Era a quinta, não sei, talvez a sexta cidade que eu visitava em minha busca alucinada pelo sobrenatural. O hotel dessa vez era bem simples, situado, no entanto, em um bairro nobre. A cidade era muito quente e meu único refúgio era a refrigeração do meu quarto. Cheguei à tarde; desmontei minha mala, tomei banho e descansei até à noite. A lua crescente brilhava no céu e eu saí em minha jornada a procura de informações.
Os funcionários do hotel pouco sabiam sobre a aparição de qualquer coisa por lá. Minha esperança residia no vigilante noturno, mas a troca era apenas às 20:00, então saí para espairecer e comer alguma coisa. No fim das contas eu até gostava desse tour por lugares desconhecidos. Sempre me faziam conhecer pessoas novas, costumes estranhos e coisas inusitadas. Uma pena o motivo ser algo tão mórbido. Perto de onde eu estava, umas duas quadras à frente e um pouco fora do campo de visão da minha janela, havia uma grande construção abandonada.
Não sei se um colégio ou fábrica antiga, desolada e suja. Pensando bem, era um local perfeito. Rua calma, pessoas ricas que não se importavam com o sobrenatural, e um elefante branco abandonado que ela pudesse viver. Se estivesse por aquelas regiões, com certeza dormiria ali. Assim que o vigilante chegou comecei a fazer perguntas sobre a cidade, sobre o clima, sobre futebol, sobre as mulheres e por fim, sobre as lendas. Ele me disse que na cidade nunca ocorreu nada de anormal, ou pelo menos ele não se lembrava. Volta e meia ele saía do assunto e eu tentava sempre retornar.
- Sobre o quê você quer saber homem, deixe de “arrudeios”.
- Lobisomens. Quero saber sobre lobisomens. Há algum relato deles por aqui?
- Isso é invenção do povo, existe isso por aqui não. Deixe de sandice.
Ele não servia. Mas ela estava naquela cidade com certeza. Não poderia fugir tanto tempo sem um local para ficar durante o resto do ciclo lunar. E essa cidade não era tão grande; batia com os padrões que ela seguia. Durante aquela noite eu fiquei de vigília na janela e não vi nada. Mais tarde enquanto cochilava, alguns cachorros latiram e eu acordei assustado. Mas eram só outros cachorros passando pela rua.
Tinha que ser ali, eu tracei a rota correta. Primeiro aconteceu em Guarabira na Paraíba, depois aqui em Pernambuco, começando por Canhotinho, Cupira e Caruaru. Eu venho seguindo essas histórias há muito tempo, acompanhei as reportagens e o rastro de mortes da fera. Enquanto muitos fugiriam para longe, eu o segui. Visitei todas as outras cidades e não encontrei nada; mas algo me dizia que ela estava por aquelas ruas calmas.
Na manhã seguinte, pulei o muro da Fábrica e fui investigar seu interior. As paredes estavam imundas; infiltrações e mofo tinham tomado todo o local, além das teias de aranha com seu toque bastante peculiar. Em uma das salas haviam papelão e um colchão velho, com algumas roupas e uma mochila. Ouvi passos em outro corredor, segurei o meu. Os passos pararam por lá também. Alguém saiu correndo e eu segui o som, vi esta pessoa saltando o muro e saindo pela rua. Os cabelos eram curtos e o corpo magro, seria ela?
Quando criança ouvia esses relatos mas nunca dei muita importância. Meu pai tinha um amigo que não se cansava em contar tais coisas para os menores. Relatava que nos tempos antigos andava tarde pelas roças para ir para casa. Morava em uma cidade pequena do interior e costumava ficar nas fazendas próximas para conversas tardias. Sempre era advertido a não caminhar tarde demais naquele breu, principalmente nas noites de lua cheia. Mas ele não acreditava em lendas. E foi em um desses dias, após voltar de uma festa, que ele viu algo se movendo rápido na escuridão da caatinga, quebrando galhos e pisando firme.
Ele pegou sua espingarda e deixou de prontidão. Mas, um uivo dilacerador cortou o céu e o fez estremecer. Me lembro das palavras dele:
- Todos imaginam que ele uiva com um lobo, mas não, era um grito horrível de uma criatura agonizando na lua cheia. Eu não sabia se o urro era de dor, pelo que estava se transformando, ou só para amedrontar quem ouvisse.
