“Às vezes penso que devemos estar todos loucos e que vamos despertar para a sanidade em coletes de forças.”
Bram Stoker
Sob o infortúnio do tédio noturno, ela afundou-se entre os alvos lençóis que cobriam o macio colchão ortopédico, espalhando os volumosos cabelos dourados no travesseiro. Suspirou em desgosto pelos pensamentos desordenados em sua mente, mesmo com Für Elise adentrando em seus ouvidos através dos fones. Ponderava sobre sua própria existência naquela sociedade nefasta. Bauman devia estar mesmo certo, tudo era líquido, transitório e fútil. E além dessa maldita conclusão, ela tinha sede, embora uma taça do seu tinto preferido repousasse a poucos centímetros no criado-mudo. A ressonância de uma vibração a fez erguer o celular, e vagarosamente olhou as notificações. Solicitações de amizades indecentes, novas publicações... Bauman ficaria enojado se não fosse por um aplicativo: "Olá! Seus livros chegaram em nossa loja para retirada."
Sofia era a única livraria que corajosamente concorria com a gigantesca loja online que dominava o mercado. Embora antiga, tinha seu charme, oferecia um lugar para que livros fossem lidos confortavelmente. Livros... Já conhecera inúmeras capas e páginas, mas de alguma forma nunca se cansava deles. Não havia nada melhor para fazer naquela noite monótona, então faria o esforço de ir busca-los. Quanto aos caras que esperavam um sexo fácil, seu estoque sanguíneo podia esperar um pouco, pois na livraria, Lovecraft e Allan Poe lhe aguardavam. Lenore Herrmann era uma amante. Amava literatura e música clássica tal como a luxúria do sangue.
O céu enegrecido das noites frias em Berlim era convidativo para que as pessoas ficassem em casa, aquecidas pelas cobertas e alguma bebida quente, mas não para Lenore. A lua era o seu sol e a escuridão o seu céu. A noite lhe era confidente, e ao lado dela podia revelar sua verdadeira natureza, ainda que apreciasse poucos hábitos humanos que o tempo lhe ensinara. O vento gélido beijava-lhe a face abaixo do capuz daquele moletom preto, mas não sentia frio. Suas pernas eram envolvidas por uma justa calça jeans e pés dentro dum tênis confortável em mais uma futilidade social humana, o vestuário. Roupas não lhe eram tão interessantes, todavia, seus ouvidos notavam a melodia dissonante das conversas alheias, dos veículos na estrada e a palpitação de vários corações que levavam diferentes tipos de sangue por distintos vasos sanguíneos. Quando mais jovem e inexperiente, aquela situação rapidamente a faria perder o controle, mas há muito aprendera a dominar sua sede. Adquiriu discrição ao longo dos séculos e a subsistência de sua espécie dependia disso. Não à toa que haviam poucos remanescentes dela.
Caminhou sem pressa pelas ruas do centro, ainda que pudesse chegar ao seu destino em poucos segundos. Ela gostava disso. Observar era um bom passatempo, era ainda mais intenso do que simplesmente ver, Lenore podia sentir. Continuou andando por pouco mais de meia hora até finalmente chegar na rua Friedrichstrabe, famosa por seu comércio e cultura na capital. Em grego, o letreiro resplandecente Σοφία (Sofia) era acompanhado de duas colunas dóricas com o raio azulado de Zeus no meio. Por fim, ela adentrou na biblioteca.
Para Lenore, era como estar nos Campos Elísios. O piso de madeira em verniz adornava o brio dos livros que estavam sobre as estantes. A fragrância de lírio branco e jasmim invadiam agradavelmente suas narinas e mesmo distante, podia sentir o doce odor das máquinas de café ao fundo. Numerosos corredores com os mais variados autores e gêneros, num elaborado cardápio para mentes que colocava um sorriso no rosto dela. Tal como o nome da livraria, sabedoria emanava daquele lugar, ainda que estivesse praticamente vazia. Dirigiu-se ao balcão onde o atendente da noite estava distraído num jogo de celular. Com a destra teclava o aparelho enquanto a canhota segurava uma lata de refrigerante. O odor agradável de antes perdeu um pouco da magia. Mesmo antes de chegar perto do homem, pôde sentir o sangue oleoso pulsando com aquele excesso de lipídeos e açúcares que ela odiava. Pensou consigo mesma que era um desperdício de A negativo, ainda que fosse um tipo comum. Ele podia ser magro e ter uns trinta anos, mas as veias e artérias não mentiam. Um infarto era só questão de tempo para aquele sobrecarregado coração.
