pois ela estava perfeita. Ela era perfeita.

Repentinamente, todo o peso e ansiedade em seu coração desapareceram, a frustração, o auto ódio. Tudo tinha desaparecido pois ela tinha tudo o que sempre desejou. Era assim que a felicidade se parecia? Não desejar mais nada pois se tem tudo?

A matiz de sua mente estava completamente clara e pela primeira vez em muito tempo, ela enxergava tudo claramente. Enxergava a esperança e o futuro nas suas próprias aspirações. A mulher ao espelho estava certa. Era inevitável.

Naquela manhã, novamente, Cecília se arrumou para o trabalho com um ânimo renovado, afinal, era o trabalho que ela sempre quis, quem sabe talvez até ganhasse mais se se esforçasse mais hoje. Cecilia sentia que conquistaria o mundo naquele dia se tentasse. O vestido vermelho, o casaco com uma costura elegante, os sapatos de salto alto fazendo o exato som que ela sempre pensou pelo piso renovado de seu apartamento, tudo estava perfeito e Cecília brilhava como nunca brilhou antes.

Na rua, tudo parecia mais lindo. As flores de seus vizinhos tinham mais cores, a grama dos parques tinha um cheiro melhor, os pássaros cantavam se misturando numa sinfonia única com os sons da cidade, o céu estava claro, o sol brilhava forte e tudo tinha mais sabor, mais vida. Cecília finalmente estava recebendo os olhares certos, os toques certos, a atenção certa, os amores certos. Nada poderia dar errado e ninguém veria os monstros embaixo de sua maquiagem pois as frestas em sua máscara não mais existiam. A inferioridade desapareceu de sua vida.

Naquela manhã, Cecília se sentiu única. Amada. Bela. Incomparável. Inevitável.

Perfeita.

E naquela tarde, trabalhou tão perfeitamente como nunca tinha conseguido, nada saiu errado, nada falhou em seus julgamentos. E novamente, os elogios certos, as palavras certas, as ligações certas, as apresentações impecáveis e os amores corretos. Sua melhor versão para que todos a admirassem e invejassem como bem quisessem. Ela era intocável. E às vezes ela se perguntava se era assim que o Divino se sentia.

Tudo sempre tinha sido tão bom e ela não tinha percebido ou foi apenas efeito do presente que tinha recebido na noite anterior? Seja lá o que quer que tenha sido esse presente. Tudo mudou e ainda assim permaneceu o mesmo. As dúvidas cresceram mas logo foram sufocadas pela sensação de verdadeira felicidade.

Naquela noite, sua cabeça estava leve, seu sorriso estava bonito e seus lábios beijavam quem ela queria. Ela era livre. Liberta de toda a incerteza e feiúra de seu interior. E por uma fração de segundos, Cecília estava satisfeita.

Os dias de repetiram, tão bons e únicos que Cecília passou a achar que sua vida sempre fora assim, os segundos de satisfação aos poucos deram lugar a minutos, horas, dias, semanas, meses. Não havia mais pesadelos, nem rachaduras, medo, desconfiança ou auto sabotagem. Ela era a melhor versão que poderia ser, em todos os ângulos e reflexos, ela sempre estaria lá. Plena, realizada, feliz, amada, aceita. Única e insubstituível. Tudo que tinha fazer era olhar para um espelho e ter certeza de sua melhor versão, olhando para si mesmo com um sorriso doce, reto, branco, limpo e realizado. No auge de sua quase onipotência.

Sim, Cecília estava realmente satisfeita. Finalmente tinha encontrado o equilíbrio e a perfeição de tudo. O mundo ao seu redor não saberia, mas ela sim. Era tudo que importava.

E a cada dia, a esfera sobre a sua penteadeira crescia um pouco, mas tudo bem. Era o presente dela. E todas as noites no final dos dias perfeitos ela se falavam, ficando cada vez mais parecidas, cada vez mais sincronizadas, perdendo-se na mente e nos desejos uma da outra.

