Ojeriza Interior
Sabrina Ternura
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 03/10/20 17:24
Editado: 03/10/20 17:49
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 4min a 6min
Apreciadores: 8
Comentários: 7
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Palavras: 778
Este texto foi escrito para o concurso "Concurso Macabro - Monstro" Te convidamos a olhar debaixo da cama e nos contar qual monstro está escondido aí. Ver mais sobre o concurso!
Não recomendado para menores de dezoito anos
Notas de Cabeçalho

Ciao, pessoal. Como estão? Espero que estejam bem.

AVISO DE GATILHO: O texto a seguir aborda temáticas psicológicas que podem causar perturbação. Também trata sobre a questão da violência doméstica. Caso você escolha prosseguir com a leitura, a autora e a plataforma não se responsabilizam pelos danos.

Ojeriza: Repugnância ou nojo; sentimento de repulsa, de antipatia, de aversão, normalmente causado por uma sensação, pela intuição, por uma ofensa ou ressentimento.

Façam uma boa leitura ♥

Capítulo Único Ojeriza Interior

Há um medo desumano que baila em mim.

Ele faz as minhas mãos tremerem constantemente e produz um suor descontrolado em meu corpo. Meu estômago revira ao imaginar os gritos raivosos deles e sinto as minhas pupilas escurecerem ao lembrar do engasgo sufocante dela. Tudo isso é sentido, enquanto mostro o meu melhor sorriso e as mais perfeitas ações, tentando sempre me recordar que o menor erro pode causar explosões nucleares em meu lar.

A ansiedade me consome na mesma medida que é o energético que move-me. É difícil manter o controle em meio a essa desordem emocional interna que designa a perfeição exterior, enquanto a minha vontade é de gritar até minhas cordas vocais romperem. Essa perfeição instigada pelo medo de tudo desabar, me ojeriza ao ponto de me causar náuseas.

[mas eu não posso mudar mais. meus erros já foram fatais]

Enquanto limpo a bagunça alheia e tudo reluz, sujo a minha alma com a mais perpétua escuridão ao engolir meus sentimentos e ignorar os traumas. [mas devo continuar carregando esse fardo]. Afinal, tudo o que aconteceu foi minha culpa. Meu pai bateu na minha mãe por minha causa. Todos da rua viram o que aconteceu por causa da minha falta de controle. Meus irmãos ficaram traumatizados, porque não fui capaz de conter toda dor que havia aqui dentro, após um ano inteiro intermediando brigas. Esse medo desumano me consome, porque preciso dele para me flagelar, como lembrete do que aconteceu.

[para lembrar que a culpa toda é minha].

Quando me olho no espelho e revivo milhões de vezes aquela cena em minha mente, um profundo arrependimento trava a minha garganta, porque se eu tivesse sido mais forte, nada daquilo teria acontecido.

[se eu tivesse agido de dada maneira, se eu tivesse usado outras palavras…

minha família não teria sido quebrada].

Entretanto, quando a racionalidade emerge, a verdade me lembra que o monstro não sou eu, mas que precisei me transformar nele. Alguém precisava arcar eternamente com as consequências daquele dia — que ainda existe em mim. O cheiro de cerveja no ar, o ódio em minha voz, a insanidade no seu olhar… como posso esquecer isso, pai?

[você sempre será o verdadeiro monstro embaixo da minha cama e dentro do meu coração].

Continuarei carregando esse fardo, porque a minha depressão me lembra que o esquecimento é sinônimo de fraqueza, mas a verdade é que essa dor é real demais para que eu simplesmente a esqueça. Isso não acontecerá, porque todas as vezes que me recordo de soltar ele, minha mente automaticamente me pune… Pois foi aí que ele te encontrou aos berros no portão pedindo ajuda e tentou te estrangular.

[como posso esquecer dos hematomas em seu pescoço?

como posso não me envergonhar de minha fraqueza?

como posso me perdoar por não ter protegido você, mãe?]

Sinto-me miúda demais visualizando toda essa tragédia. Nenhuma palavra conseguiria descrever o quanto, bem lá no fundo, me dói saber que me tornei carrasca de mim mesma; que eu faço os cortes, mas nunca as suturas, porque não me sinto merecedora; porque alguém precisa comportar dentro de si a dor de todas as pessoas dessa casa. Me sinto muito sozinha dentro dessa gritante dor. Essa angústia venenosa que insisto em beber, vem para me lembrar das súplicas que fiz e que não foram ouvidas, simplesmente porque eu mesma não as tirei de meu pensar por medo. Me tornei o monstro que agride, a vítima que grita, a criança que chora e os vizinhos que encaram tudo sem fazer nada, porque é necessário, porque meu maior obstáculo é tentar entender que todos seguiram em frente nesta história e apenas eu continuo a me forçar a mergulhar mais e mais nesse trauma em formato de ferida aberta.