O homem quase borrou as calças quando ouviu aquilo. Partiu em disparada com o cavalo. Mas em sua retaguarda, segundo ele, um bicho peludo corria e rosnava como um cão. O cavalo já era velho e a fera o alcançou em um salto. Os dois caíram; mas parece que o banquete do cavalo parecia mais apreciável. Então, enquanto o pobre equino era dilacerado pelas enormes garras, o homem saiu correndo até desembocar na cidade. No outro dia, não tinha nem sinal do bicho, apenas um imenso rastro de sangue que seguia para dentro da floresta. Ele desconfiava de um homem da cidade que se transformava, e depois que esse homem morreu, nunca mais se ouviu tais histórias. Esse era um dos maiores motivos de chacota por parte do meu pai, por isso ele não gostava de contar essa história para os adultos.
Foi coisas como essas, e outros motivos pessoais, que me fizeram perseguir essas lendas. Não há, talvez, no Brasil, uma lenda mais contada do que a do lobisomem. Quem anda na mata ouve falar da caipora e do curupira; quem pensa em namorar padres ouve histórias da mula sem cabeça e quem vive próximo ao rio, ouve sobre a sereia Iara. Alguns deles são até cirandas para crianças brincarem de roda, mas nada se compara aos assombrosos casos dos monstros lunares.
Já li casos de quase todos os estados brasileiros e vim particularmente perseguindo aquele que mais me chamou atenção, e que tenho chamado de “A trilha de sangue”. O mais agravante aconteceu em Canhotinho aqui em Pernambuco. A rotina lá tinha se alterado e o medo era bem real, me lembro de passar tensos episódios, mesmo depois das histórias cessarem. O fato era que uma criatura aterrorizante e peluda estava matando animais na cidade.
As crianças eram proibidas de sair de casa e os adultos voltavam do trabalho em grupo, pois mantinham um receio de andar sozinhos. O fato tomou maiores proporções quando numa noite em um sítio, uma agricultora vivenciou momentos de pânico. Estava em sua casa, quando estranhos barulhos tomaram seu quintal. Pela porta entreaberta, viu um vulto negro correndo, e seus cachorros ficaram imóveis com a presença da tal criatura. E o mais assustador foi que ele começou a devorar os pobres caninos. A mulher se trancou em casa com a imagem daquela coisa medonha e cheia de dentes destroçando os pobres cães. No outro dia, achou apenas partes deles.
E os relatos não pararam por aí. Um vigilante de um colégio da cidade afirmou ter atirado no pescoço de uma criatura negra similar a um cachorro enorme que andava sobre dois pés próximo de onde estava. Uma enfermeira chegou a informar que uma jovem chegou com o pescoço machucado tarde da noite naquele dia, mas parecia não ser da cidade. Por sorte, ou por exaustão da coisa, aqueles que tiveram tal visão ainda continuaram vivos para contar a história.
Eles especulavam que o tal monstro era uma garota que costumava bater na mãe e esta tinha a amaldiçoado. Mas eu sabia que não era isso. Primeiro que a maldição não acontecia dessa forma, e depois que ela começou a atacar antes daquela cidade e ainda continuou após ela. E aqui estou eu, com uma automática, alguns pentes e outros apetrechos, atrás do bicho. Mas eu devo encontrá-la, eu tenho que encontrá-la.
Voltei à fábrica mas não encontrei nenhum sinal dela. Nos dias seguintes, entre um murmúrio e outro em algumas lanchonetes, comecei a perguntar sobre uma garota desaparecida e consegui o fiasco de pista que eu precisava. Uma menina tinha pedido asilo em uma fazenda em troca de trabalho. Segundo um dos vizinhos, era muito calada e trabalhava apenas por um prato de comida e um local para dormir. Informou que não ia ficar muito tempo, apenas mais uma semana. De certa forma isso fazia sentido. Tinha medo de machucar as pessoas. Meu Deus, que fardo terrível para uma adolescente.
O tempo se passou e foi só no dia posterior à primeira noite de lua cheia que eu tive algum sinal dela. Estava na Zona Rural da cidade, Fazenda Curralinho e lá que minha fagulha de esperança foi re-acesa. Visitando os ranchos com uma desculpa esfarrapada de ser funcionário federal, e estar fazendo o senso anual da população, saí coletando tudo aquilo que me era cabível. Mais alguns dias com aquela mentira e eu acabaria preso. Em uma das casas mais distantes, de Dona Vera e de Seu Francisco, fui informado que eles perderam várias galinhas e alguns porcos na noite anterior, e que seus vizinhos também estavam assustados com uma fera que devorou seus animais nessa mesma noite.
Meus ouvidos se apuraram e meus sentidos também. Estava por lá, eu estava perto dela, finalmente. Foi um verdadeiro interrogatório dali para frente. Mas obtive mais respostas com Dona Wilma, na fazenda mais próxima. Durante à noite, ela e seu marido ouviram os cachorros latindo e estranhos passos do lado de sua casa. Eles acordaram, e um rosnado de uma fera se misturava aos valentes cães em desespero. Ele tinha feito buracos nas janelas e nas portas, para que se algum ladrão andasse por suas terras ele pudesse espantar sem nem ao menos sair de casa. Então, ele olhou por um deles e a imagem não foi nada agradável.
