O mundo atrás da porta
Yvi
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 30/10/23 00:40
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 9min a 12min
Apreciadores: 3
Comentários: 2
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Palavras: 1535
Este texto foi escrito para o concurso "Concurso de Halloween — Terror Surreal" O Concurso Terror Surreal convida os participantes a utilizarem do surrealismo para criarem obras de terror para esse Halloween de 2023. Ver mais sobre o concurso!
Não recomendado para menores de dezoito anos
Capítulo Único O mundo atrás da porta

Por décadas Amon viveu perfeitamente bem trancado no conforto e segurança de seu quarto, recebendo apenas a visita da mãe — três vezes ao dia, sempre com comida —, mas, naquele dia em específico, Perpétua não apareceu na porta do quarto do filho.

Amon estranhou o fato, mas pensou que a velha apenas tinha ido à feira. No almoço, nada da mãe ainda. O homem só tomou coragem para abrir a porta do quarto quando a noite caiu e sua mãe não apareceu. Era certo que, naquele horário, ninguém além da mãe estaria em casa, então ele não precisaria se preocupar com pessoas lhe observando.

Chamou uma, duas, três vezes, e ninguém respondeu. Com cautela, rumou para o quarto da mãe e viu seu pior pesadelo estirado na cama, duro como uma pedra. Amon se via encurralado, sua mãe estava morta e ele não sabia o que fazer. Pensou em falar com alguém, mas eles não eram ricos o suficiente para ter um telefone em casa. Cogitou esperar alguém sentir a falta de Perpétua na igreja, mas sabia que algo assim não aconteceria, já que a mulher não era querida naquela cidade, por ser mãe solteira e ter um filho que parou de sair de casa antes de completar quinze anos. Ele precisava sair e procurar ajuda... Ele só precisava ir até a porta da frente, girar a maçaneta e correr para o mundo.

— É só ir até a porta, girar a maçaneta e dar o primeiro passo. Não é tão difícil assim. Eu só preciso girar a maçaneta... Só girar — a maçaneta parecia muito longe, muito perigosa.

As mãos do homem tremiam e suavam. Ele estendeu e recolheu a mão várias vezes, antes de enfim conseguir tocar a maçaneta da porta. Tentou girar uma, duas, três... Pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, a voz vinha do quarto onde o corpo de sua mãe jazia. Decidiu soltar a maçaneta, mas ela segurou sua mão com firmeza. Puxou o braço tão forte que caiu no chão. A porta lhe direcionou um olhar de julgamento, quase como se soubesse o que ele tanto tentava esconder.

— Não saia! Eles vão descobrir sobre você! Todos vão saber o que você é assim que te olharem de perto. Ninguém pode te ajudar agora. A velha morreu e você está sozinho.

A maçaneta gritava cada vez mais alto, mesmo sem ter boca. Amon correu para o quarto, trancou a porta e se encolheu na cama. Ela estava certa, não podia fazer aquilo. Se saísse de casa, todos saberiam quem ele realmente era. Não tinha como esconder uma coisa tão escancarada assim.

Passou dois dias trancado no quarto, antes que a fome lhe obrigasse a sair. O mau cheiro que vinha do quarto da mãe era quase tão insuportável quanto a possibilidade de ser visto por alguém pela janela da cozinha, mesmo sabendo que moravam muito longe da cidade. Amon se cobriu com um lençol e começou a procurar comida. Não sabia preparar nada, mas podia tentar. Cozinhou arroz pela primeira vez em sua vida. Não era tão difícil assim, mas precisava lembrar de colocar sal na próxima.

Sem muitas opções, decidiu enrolar Perpétua no máximo de cobertores que podia, em uma tentativa de conter todo aquele odor. Relutante, abriu a porta do quarto da mãe mais uma vez. A podridão já havia tomado conta do corpo. Os dedos da mão de sua preciosa mãe estavam esverdeados e inchados, os olhos haviam afundado e ele conseguia ver um ou outro inseto no nariz da defunta.

Para sua sorte Perpétua era uma mulher muito saudável em vida, então não seria tão difícil tirar seu corpo da cama e colocar no chão. Amon usou um total de sete cobertores, era tudo que tinha. Quase vomitou ao encostar no corpo gelado da mãe, pensou que ele poderia explodir a qualquer momento. Quando terminou, viu que a cama estava coberta de vermes purulentos. Não podia ignorar aquilo, então decidiu tentar sair mais uma vez.

Fechou os olhos, respirou fundo e foi correndo bem devagar até a porta da sala, sem pensar muito sobre. Ficou ali por horas, de olhos fechados e com a mão na maçaneta. O sol cedeu seu lugar para a lua, enquanto Amon permanecia parado, analisando as possibilidades.

— Eles não vão descobrir. Se eu ficar quieto, se não falar muito... Eu só preciso girar a maçaneta e correr até a delegacia. Ainda lembro onde fica. Eu só preciso...

— Delegacia? Você, na delegacia? — Uma risada monstruosa ecoou na cabeça de Amon — está pronto para enfrentar a consequência das suas opções depravadas? Eles serão os primeiros a descobrir que você não passa de um invert-

Amon se trancou na segurança do quarto mais uma vez. Ele não podia correr o risco. Se abrisse a porta, se fosse na polícia, muitas pessoas iriam invadir sua casa e ele não teria onde se esconder. Todos saberiam sobre suas preferências impuras. Haveriam muitos olhos lhe julgando; condenando.

— Você parece uma concha vazia, esquecida no canto mais escuro do quarto. Continuar aqui não vai fazer a tristeza passar. Você não vai deixar de ser um invertido afemi-

— Cala a boca! Você não sabe o que diz!