[preciso me tornar o monstro, pois todos eles esqueceram que já o foram.

preciso eternizar a podridão deles, corroendo minha alma].

Quando o dia 17 de Agosto se aproxima, amaldiçoo mais um ano completo desde que meu pai agrediu a minha mãe e todos da rua viram o que aconteceu. Minhas mãos tremeram por 10 horas seguidas. Meus olhos ficaram tão inchados pelas lágrimas que não consegui piscar direito por um dia inteiro. Meu âmago nunca mais foi o mesmo, porque naquele dia entendi o significado de ter um coração partido. Amaldiçoo mais um ano em que ainda estou vagando pela Terra, sendo que tudo o que almejo é uma morte rápida, pois somente dessa maneira poderei encontrar descanso e abrir mão desse medo desumano. Suicídio não é uma alternativa.

[afinal, monstros não podem se matar, eles precisam ser mortos].

Então, caro leitor, tendo tudo isso em mente, você poderia me libertar e me matar?

❖❖❖
Notas de Rodapé

Alguém chegou aqui, rs?

Quando vi a temática do concurso, logo me veio a mente falar sobre os monstros que nós criamos em nós mesmos em detrimento dos outros ou situações monstruosas. Esses monstros são chamados de traumas e devem ser tratados. Você não precisa deixar o medo te dominar, lidar com tudo sozinho ou fazer tudo com perfeição. Você é um ser humano passível de erros, que sente dor e que aquela situação te machucou assim como os outros envolvidos. Não menospreze a sua dor. Não deixe que o medo faça com que você sinta uma repulsa de si mesmo ao ponto de transformar seus sentimentos em imensos monstros.

Verbalize a sua dor e não se esqueça de procurar ajuda médica, caso você identifique que não está bem.

Violência doméstica é crime! Caso você encontre alguma situação de violência dessa magnitude, ajude a vítima e entre em contato com as autoridades. A culpa jamais é da vítima. O monstro sempre é o agressor.

Obrigada a quem leu até aqui ♥

Apreciadores (8)
Comentários (7)
Comentário Favorito
Postado 07/10/20 02:33 Editado 07/10/20 22:33

Satã... A profundidade, intensidade e a realidade (tanto no sentido de que tanto este tipo de situação quanto este tipo de consequências estão ocorrendo neste exato momento em algum lugar neste mundo maldito) exprimidas nesta obra é algo tão visceral que cala fundo na alma e espreme nosso coração.

Me é praticamente impossível que alguém leia uma obra desta magnitude e saia intocado pela carga emocional devastadora que esta obra ostenta. É o tipo de texto que nos faz pensar e sentir tantas coisas....

Com todo o respeito aos demais competidores, esta é minha obra favorita desde o ventre materno para se sagrar campeã do evento, dada a forma magistral e devastadora com a qual o tema foi abordado.

Meus mais sinceros e imensos agradecimentos por mais esta obra Brina!

Um sefrcom asco de si mesmo, Diabair

Postado 07/10/20 22:22

A intenção era justamente criar essa tensão após a leitura, para que todos os temas fiquem fixados, dada a importância e magnitude de todos eles. Os humanos são monstros e é terrível quando as vítimas vestem a roupa do monstro, pois tamanho é o trauma gerado pela situação.

Obrigada pelo comentário e presença, Diab ♥

Postado 06/10/20 07:38

Sabrina, você como sempre desperta o lado mais humano e sensivel em mim!!

menina eu estou tão...absorvida por essa obra, como se ela me engolisse viva.

como sempre, você é um arraso!

Postado 07/10/20 22:19

Fico muito feliz em ler isso!

Obrigada pelo comentário e presença, Girassol ♥

Postado 06/10/20 23:04

Estou tentando, juro que estou tentando há dias formular um comentário digno desse texto. Mas eu não consegui.

Foram algumas tentativas frustradas, que eu apaguei no final, sem enviar. Então em vez do gigantesco, vou focar no pequenino...

Toda a situação vivenciada é tão horrivelmente triste, que me sufoca o peito durante a leitura. Só de imaginar o tamanho da dor, eu quase não consigo respirar...