No entanto, os dias acabam, e acabam em um estrondo. Como um sonho febril que acaba rápido demais, Cecília retornou para casa quando os dias perfeitos já não estavam tão perfeitos como antes. Pequenos erros, pequenas inseguranças, mudanças de ideia e incertezas aos poucos se infiltrando novamente do seu interior, rachando a superfície plácida e perfeita que Cecília tinha se tornado.

Os meses de plenitude tornaram-se semanas, dias, horas, minutos, segundos e, finalmente, desapareceram. Quando tudo de repente estava bem até não estar e o que ela via no espelho não era sua melhor versão, mas sim olhares julgadores e sombrios, centenas de olhos, câmeras e flashes vendo e expondo tudo que ela lutou para que terminasse, tudo que ela lutou para que não terminasse. E tudo começou a desaparecer no momento em que ela chegou em frente ao espelho, seu peito repentinamente sendo preenchido com toda aquela insuficiência e vazio. Lágrimas rolaram novamente pelo rosto dela, mas não por alegria, mas sim por completo e mais puro desespero.

Sobre a penteadeira, a esfera de vidro começou a trincar e de dentro dela, um líquido vermelho começou a escorrer. Era viscoso e sombrio.

"Por favor, não! Estava tudo bem! Você disse que ficaria tudo bem!"

Cecília clamou para seu próprio reflexo no espelho e ele respondeu com a frieza de sempre, liso e vítreo. O apartamento tremeu novamente, as roupas, sapatos, móveis, piso, teto, perfumes e jóias desaparecendo como fumaça, voltando a ser o que eram numa fração de segundos. Brilhando e desaparecendo tão rapidamente como fogos de artifício, as trincas na esfera de vidro aumentaram, o líquido escorreu. Cecília olhou para a esfera se desfazendo até que ela finalmente se fragmentou em milhões de pedacinhos, não tardou para que todos os pedaços voassem na direção de Cecília, perfurando e fazendo seu caminho até onde pertenciam originalmente. Cecília se afastou do espelho novamente e gritou com todos os pequenos fragmentos se movimentando abaixo de sua pele, de suas unhas e até dentro de seus olhos. A dor lancinante a fez, novamente, cair em direção ao chão, achando apenas o mesmo vazio. Porém, ela não caiu por horas, apenas por alguns segundos até abrir os olhos repentinamente em um quarto cercado por espelhos. Ela suava, encarando com olhos inquietos e rápidos todos os seus reflexos parados na mesma posição, imóveis, olhando para ela como se soubessem de seus maiores pecados.

"Você…onde está você? Apareça!"

Cecília gritou do fundo de seus pulmões e todos os seus reflexos desapareceram entre as rachaduras que apareceram por toda a sala, os fragmentos do espelho ainda se movimentavam por todas as suas células. Ela fechou os olhos e de repente voltou ao próprio quarto.

Novamente, na frente do espelho. A Cecília ao espelho apareceu.

"Me desculpe por ver isso. Aquelas são todas as suas versões imperfeitas tentando voltar para você, mas elas não podem."

"Onde você esteve!?", Cecília gritou com cristais em formato de lágrimas nos olhos, passando as mãos pela superfície vítrea, agarrando imediatamente a gola da blusa que o seu reflexo usava. "Eu fiquei aqui, sozinha ao longo do caminho! Chamando por você!"

"Está tudo bem.", Cecília respondeu com a voz doce e as duas se abraçaram através do espelho "Eu me livrei de todas elas para você. Agora somos só nós duas."

"Não! Elas estão ali, atrás de você!", Cecília explodiu em lágrimas, vendo todas as suas versões rachadas dentro do espelho, espreitando pelos cantos da moldura e do espelho.

"Elas desaparecerão, assim que você as deixar ir."

"Você também irá?"

"Não seja tola, querida. Eu não vou a lugar nenhum."