— Devia ir num cardiologista. — Lenore advertiu sem cerimônias e o homem franziu o cenho, tirando os olhos do celular.
— Como é?
— Ah! Eu quis dizer... já chegou O Alienista? — Indagou forçando um sorriso simpático.
— Oh... Não. — Ele respondeu secamente, pouco antes de dar um bocejo demorado.
— Vim buscar meus livros para retirada. — Ela deslizou no balcão de cedro sua carteira de identificação. Autêntica para aquela época, embora falsa. Assinou alguns papéis e recebeu daquelas mãos oleosas seus dois mais novos exemplares: A Máscara da Morte Rubra de Allan Poe e O Chamado de Cthullu de Lovecraft. Sempre adorou o gênero. Susto, medo, horror. Tais efeitos sob os homens eram fascinantes e lhe rendiam boas divagações. Lembrou-se de seus experimentos, aquele olhar de pavor das pessoas mordidas era sempre memorável. A sensação horripilante de saber que sua vida chegará ao fim naquele exato momento, ainda mais pelas mãos dela, uma vampira, um monstro digno das páginas de Bram Stoker.
Cessou as intensas recordações e foi-se com os livros pelo aconchegante território da biblioteca. Haviam cadeiras acolchoadas ao centro, mas Lenore sempre preferiu sentar-se por entre os corredores, perto dos livros. De alguma forma, sentia-se acompanhada com eles. Enquanto seus olhos e pés ainda passeavam pelo corredor da Terra-Média e Nárnia, ela o sentiu. Uma pulsação solene e aquele odor agradável do sangue arterial, um saboroso vermelho vivo e abundante em oxigênio. Institivamente seguiu o rastro carmesim, embora não tivesse intenção de se alimentar. Se o fizesse, seu lugar favorito viraria uma cena de crime e jamais voltaria a abrir. Na seção do Sthephen King, lá estava o seu tipo sanguíneo predileto, um belo AB positivo. Para os humanos, um receptor universal, para Lenore, um vinho a ser apreciado.
O sangue não era a única coisa atraente. Suas mãos seguravam um exemplar de It e pelo aumento da palpitação, o jovem de cabelos negros estava em pé e acompanhava avidamente as desventuras do Clube dos Perdedores em Derry. Embora Lenore sentisse que não era a primeira vez que ele lia a famigerada obra-prima do medo. Num sussurro, ela citou a frase do Bill.
— “Ele soca de postes de montão e insiste que vê a assombração.” — A voz soturna o fez virar-se. Um olhar frio e castanho foi sucedido duma citação de Lovecraft no mesmo tom.
— “Não está morto o que jaz eternamente inanimado, e em estranhas realidades até a morte pode morrer.” — Ele sorriu e Lenore repetiu o gesto em resposta.
— Ia pedir desculpas por interromper, mas vejo que tem um ótimo gosto. — Se ela se referia ao sangue ou aos livros, o jovem leitor não saberia. Um casaco de couro lhe aquecia desde os ombros até o tronco, embora Lenore pudesse ver perfeitamente o sangue correndo pelas ramificações do seu organismo.
— Foi uma boa pausa. Um pouco assustador, mas felizmente você não é o Pennywise... Ou é? — Ele brincou, pondo um marcador personalizado na página pouco antes de fechar o pesado livro do King. Acima deste, um balão vermelho sinalizava a localização da leitura.
— Posso ter assustado pessoas, mas acho que nunca as fiz flutuar. Mas o medo é... interessante.
