Querido diário,
Hoje ela veio me visitar de novo.
Estas visitas têm se tornado cada vez mais frequentes desde que eu comecei a acomodá-la aqui dentro.
Ela sempre me diz que o mundo lá fora não é digno de minha presença e que ficar em meu quarto é muito mais interessante. Sempre me conforta e retira a dor que se tornou tão corriqueira em minha vida. Era como estar envolta em plumas: aconchegante e macio. Ela me acolhe, limpa minhas lágrimas com seus dedos compridos e finos e fala que tudo vai ficar bem.
Na primeira vez, ela apareceu pequena, em cima do meu ombro, uma miúda mancha escura que se movia displicente. Ela me disse que, se eu me comportasse direitinho, ela cresceria e me faria companhia... Assim, para espantar a solidão do meu peito.
Hoje de manhã, ao acordar, ela estava junto comigo mais uma vez. Mas sua presença era grande e majestosa enquanto sentada ao meu lado na cama, diferentemente das outras visitas. Deu-me bom dia e dissera-me que o dia seria diferente. Embora eu quisesse sair para ver o dia lá fora, ela veio se deitar ao meu lado, abraçando-me com força. Seu peso sobre meu corpo impediu-me a locomoção, de modo que apenas me virei de lado e me cobri até as orelhas com a coberta.
"Sair não é importante", ela sussurrou em meu ouvido. E eu fiquei ali, presa entre ela e o colchão da cama, em um misto de sufoco e conforto.
Tem alguns momentos no dia nos quais ela some e me deixa novamente sozinha. Eu uso dessas saídas para comer e abrir a janela, de modo que a brisa refresque meu quarto, abafado pelos dias enclausurados. A vontade de sair já não existia mais e eu só queria o aconchego de minha cama e meus travesseiros.
Ela voltou, silenciosa e sorrateira como só ela conseguia ser.
Rastejou-se pelo chão de madeira do meu quarto e arrastou-me da janela para a cama. "Hoje o dia será diferente", ela repetiu, cobrindo-me com a coberta. Disse que eu precisava descansar e me abandonou mais uma vez. E, naquele momento, adormeci em um sono sem sonhos – como todos os outros desde que ela chegara.
Quando despertei pela segunda vez no dia, o sol se punha e os tons alaranjados entravam pela janela ainda aberta. Desvencilhei-me das cobertas e fui ao banheiro a fim de fazer minhas necessidades fisiológicas. Lavei as mãos e fiquei minutos a fio me observando no espelho.
As lágrimas se acumularam nos cantos dos meus olhos, escorrendo por minhas bochechas. A dor estava de volta, tão forte quanto antes. Entretanto, ela apareceu atrás de mim, pude vê-la pelo reflexo do espelho: um espectro negro em um mar de azulejos brancos.
“Viu só? Não fez o que eu lhe pedi. A dor voltou, não foi?”, ela me perguntou e tudo o que fiz fora balançar a cabeça positivamente. O nó, que havia se instalado em minha garganta, sufocava-me, impedindo que eu respirasse. Levei minhas mãos ao meu pescoço, alisando-o com força e em vão – o nó não queria se desfazer.
Engoli saliva, imaginando ser algo por dentro; mais uma vez em vão. Arranhei-me, deixando listras vermelhas e inchadas. Eu não conseguia ter sucesso e o desespero começou a se apossar de mim, fazendo com que eu puxasse a pele de minha garganta. Ela segurou meus pulsos, evitando que eu continuasse tentando retirar aquele bolo de meu pescoço.
“Eu tenho algo que vai melhorar a sua dor”, ela disse e meus olhos suplicaram, a dor me consumia e as lágrimas desciam apáticas, molhando minha blusa de pijama. Tentei me agarrar a ela, mas ela se esquivou do meu contato.
“Não me abandone”, eu implorei com a voz rouca e embargada, deixando meu corpo escorregar pela bancada da pia. Ela me entregou uma pequena lâmina. Fiquei olhando para o pedaço metalizando na palma da minha mão, de olhos arregalados.
“Eu disse que o dia de hoje seria diferente”, ela sorriu para mim e meu coração acelerou. “A sua dor vai passar”, disse-me enquanto esticava os dedos compridos em minha direção. Pegou a lâmina de minha palma e segurou minha mão esquerda com força, de forma que meus pulsos ficassem indefesos. “Eu prometo que sua dor vai passar”.
E, então, senti o metal gelado se afundando em minha carne, liberando a passagem do sangue para fora de minhas veias, a escorrer por minha pele alva e pingar em um chão tão branco. A dor era forte e se sobressaia àquela que afundava meu peito e esmagava meu coração.
A lâmina atravessou o tendão que permitia os movimentos do meu pulso e um urro melancólico escapou por meus lábios. Rangi os dentes e mais gotas salgadas se misturavam às minhas bochechas. “Já vai passar”, ela dizia enquanto passava a língua comprida pelo ferimento aberto. Seus olhos esbugalhados e negros brilhavam em escárnio ao degustar o líquido carmim.
Eu confiava nela.
Largou meu pulso, que caiu em um baque no azulejo duro e gélido. O sangue não demorou a dimanar, formando uma poça viscosa e vermelha. Àquela altura o pijama que eu vestia há dias estava imundo e de cor irreconhecível. Ela segurou meu outro pulso e repetiu o processo, rasgando minha pele e meu tendão com uma facilidade horrível.
Eu não sentia mais a dor azucrinante que me abria a carne, apenas o sangue esvaindo de meu corpo, levando a amargura embora consigo. Ela ainda mostrava os dentes branquíssimos e pontiagudos em um sorriso macabro, beirado à psicopatia. Minhas bochechas ardiam devido às lagrimas secas, não sentindo mais as mãos.
“Pode deixar, querida, eu vou escrever tudo no seu diário”, ela disse, acariciando meu rosto com as costas das mãos gélidas e ásperas.
Em uma fração de segundos, o corpo negro e esguio dela se desmanchou em uma avalanche de insetos e aracnídeos. Os bichos se rastejavam pelo meu corpo, causando-me náuseas e formigamento nos locais em que me tocavam. Em minha mente, eu os afastava com as mãos de forma desesperada. Mas meu corpo não se movia um milímetro.
Eu estava sufocada e com nojo; havia sido abandonada nos últimos instantes de dor, sendo preenchida por mais sofrimento. Os tendões estavam cortados e o sangue pegajoso já diminuía a vazão com que escorria pelo meu pulso para se juntar à poça ao chão. Aquelas patas lanosas ainda pinicavam minha pele, subindo por meus braços e rastejando em minha nuca.
Meus olhos ainda lacrimejavam, só não me restavam forças para continuar chorando. Fechei-os fortemente, esperando que tudo passasse tão rápido quanto os dias nos quais ela me confortara. Quando os abri, observei meus braços nus e ensanguentados. Não havia mais bichos se arrastando pelo meu corpo.
Tudo o que havia de diferente era a pequena lâmina presa entre meu polegar e meu indicador.
Ergui o olhar para o espelho de corpo inteiro que jazia atrás da porta, instantes depois de analisar minha situação precária enquanto largada no chão... E, então, eu percebi.
Aquela pessoa que me olhava de volta era quase desconhecida; ossos protuberantes e olheiras profundas, bochechas encovadas e lábios pálidos, estas características me evidenciavam o desconhecido, mas o fato de imitar meus gestos ao piscar e respirar indicava que era eu.
E só eu.