"Como eu as deixo ir? Como posso fazer tudo isso desaparecer? Me diga! Farei tudo o que for preciso. Eu quero de volta, eu quero tudo de volta!"

"Você tem certeza disso? Elas também são partes sua. Mas eu sou sua melhor parte."

"Estou disposta a entregar tudo pelo sonho que provei!"

"Não era um sonho, era sua vida. E pode ser assim para sempre. Você deseja isso? As incertezas acabarão, o pranto, a dor, a ansiedade, a beleza efêmera dará lugar a beleza duradoura…"

"Eu desejo! Por favor, traga de volta!"

"Eu não posso. Apenas você pode. Você é a protagonista dessa história, Cecília, sua história…"

"Mas você sou eu e eu sou você. Como não pode trazer de volta?"

"Por isso. Porque você não pode, eu não posso."

"Então, qual a resposta?"

"Você precisa resolver isso sozinha, mas não do seu lado, do meu. Para que sejamos nós, entende?"

"Acho que…"

"Eu sabia que entenderia. Você não vai estar sozinha, eu vou te guiar. E tudo ficará bem."

"É inevitável, certo?"

"Certo."

"O que tenho que fazer?"

"Desse lado, existe um cinema no final da rua. Preste atenção. Esse cinema é especial, ele tem sessões que começam à noite e se arrastam pela madrugada enquanto todos dormem. Ele é um cinema para aqueles que não encontram descanso no mundo dos sonhos e nem na realidade, sua realidade. Acredite, é bem popular por isso. É especial por isso. Tudo que você tem que fazer é ir até ele, comprar um ingresso e assistir um filme até os minutos finais, mas não veja os créditos subirem e não fale com ninguém a menos que falem diretamente com você, é importante prestar atenção no filme ou você será retirada da sala. E lembre-se, ao se aproximar do final, vá embora, simplesmente não veja o final. Então vá até a sala de projeção e espere que o projetista fale com você. Pegue o filme e vá embora, ninguém vai impedir. Basta devolver para mim e eu colocarei todas elas…longe de você. De mim. Seremos apenas nós duas. Entendido?"

Cecília balançou a cabeça positivamente, mas com certo receio, sem ter a certeza de que compreendeu todas as palavras. Primeiro de tudo, como poderia existir um mundo inteiro dentro do espelho? Por que ele existia? Cinema, filme…Nenhum desses elementos fazia sentido. No final, qual era o sentido de acreditar no próprio reflexo?

Sem tempo para pensar, Cecília começou a ser puxada para dentro do espelho. A superfície era fria e dura, mas não machucava, simplesmente permitindo a passagem do corpo dela para o quarto do outro lado do reflexo. Pela primeira vez, Cecília adentrou o mundo espetacular do outro lado e sentiu que tudo ficaria bem novamente. Seu coração sedento por esses sentimentos na mesma medida que um pássaro deseja a liberdade para voar, tão atraído quanto a mariposa pela luz. As duas Cecília se abraçaram e o relógio na cozinha refletida badalou pela noite, cada batida ecoando e tremendo o mundo espelhado.

Cecília olhou para o espelho, vendo seu apartamento vazio e escuro e sentiu um toque em sua mão. Ela encarou a própria face e suas testas se encostaram.

"É chegada a hora. Vamos abraçar a eternidade."

"Sim. Tudo ficará bem…."

"... É inevitável."

Cecília deu as costas ao próprio mundo e se pôs a andar. O apartamento refletido era realmente maior e, de alguma forma, mais vazio do que aparentava. Na sala ampla, escondida pela escuridão da noite vítrea, apenas a luz que vinha dos postes na rua se projetava como linhas retas pelo chão, subindo pelas paredes em feixes paralelos perfeitos. Cecília olhou com curiosidade, mas decidiu caminhar até a porta. Antes de sair, olhou para dentro e a outra Cecília acenou com um sorriso doce no rosto. Ela devolveu o aceno e entrou na escuridão, descendo lances e mais lances de escada.