— Concordo. Tão intenso e ambíguo... — O jovem sentou-se no chão, repousando as costas na estante. — Nos impede, nos faz agir ou simplesmente nos aterroriza... Ah e nos diverte também, não à toa fizeram tantos livros e filmes.
— Todos tem medo de alguma coisa. Conheci muitas pessoas. Ricos, pobres, cultos e ignorantes... — Lenore acompanhou o movimento do rapaz e também se sentou. — Todos tinham medo da morte.
— Talvez a temamos tanto porque sabemos que é inevitável. Com alguma sorte e tirando as doenças crônicas e violência, conseguimos trabalhar, ter filhos, envelhecer e deixar que o ciclo continue quando formos enterrados.
— Só por curiosidade, o perguntaria se conhecesse alguém imortal?
— Bem... O que essa pessoa achou da humanidade ao longo dos anos.
— Considerando a história, acho que ela diria um pouco de decepção e surpresa. A tecnologia ajudou muito, mas algumas coisas boas se perderam no tempo. Ignorância sempre existiu, mas as pessoas liam bem mais antigamente. Hoje passam mais tempo na internet vendo danças esquisitas ou fazendo comentários tóxicos. Sabe, eu aprecio o silêncio para ler, mas as vezes não entendo como um lugar igual a esse pode estar tão vazio.
— Como diria Freud: “A felicidade é um problema individual. Aqui nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, torna-se feliz.”
— Felicidade é a desculpa para saciamos nossos desejos ou as vontades de outros? Ele também disse: “O pensamento é o ensaio da ação.” Mas se não pensamos, somos apenas marionetes, facilmente manipuláveis e sem ação própria.
— Pois é, parece que vivemos numa constante inércia. — Ele estudou o rosto de Lenore por um instante fitando as íris azuladas e ela estranhou um pouco a reação. Lembrou-se que não havia dito seu nome genuinamente falso.
— Acho que esquecemos de fazer as devidas apresentações. Sou Lenore Herrmann.
— Estava me perguntando de onde conhecia seu rosto. A crítica literária do Dunkle Bücher, é um blog e tanto para leitores de terror. Seus contos também são incríveis. Meu favorito é o Cartas de Sangue, foi um final bem inesperado. Aquela dúvida cruel se a vampira iria matar o seu amado escritor até que veio o trágico fim... Daria um bom filme. Ah, sim! Me chamo Thomas Braun, um mero leitor e psicólogo nas horas vagas.
— Obrigada. Era o meu palpite já que citou Freud. Bem, já faz um bom tempo desde esse último conto. Foi divertido escrevê-lo, apesar do final. — Ela apertou o livro do Lovecraft discretamente. — No fundo eu queria que ele tivesse sobrevivido.
— Os leitores também Lenore, os leitores também... — Thomas lamentou e ela riu. O jovem concluiu com um elogio e uma pergunta: — Mas foi condizente com a história e é isso que importa. Aliás, quando é o próximo conto?
— Ainda estou buscando... inspiração.
— Felizmente está no lugar perfeito. — Continuaram a conversa sobre livros e seus autores favoritos por mais algumas horas até que o atendente chegasse furioso pelo seu horário de largar e fechar o estabelecimento. Lenore sabia que era perigoso sair com sede, apesar do seu autocontrole. No entanto, o tempo com Thomas passou tão rápido que ela se arriscou a ficar com sede por algumas horas a mais. Quando saíram, já era meia-noite. A cada passo e sorrisos que davam, estava tentada a mordê-lo. Embora soubesse que o antígeno de suas presas poderia matá-lo rapidamente.
Thomas viveria mais quarenta ou cinquenta anos, e ela o veria cumprir o vicioso ciclo humano da morte. Amaldiçoar o rapaz com a sua sede parecia tão cruel... Mas não era isso que ela era? Uma sanguessuga cruel, um monstro dos livros? Despida com ele entre os lençóis, Lenore deixou-se levar com a dúvida do arrependimento. Enquanto lágrimas de sangue enchiam os olhos dela, Thomas Braun ouviu um “sinto muito”, pouco antes de ter a garganta perfurada.