— Não sei? Eu não sei?! Não esqueça que foi nesse quarto que ele te beijou. Não esqueça que foi aqui que os seus amigos da escola te viram sendo beijado. NÃO ESQUEÇA QUE FOI AQUI QUE VOCÊ SE ESCONDEU POR QUASE TRINTA ANOS! Você não passa de um saco de carne e pele esticados em cima de um esqueleto!

Não queria lembrar do dia em que foi enganado por seus amigos, do dia em que um dos garotos lhe beijou a força e disse que ele parecia uma menina. Se recusava a lembrar o rosto dos amigos rindo e dizendo o quanto ele era uma aberração, um anormal. Apenas não queria. Preferia dividir o quarto com um corpo putrefato do que ouvir mais uma palavra daquela maldita maçaneta.

Trancado com o que um dia foi sua mãe, Amon se permitiu chorar. Chorou tudo que tinha, tudo que podia, antes de levantar, buscar uma faca e começar a cortar aquele corpo em decomposição. Não sabia o motivo de estar fazendo aquilo, mas algo em seu subconsciente lhe dizia que aquela era a única maneira. Ele partiu carnes e separou ossos. O cheiro era terrível, mas pelo menos sua mente estava focada em algo que não fosse a sua vida miseravelmente triste.

Sozinho, com um corpo despedaçado e um coração decomposto, Amon não viu outra saída a não ser permanecer ali, rindo; gritando; se escondendo. Já estava morto, não havia mais nada que pudesse fazer para mudar.

— O que aconteceu durante a noite, nunca aconteceu! O que aconteceu não aconteceu! O que aconteceu...

Não sabia se estava falando sobre o que fizera com o corpo da mãe ou se falava a respeito daquele beijo, que foi seu primeiro e único. Ainda sentia os lábios formigarem e lembrava da boa sensação que teve ao fechar os olhos, mas também lembrava dos amigos rindo, da dor dos chutes e socos que levou naquela noite.

— Por que só eu sou assim? O que eu fiz de errado? Por quanto tempo eu ainda tenho que suportar? — Amon questionou, com lágrimas nos olhos, enquanto depositava a cabeça de Perpétua em cima da cama.

— Mesmo que encontre um motivo, que arrume uma desculpa convincente, mesmo que feche os olhos, tape os ouvidos e tente ignorar, você sabe que tudo já está destruído. Não há mais volta para você, meu filho.

— Mãe, o que eu tenho que fazer para acabar com as trevas? O que eu preciso fazer para voltar ao normal?

— Você nunca foi normal. Olhe para si! Você não passa de um invertido. Está tudo bem, afinal, eu sou a sua mãe e eu te amo mesmo você sendo defeituoso. A mamãe ama o Amon.

— Mãe...

— Você está preso nesse limbo por culpa minha, eu sei. Se eu tivesse te dado um pai, você não seria assim. Desculpa a mamãe, por favor.

— Não! A culpa não é sua! Eu não te culpo mãe. Eu que fiz errado, eu nasci com defeito. Eu sou ruim! Impuro! Eu sou um merda, vivendo escondido como um rato sujo, torcendo pra que ninguém nunca percebesse. Me diz, mãe, me diz o que eu preciso fazer! Eu faço qualquer coisa. Se você disser que eu tenho que abrir a porta, eu abro, eu juro... Só me tira daqui.

— Você sabe o que tem que fazer, você sempre soube. Tenha coragem e faça tudo certo. Vai ficar tudo bem. Você não precisa mais se esconder. Faça de uma vez! Obedeça a sua mãe!

— Sim, mãe.

Em uma noite fria e solitária, sem mais nenhum pensamento corroendo seu cérebro, Amon andou sozinho pelo quarto e disse a si mesmo que estava tudo bem, que mesmo que parecesse que havia se perdido, ele ia ficar bem.

Ainda com as mãos trêmulas e sujas de sangue, o homem saiu do quarto e foi direto para a porta principal. Respirando fundo, com os olhos bem abertos, girou a maçaneta de uma vez e deu o primeiro passo para fora.

— Vai ficar tudo bem. Eu só precisava girar a maçaneta e acordar.

❖❖❖
Notas de Rodapé

É aquela coisa: Pelo menos eu tentei! e_e

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Comentários (2)
Comentário Favorito
Postado 26/11/23 02:25 Editado 26/11/23 02:26

Nossa! Estou emocionada~~

Adorei a forma como usou o tema do concurso, esse trabalho com o psicologico e tramas ficou muito legal. Estou trocendo para que ele encontrasse conforto e amor, aahh quase chorei (talvez eu esteja um pouco sentimental demais).

Vejo muitas coisas legais em sua obra, a forma como não disse a epoca da hsitória, mas como demonstrou a epoca. Esses sultis detalhes que deixaram a obra mais emerciva e leve para quem lê, uma ótima narrativa, parabéns!

E eu amei esse terror psicologico da mente de Armon o torturando, adoraria ter visto muito mais disso. Foi uma cena perfeita. Assim como a cena final em que a mãe fala como ele, diz aceita-lo, mas não como ele é... Foi uma quebra de expectativa muito boa.

Estou me prolongando demais (hahahah), muito obrigada por compartilhar sua obra e participar do concurso!

Assinado: Uma doce vampira, <3

Postado 29/11/23 01:48

Muito obrigada! <3

Postado 30/10/23 12:19

Gostei da forma como você conduziu a narração, fiquei apreensiva me perguntando no início o que poderia ser tão horrendo que o Amon não pudesse sair e pedir ajuda, mas no final eu descobrir: preconceito. Boa sorte, Yvi!!

Postado 30/10/23 23:27

Obrigada! <3

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