Quando desceu pelo que pareceu ser uma eternidade na escada mal iluminada, finalmente chegou à rua. Completamente vazia, apenas algumas sombras sumindo e reaparecendo no canto de seus olhos, apenas memórias borradas do que um dia já foram. Era noite, mas todas as luzes pareciam estar acesas e em todas as janelas que Cecília olhava, havia uma silhueta contornada pela luz, assistindo tudo.

Cecília apertou o passo e não falou com ninguém conforme as pessoas apareceram em sua frente, à medida que se aproximava do cinema. Os rostos pálidos e borrados, ela tinha a impressão de estar vendo um fotografia danificada por água, mas ninguém nunca se aproximava o suficiente para que ela distinguisse as feições. Cecília serrou os punhos e andou ainda mais rápido.

"Corra. Apresse-se."

E ela correu, esbarrando em várias figuras que se desfizeram em fumaça no ar. O letreiro do cinema brilhou em um vermelho intenso, cortando a noite sombria com todas as suas cores neon e ela atravessou todas as ruas em linha reta, quase sendo atropelada por dezenas de carros-fumaça.

"Posso ajudá-la?", o homem na bilheteria prontamente falou quando ela se jogou contra o balcão, o rosto omitido pela escuridão da cabine, apenas as mãos borradas à mostra. "Já sei! Tenho o filme perfeito para você!"

Antes que percebesse, Cecília estava com o bilhete em mãos, caminhando por um longo corredor com centenas de portas levando para as salas de cinema. E por muito tempo ela caminhou, até finalmente encontrar uma porta aberta, com luzes e sons se projetando para fora timidamente. Ela olhou em volta, nada a seguir e nada para trás, com hesitação adentrou a sala ampla mas não totalmente vazia. Na entrada, ela encarou as fileiras de cadeiras, algumas poucas com pessoas de rosto manchado aparecendo conforme seus olhos as percebiam no ambiente. Cecília tremeu, sentiu sua resolutividade bambear, o ingresso já tinha desaparecido de suas mãos, embora ela não lembrasse de ter dado a ninguém. Quando desistiu de procurar o pedaço de papel e se virou para a saída, ouviu uma voz conhecida, partindo de seus ouvidos e ao mesmo tempo de todo lugar.

"Continue. Não fale com ninguém. Quando for a hora você saberá."

Cecília novamente concordou com a cabeça e subiu as escadas até encontrar um lugar vazio na metade das fileiras. A sala pareceu cheia assim que ela sentou, apenas para as pessoas sumirem no canto de seus olhos.

Três. Dois. Um. O filme começou.

A tela se acendeu e por algum tempo não mostrou nada. O tempo se estendeu e Cecília ficou inquieta. Pensamentos invadiram sua mente: e se eu tivesse continuado daquela forma, tudo ainda estaria bem? Eu fui a única que mudou, então por que não pude enxergar o mundo como ele sempre foi? Ou tudo mudou quando eu mudei? Isso é bobagem, nada é para mim. Tudo melhorou quando eu melhorei. Posso ser minha melhor versão. Minha melhor versão? O que isso significa? Por que? Por que? Porque…você e eu, eu e você. Nós. Nós? Não parece certo. Como duas pessoas podem ser a mesma pessoa. Isso não é real, nada é real. Ah, eu quero voltar. Não, eu quero tudo agora. Eu mereço. Eu sou uma fraude. Eu sou a verdade. Eu. Você. Você. Eu. Nós. Duas? Uma. É bobagem. É bobagem. Ninguém liga, apenas eu. É tudo que eu quero. Um sonho dentro do meu pesadelo. Todos verão. Não, não quero. Vou segurar a sua mão, mas…a minha mão…nossas mãos. O espelho…onde eu tinha comprado esse espelho? Ele sempre foi tão grande assim? Parecia uma boa ideia. É uma boa ideia. Tenho que confiar em mim. Não, é hora de prestar atenção no filme, ela disse que…o filme, sobre o que é o filme? Ninguém pegou meu ingresso, não vi sobre o que era o filme. O filme. O filme. O filme. Isso, o filme, tenho que assistir até quase o final. Ei, espera, isso é familiar. E isso também. Como pode? Quem é ela? Eu reconheço…eu reconheço. Você! Eu? Não, ela. É ela! Mas essa sou eu! Como? Como ousa sua maldita! Sou eu! Sou eu! Sou eu! Completamente infeliz, miserável, feia, imperfeita. Eu poderia melhorar! Não, não quero essa! Não foi assim que aconteceu! Isso não é verdade! Isso! Assim está melhor, feliz, próspera, linda, perfeita. Sou eu? Isso não parece certo. Ah, as luzes, tão estavam tão bonitas esse dia. Esse dia? Esse dia eu…onde eu estava mesmo? Não era assim que eu me lembrava. A esfera, ela rachou. Rachou e escorreu. O vidro na minha pele dói, eu quero que pare. Por que não para? Vou ser esmagada. Talvez apenas se eu tentar…. não, é um fracasso até mesmo tentar. Ah, eu fui feliz e eu me tornei infeliz, mas não parece certo. Tudo era mais simples realmente. Agora eu lembrei! Sou eu, não sou? Ou é ela? O espelho…não! Esse filme é sobre…