Uma besta enorme, uns três metros de altura segundo ela, que ficava “em dois e quatro pés” de pelos pretos e um rosto que “parecia cara de gente e cara de bicho” brigando com os cachorros. Ele não pensou duas vezes, colocou o rifle pelo buraco e disparou quantas vezes pôde, até ouvir a coisa gritar e sair correndo de sua casa.
Todas as fazendas ao lado informaram situações estranhas na noite anterior também. E a menina que eu buscara tinha desaparecido, não trabalhava mais por lá. Droga. Quando eu achei que tinha encontrado, ela escapa dos meus dedos. Almocei mais tarde em uma das casas; o sol estava escaldante e o “funcionário do governo aqui” estava acabado. Eram oito famílias no total, juntas em um raio de dois quilômetros. Eu fui em todas as casas e a moça não estava em nenhuma. Mas apenas uma estrada ligava a cidade ao pequeno povoado, e como ela não estava lá e nem passou nenhum carro pela estrada, acreditei que ela ainda estava pela região.
O dia estava se pondo e eu não poderia abusar da vontade de ninguém. Deixei meu número e pedi para alguém me avisar se ela retornasse. Peguei o carro alugado e voltei para o hotel. Já era quase noite, quando no banho meu celular tocou. Saí molhado pelo quarto e recebi a derradeira notícia que eles não quiseram me contar enquanto estive lá, pois sabiam que era algo muito cruel.
Naquele mesmo dia de manhã cedo, eles acharam a menina ensanguentada no meio de animais mortos e ligaram uma coisa com a outra. Ela estava amarrada em um quarto e se durante a noite se transformasse, eles iriam a matar. Eu enlouqueci.
- Por tudo que é mais sagrado, não a machuque. Eu preciso falar com ela. Eu preciso muito falar com ela, estou voltando para aí. Me aguardem por favor.
O homem não prometeu muita coisa. Eu parti de volta para o vilarejo. Era mais de dez quilômetros de estrada de terra. Corri como um desvairado até a referida casa. Lá, já a noite, os moradores estavam em pé em um círculo em meio a um terreno.
- Aonde está ela?
- Ela tentou fugir e nois matou ela. Foi ela que comeu nossos bicho ontem. Antes dessa miseravi aparecer aqui, nunca teve isso e agora tamo tudo sem nossos animal. – Disse um deles.
Peguei a jovem magra de 15 anos nos braços. Estava machucada e suja. Seus cabelos bagunçados, suas roupas molhadas de sangue, rasgadas e o frágil corpo todo perfurado por bala. Eu desabei em choro.
- Não, não, não seus miseráveis. Por que não me esperaram? Por que não prenderam ela com correntes? Seus burros, mateiros estúpidos.
- Olha lá como você fala com nois. A gente né burro não. Num vou me arriscar com esse bicho aqui. E por que essa piedade toda com esse monstrengo peludo?
A lua cheia iluminava o céu límpido por completo. Soltei um grito desesperado.
- Porque ela era minha filha seu imbecil! E eu estava há muito tempo a procurando. Eu vim de outros estados atrás dela.
Tantos meses de busca para terminar morta no meio daquele povo selvagem. Eu a abraçava contra meu corpo. Minhas roupas se sujaram de sangue. Mas não tinha mais o que esperar.
- Pobrezin somos nois. – Todos riram.
- Claro que são – Adquiri uma aparência séria – Afinal de contas, não é uma noite segura para vocês estarem aqui fora...
- O sinhô vai discu...
Sua miserável voz foi interrompida quando eu soltei um grito horrível e a transformação começou.
...
Todos deram um passo para trás quando o forasteiro começou a se contorcer no chão em uma apavorante agonia. As mãos começaram a crescer, com os dedos dando lugar a garras. A roupa rasgava à medida que os pelos negros se desenvolviam e os músculos aumentavam de tamanho. Os ossos estralavam e forçavam a pele dando um lugar a uma nova forma anatômica. O rosto tomava um formato selvagem, e os dentes inferiores chegavam a escapar da boca. Por fim, o monstro negro se ergueu diante de todos e olhou para a lua.
- Auuuuuuuuuuu – O uivo lacerante cortou toda vila e todos começaram a correr.