Esse texto é muito intenso, muito poderoso, e eu amei que você o tenha escrito para o concurso! Parabéns, por isso!

Os humanos são monstros complexos... E justamente por isso, são os piores... Pois nos causam tantos sofrimentos... Obrigada por compartilhar esse texto conosco...

Um grande abraço, e me desculpa por não ter conseguido escrever nada melhor... Você merecia muito, mas muito mais...

Postado 07/10/20 22:20

Agradeço demais por você ter vindo aqui deixar as suas impressões, sempre tão importantes para mim! Esse texto é bem difícil de ler, então entendo completamente sua situação em tecer um comentário que, não importa o tamanho, o que sempre vai valer é a intenção.

Obrigada pelo comentário e presença, Mei ♥

Postado 23/10/20 22:35

Estou completamente arrepiada! Você escreve com tamanha maestria que meus olhos ficam marejados. Uma leitura completamente imersiva, parabéns. Ficou perfeito ♥

Postado 26/10/20 02:21

Fico feliz que tenha gostado!

Obrigada pela presença e comentário ♥

Postado 08/11/20 01:47

Esse texto tem uma atmosfera muito pesada, ao mesmo tempo que é muito necessário. O intuito do concurso era realmente ver a criatividade a respeito do monstro, e você conseguiu transmitir fielmente o retrato de um dos piores monstros da nossa vida: nós mesmos, ou frisando a excelente escolhe do título, nossa ojeriza interior.

Os traumas e receios que carregamos em vida, sejam elas por quaisquer circunstâncias ou motivos, é um fardo extremamente difícil de carregar e lidar. A autossabotagem nos induz a acreditar que somos monstros em uma realidade caótica, quando na verdade estamos apenas tentando sobreviver a ela.

O texto carrega em si uma melancolia nítida, enquanto os sentimentos da narradora transbordam infelicidade e auto insuficiência. Quantas pessoas - infelizmente - não passam por isso? Quantos não carregam as cicatrizes de uma violência doméstica, seja direta ou indiretamente? Quantos mais precisam morrer internamente para que a justiça seja feita de forma adequada?

Porque infelizmente as consequências desse terror psicológico não é somente na vítima física, mas em todos que o cercam e precisam sufocar esse sentimento, a vontade de ser livre por medo do que possa acontecer a si mesmo e aos outros. A dor de não verbalizar e automaticamente pegar pra si a responsabilidade de algo que no momento não estava em seu alcance.

Uma dura crítica, e totalmente necessária principalmente nos dias de hoje.

Parabéns novamente, Brina! Ojeriza Interior é um brilhante texto e uma excelente crítica social.

E muito obrigada pela participação ♡

Postado 09/11/20 18:10

Seus comentários são sempre contemplativos e necessários! Me alegra demais saber que passei a mensagem da maneira correta.

Muito obrigada pela presença e comentário, Pam ♥

P.S.: Eu que agradeço por ter tido a honra de participar de tal empreitada!

Postado 08/11/20 01:52

Quando comecei a falar com a Pamela sobre o concurso, a ideia que eu tinha em mete era basicamente o que você fez aqui. Monstros assumem várias formas e a pior delas é a que vemos no reflexo do espelho.

Durante a leitura, me vi em agonia. Eu queria terminar logo, mas também queria continuar lendo, de forma lenta, sentindo cada dor. Foi um verdadeiro conflito.

Parabéns, Sabrina Ternura. Você não apenas trouxe o tema, você foi além e trouxe uma lição de vida.

Postado 09/11/20 18:11

Fico muito feliz em ter despertado tantas emoções!

​Muito obrigada pela presença e comentário, Flavinha ♥

P.S.: Obrigada por esse concurso maravilhosoooooo!

Postado 08/11/20 17:52

Oi Sabrina! Bom, ainda não li todos os textos do concurso, mas ao meu ver, tanto o seu quanto o da Mei mereciam o primeiro lugar, pois foram incríveis! Pude sentir a dor atráves das palavras, uma leitura fluida, ainda que tratasse de algo terrível. Acredito que seu texto passou exatamente a proposta do tema: terror. Os monstros reais que estão bem perto e são mais assustadores que qualquer obra de ficção. Parabéns! Tanto o texto como as notas finais disseram tudo. Mais uma vez, parabéns! <3

Postado 09/11/20 18:19

Fico muito feliz em ter passado todas essas emoções! Vindo do ganhador do concurso, tais palavras me alegram demais.

​Muito obrigada pela presença e comentário, moço ♥

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