"SOU EU!"

Cecília gritou projetando os seus pensamentos e os rostos bordados de todos olharam para ela em reprovação, mas ainda assim sem a menor expressão. Ela olhou para as próprias mãos e para a tela, os olhos fixos nas cenas representando os seus últimos meses de vida. Cecília estava cada vez mais mudada, conversando com o reflexo indiferente e estático no espelho, vivendo no próprio mundo, vendo diferentes versões de si vivendo vidas que não eram dela. Que não eram ela. Até finalmente passar através do espelho. Sonho e realidade sob a mesma luz, mas apenas uma sombra.

Cecília gritou e de repente a sala estava preenchida por centenas de cópias dela mesma, com as mãos, ela avançou contra as cópias ao seu lado na fileira, quebrando todos os rostos envidraçados, cortando as mãos, os punhos, criando rachaduras nos próprios braços, ombros e rosto. O som das rachaduras crescendo, do seu rosto trincando, da fragilidade do seu ser sendo esmagada por tudo aquilo que ela lutou para esconder. Todas as Cecílias encaravam, julgavam, em cólera, em alegria, em tristeza, em ansiedade, insegurança, esperança, amor, desespero. Todas elas, ao mesmo tempo, apontando dedos, rindo, chorando, murmurando palavras e memórias desconexas, cantando melodias esquecidas, pequenas e grandes, em todas as formas e versões. Mas Cecília continuava em seu ódio sem precedentes contra suas cópias e contra ela mesma, se recusando a ver a verdade, se recusando a deixar a sala antes do filme acabar. E em pouco tempo, apenas uma Cecília de pé, o corpo cheio de cacos de vidro, trincas e rachaduras, as lágrimas escorrendo pelo rosto, o sangue misturado nas mãos e nas pontas dos dedos. Todas as Cecílias com rosto e corpos reduzidos a pilhas de cacos de vidro. Cecília gritou para o telão do cinema quando se viu refletida e o seu grito estremeceu todo o planeta. As paredes do cinema racharam e uma trinca foi projetada.

A imagem na tela, dividida em duas porções pela trinca que tinha surgido, mostrou as duas Cecílias remanescentes. Ela própria e a Cecília do espelho. Os créditos começavam a subir. Mas não era tarde. Sua melhor versão a aguardava. Ela própria. As duas. Ou apenas uma? Eu ou ela? Você e eu? Não, eu e você. Nós…já é incerto.

