Larguei meu trabalho de escritor depois da experiência em Valença. Antigamente, gostava de olhar arquivos de jornais para achar casos esquisitos que poderiam render bons romances, como o de São Paulo, a senhora que usava carne humana para fazer empadinhas, historia que virou o meu livro Vendedora de Pecados.
Depois de semanas procurando, achei uma reportagem de um pequeno jornal de Valença, cidade do Rio de Janeiro, em que uma mãe teria perdido o filho durante o Halloween de 2003 e dizia que as autoridades não tinham se importado em procurar o garoto. A notícia poderia ter passado batido, se não tivesse me lembrado que já tinha visto algo parecido antes.
Em uma pesquisa mais aprofundada achei seis casos semelhantes no período de 1998 a 2016. Não sei como não chamaram a atenção de ninguém.
Arrumei as malas e parti para a cidadezinha. O clima pacato de casas brancas, ruas pequenas e povo calmo de cidade do interior tornavam tudo mais macabro, o que me excitava a pegar todas as informações possíveis e planejar minha próxima obra. Cheguei de tardinha na cidade e decidi começar a pesquisa no outro dia, e no momento apenas caminhar pelo lugar, sentir a atmosfera e respirar o ar quase místico de tão limpo desse lado do Rio de Janeiro.
Acordei já pegando o gravador e partindo para rua perguntar às pessoas sobre o que sabiam dos casos e se tinham mais informações. Andei até ver alguma pessoa descansando numa cadeira do lado de fora de sua casa, coisa tão comum nesses lugares. Encontrei um senhor com cerca de 55 a 60 anos na posição que eu queria, me aproximei e perguntei “Bom dia senhor, como vai?”, já estendendo a minha mão. O sorriso e o braço estendido do homem me disseram que ele estava disposto a uma boa conversa. Falamos um pouco sobre a cidade, o tempo e sobre futebol, até eu sentir o conforto necessário para indagar.
– E o senhor sabe sobre essas noticias de crianças desaparecidas durante o dia das bruxas? Fiquei arrepiado só de lê-las, tenho um filho pequeno e desde que fiquei sabendo dessas coisas não o deixo sair de casa para pegar doces lá no Rio.
– Se preocupa não menino, que isso só acontece por aqui mesmo. É uma pena realmente, esses casos foram falta de atenção nossa, sabe? O pessoal agora tá mais atento aos filhos dos gringo, porque todas as vezes que o Haroldo pegou eles deu escândalo, mas parece que esses pirralho gruda que nem cola quente nos moleques dessa cidade, ai vão bater na porta do homem pedindo doces tudo junto.
– Quer dizer que as denuncias nos jornais são apenas de pessoas que estavam aqui a turismo?
– Mas é claro, o povo daqui é muito colaborativo, a gente faz a nossa parte e o Haroldo vai fazendo a dele. Espero estar vivo quando ele terminar, vai ser lindo, tenho certeza. E criança não falta nessas redondezas, o povo transa que nem coelho em Valença. – E terminou soltando uma gargalhada.
O turbilhão de novidades me deixou aturdido. Despedi-me do homem e fui direto à delegacia, que provavelmente já recebeu gente como eu por lá algumas vezes, porém eu precisava fazer algum escândalo.
Entrei na delegacia já gritando.
– O Governo não paga vocês para deixar um perseguidor de crianças a solto na rua seus filhos da puta.
– Senhor, se acalme ou vamos prendê-lo por desacato.
– Quem é você para falar de desacato por aqui? E o desacato com a vida das crianças que vocês deixam nas mãos de um psicopata, em? Eu quero o endereço desse merda agora, e quero saber por que ele ainda está à solta.
– Senhor, vá com calma. Você está acusando sem conhecer Haroldo Pontes L. e pode arrumar problemas falando essas coisas por ai. Não o prendemos porque estamos todos juntos seguindo o Grande Plano, e perdas são inevitáveis para chegarmos ao nosso objetivo. Vai entendê-lo quando o ver.
– Meu Deus, como o exército ainda não invadiu isso aqui e acabou com todos vocês? Me dá logo esse endereço, vou acabar com esse plano macabro, e nem adianta me matar, o Brasil inteiro vai saber o que aconteceu aqui se cometerem um erro desses.
– Ninguém pretende te matar senhor, e para encontrar Haroldo é só ir à casa a frente, ele deve estar te esperando a essa altura.
Obvio que esse bate-boca ia gerar meus 15 minutos de fama, mas quando sai na rua vi uma quantidade absurda de pessoas, todas me olhando com cara de robôs. Foi ai, depois da adrenalina passar, que temi pela minha vida. Atravessei a rua e agradeci a Deus por nenhum deles ter se movido, e as facadas em forma de olhares que recaiam nas minhas costas começavam a me deixar em pânico. Bati na porta e Haroldo abriu.
Convidou-me para entrar, me deixando desconcertado, porque já estava esperando um maluco com uma faca. A casa era moderna e estéril, branca com poucos moveis povoando o espaço.
– Soube que queria me ver. Certamente você ainda tem varias perguntas pendentes.
– Queria só entender como você faz para convencer uma cidade inteira que matar os próprios filhos é uma boa ideia, senhor HPL.
– Você vai. Na verdade, você já sabe, só está mentindo para si mesmo, mas vamos ao santuário, lá tudo será explicado.
Engoli seco quando ele disse que eu já sabia. O santuário era um lugar fechado para se manter refrigerado. A luz acendeu quando HPL abriu a porta, como se a sala fosse uma geladeira gigante. Lá dentro, nada alem do branco das paredes e ganchos infinitos pendurando corpos de crianças nuas, todas elas costuradas e cheias de símbolos chamados de satânicos, mas para um estudioso dos temas místicos como eu sabia que eram de origem mesopotâmica, arcadiana e egípcia. Foi ai que entendi tudo. Virei-me para Haroldo e disse “obrigado”, nos abraçamos e sai de lá com um sorriso que acalmou toda a população da cidade que estava esperando a minha saída.
Hoje me dedico a minha esposa, a criação dos meus três bebes, esperando eles crescerem para pedirem doces na casa do tio Haroldo, ao meu trabalho de guia turístico da apaixonante cidade de Valença e ao culto do Grande Plano de HPL, o único homem que realmente faz algo para tornar o mundo um lugar melhor.