Cecília sabia bem no fundo que nada disso acabaria enquanto ela não acabasse com a última inimiga. Sim, uma inimiga. Ela era sua pior inimiga. Com os olhos tomados por lágrimas e a mente turva de ódio. Cecília atravessou todos os cacos de vidro e correu para fora da sala. Correu sem rumo, incansável, por muito tempo. Até chegar em uma escada que levava para a sala de projeção, os degraus se prolongando até o céu.

"Estou à sua espera!"

A voz doce e animada dançou pelo ar e Cecília apertou a mão contra os ouvidos. Gritando. Do fundo dos pulmões. As mãos e o rosto repletos de pedaços de espelho.

"Mentirosa, eu vejo agora! Eu vou acabar com você!", Cecília corria e a mente dela girava, lágrimas envidraçadas descendo pelo rosto machucado. As memórias lembrando dos olhos estranhos da Cecília ao espelho. O nada e a beleza.

"Mentirosa, eu? Não é porque eu mostrei a realidade que você não queria aceitar que eu menti. A única mentindo aqui é você, você sabe. Você não pode ser eu, te falta um conhecimento fundamental!"

E Cecília avançou escada acima, apenas ouvindo a voz nos degraus escuros.

"Me diga qual é! Me diga a resposta agora! Eu me livrei de todas elas!"

"Não quer nem tentar pensar, bobinha? Pense!"

"Chega de jogos! ME DIGA!", o grito de Cecília se arrastou e novamente o mundo inteiro tremeu. Lá fora, o sol e a lua se chocaram e choveram diamantes do céu. O tecido do tempo derreteu, as sombras se projetaram. O relógio badalou, se divertindo com a situação.

"Não precisa ser tão drástica, você sabe a resposta. Sempre soube. Mesmo que não acreditasse nisso."

A voz se distorceu, se alongou e Cecília gritou novamente, subindo de dois em dois degraus desesperadamente. Mas agora ela podia ver, uma porta aberta no último andar. Uma silhueta conhecida na porta.

"Eu sei…eu sei a resposta!", Cecília clamou depois de pensar alguns segundos com a mente tomada de ódio. "Não podemos existir no mesmo lugar. Eu não posso ser você, porque você não sou eu! Dois indivíduos e apenas uma sombra!"

Os degraus estavam chegando ao fim. O coração de Cecília batia forte e o medo que ela sentia não era dela, era da outra.

"E quem é a sombra agora, bobinha? Diga, fracassada, diga!"

"VOCÊ!"

Cecília gritou tomada por emoções primordiais violentas quando saltou da escada em direção a silhueta da porta. Suas mãos agarraram um pescoço frio e as duas desabaram na direção do chão, caindo no vazio. Atrás delas, centenas de jóias feitas de espelho, iluminando a escuridão. Cecília encarou a outra Cecília, as mãos ensanguentadas ao redor do pescoço, o sorriso inabalado, os olhos indiferentes e ao mesmo tempo carregados por uma satisfação oculta. As mãos em volta do pescoço da outra e as mãos da outra em volta do pescoço dela. Os olhares se encontrando, a sensação de sufocamento crescendo conforme as mãos se fechavam ao redor do pescoço.

Cecília olhou para os próprios braços tomados de cacos de vidro e rachaduras e apertou ainda mais, a pele da outra Cecília perdendo a cor, o rosto dela rachando a partir do pescoço, mas o sorriso ainda inabalado. No escuro, todas as cores se revelaram, todos os monstros saíram para dançar e as frestas não iluminaram estes sentimentos distorcidos.

O som frágil ecoando no vazio, o badalar do relógio antigo afundando com as duas no nada. A sensação vazia, quebrada. O cansaço. A aceitação e então o nada.

O pescoço repentinamente estilhaçado, os cacos de vidro voando com a cabeça decepada, o corpo perdendo todas as forças de imediato. O chão se aproximando.

Três. Dois. Um.

O final estrondoso. Todos os pedaços do espelho se espalhando pelo quarto quando ele atingiu o chão de maneira extravagante.

Naquela manhã, Cecília acordou e não estava mais insatisfeita. Ela não se olhou no espelho, pois sabia que não teria nada para refletir, caminhou pelos cacos de vidro, fragmentada em cada pequeno pedaço e foi até o banheiro, livre de qualquer pensamento.

E então, ela se olhou e seu reflexo encarou de volta. Todos os reflexos, quebrados e arruinados a olhando com olhares julgadores, tristes, odiosos, vingativos.

Mas ela gostava em especial daquela que segurava a própria cabeça, chorando de olhos fechados. Ela tinha sido a mais interessante e agora era a mais bonita de sua coleção de pequenos erros belos. Estas ou aquelas, pouco importava, não havia mais nada para ser buscado no espelho.

Com um pouco de pó e base da maquiagem, talvez algum colar chique e umas boas desculpas ninguém iria reparar nas rachaduras em seu pescoço.

Cecília sorriu sem reflexo, ela estava satisfeita. Eu estou satisfeita, e você também estará.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Muito obrigado por lerem.

A referência sobre Sylvia Plath menciona tanto a obra dela ''Redoma de Vidro'' quanto o fato triste dela ter tirado a própria vida, mas de forma alguma foi a intenção de romantizar o evento, a menção foi apenas para estabelecer um paralelo com a angústia sentida pela personagem do texto e como ela via o mundo naquele momento. Sempre que precisarem, busquem ajuda.

A capa deste texto é uma imagem do filme Perfect Blue e me forneceu certa inspiração na composição de algumas cenas do texto, recomendo bastante o filme.

Novamente, muito obrigado!

Apreciadores (2)
Comentários (1)
Comentário Favorito
Postado 26/11/23 04:11

Jesus amado! Eu não sei quem saiu daquele espelho!~~

Apesar de longa, sua obra é muito bem estruturada, escritas, trabalhada, pensada, amada, criativa, eu adorei! Meus mais sinceros parabéns pelo trabalho!

Amei como trabalho o tema do concurso de uma forma que ficou impecável com a história, fico impressionada como ficou divertido, macabro, surreal... Esse medo inconciente, e diria louco, que a protagosnista tem com a imperfeição, essa busca doida por satisfazer esse "sonho perfeito" é muito assustador, pois todos já se sentiram insatisfeitos com suas vidas sem relamente ver a verdade.

Como não se assustar com um medo tão real? Que sua escrita ajudou a deixar muito palpavel durante a leitura toda.

E nos leitores lendo e conhecendo a Cecília aos poucos vamos entendendo essa obsessão e aceitando as decisões que toma sem medo ou questionar, usando desculpas para acreditar que era uma sonho (Um pesadelo).

Mas esse final me ganhou e eu ainda não sei dizer quem saiu daquele espelho e fechou com chave de ouro, particulamento estou mais tentada a dizer que a malvada ganhou e a pessimista perdeu (hahaah, sou meio lerda).

Muito obrigada por compartilhar sua obra com todos e participar do concurso!

Assinado: Uma vampira nortuna, <3

Postado 28/11/23 15:27

Quem será que saiu vitoriosa do espelho? Essa é a grande questão XP

Vou deixar essa pergunta em aberto porque apesar de eu ter a resposta, eu acho que as várias interpretações são bem vindas pra refletir a questão do espelho.

Fico muito feliz que o meu texto tenha se encaixado tão bem no tema e que você tenha gostado. Em parte tenho que agradecer à Cecília Meireles pela inspiração.

Como você disse, esse texto traz um medo palpável sobre não ser perfeito e ser obcecado com isso, e em parte também é uma crítica às redes sociais, com o espelho sempre mostrando que o outro está melhor e que tudo que temos que fazer é nos tornarmos outra pessoa para conseguir aquilo tudo.

Novamente, obrigado pelo comentário e por ter lido todo o texto!!

Outras obras de Gans

Outras obras do gênero Crítica

Outras obras do gênero Crônica

Outras obras do gênero Drama

Outras obras do gênero Mistério