De um salto, agarrou um dos sertanejos no meio da confusão. A enorme boca grudou no pescoço do homem e sacudiu com tamanha fúria até a cabeça ser arrancada. Olhou na direção de um casal que acabara de fechar a porta de casa. Deixou o corpo lá, foi correndo e com um salto colocou a porta adentro. Lá, enquanto o homem armava sua espingarda, ele lançou as garras no rosto do pobre; que caiu no chão atrás do fogão, e lá mesmo foi assassinado. A mulher correu para dentro do quarto e a fera foi andando nas quatro patas, com a boca pingando o sangue do marido, até encontrá-la. Saltou na cama e pintou a parede com suas vísceras.
Ouviu um carro passando pela estrada atrás da casa. Foi tomado por uma medonha fúria, rosnou e saltou pela janela, partindo para a estrada e começando a perseguição. Tinham duas motos e um carro. Disparou correndo como um guepardo em uma savana, com uma velocidade impressionante, enormes músculos se contorcendo e patas que quando se chocavam com o chão erguiam poeira. O carro estava tomando distância quando ele saltou para dentro da mata e desapareceu. Os homens com suas famílias aceleraram seus veículos e por um segundo acharam que estavam à salvo.
Mas foi na próxima curva que ouviram o mato quebrando do seu lado direito. Quando iluminaram com uma lanterna, viram o monstro peludo correndo entre as árvores e em um salto desesperador se jogou no carro. Quebrou os vidros da frente e metade dele se projetou para dentro. Começou a atacar o motorista, que perdeu o controle, girou o volante para a direita e depois totalmente para esquerda. O contrabalanceamento fez o carro capotar.
As motos que estavam muito próximas, não conseguiram se esquivar e acabaram se envolvendo no acidente. O barulho do carro e das motos virando e o jogo de luzes no meio da escuridão da estrada causou um grande alvoroço e trouxe o resto de pânico aos que viveram. O barulho foi ouvido até na vila. Um dos homens caídos de moto conseguiu se erguer, mancando, iluminado pelos faróis do carro e das motos viradas. Foi ver se a besta tinha sido morta, mas no interior do carro só haviam pessoas, nem sinal dela. Ouviu um passo na sua retaguarda, mas antes que pudesse virar, sentiu garras entrar por suas costas e sair pelo seu esterno, na altura do coração; e um bafo quente no seu pescoço. Caiu sem vida. Os outros começaram a gritar, mas logo foram silenciados.
Na vila, das famílias que restaram, três homens pegaram seus rifles e espingardas e ficaram dentro da casa de Seu Haroldo, afim de fazer a defesa final.
- O bicho foi atrás de Manuel e dos meninos, deve ter morrido na batida.
- Tomara Haroldo, se ele aparecer por aqui a gente mete bala.
No quintal, o cachorro começou a latir, mas deu um grito final e parou. Imóveis, ouviram pesados passos no lado de fora e uma respiração forte, de alguma besta, rondando a casa.
- Será que é ele? Vou lá ver.
- Não sai agora, o lobisomem está lá fora.
Todos se afastaram e apontaram para a porta da frente, esperando que ele arrombasse. Mas foi do frágil teto que a enorme coisa caiu e já saiu golpeando os homens. Estava machucado devido ao acidente, e os pelos negros pingavam sangue. Recebeu vários tiros da casa antes de conseguir revidar a altura. Um dos tiros acertou a única lâmpada, e a batalha aconteceu no escuro. Com o lampejo das armas, avançou no pescoço de um; dilacerou o braço de outro e golpeou a mão de um terceiro até deixar todos desarmados. Após isso, a matança ocorreu sem piedade.
Ele saiu de casa em casa, atacando alguns moradores desavisados ainda em suas camas. Botou as portas a dentro, farejando por qualquer sinal de vida para tirar. Matou animais de estimação, destruiu alguns berços com crianças e causou a total aniquilação dos moradores. Sentiu o cheiro de um homem que tentava se esconder entre as árvores e foi lentamente uivando para matar sua vítima, primeiramente de medo.
Quando desembocou de novo na estrada, ergueu o nariz a favor do vento e com um olhar raivoso entendeu que mais à frente restavam ainda duas pessoas vivas. Saiu correndo furiosamente até encontra-las. Era uma mulher com uma criança nos braços. A coisa emitiu um som assombroso que a fez perder as forças nas pernas e cair segurando a criança. Mas ao invés de ataca-la, começou a andar ao redor da mulher, como que farejando alguma coisa. Ela apenas conseguia chorar e gritar por misericórdia.
- Por favor não mate minha filha. Não a mate, não a mate.
A fera se pôs de pé e suspirou fundo.
- Isso mesmo, é uma menina linda assim como a sua, que mataram hoje.
O bicho enlouqueceu uivando e balançando a cabeça. Passava as garras no chão como tentando afastar alguma memória. A mulher a deixou confusa e aproveitou o momento para continuar andando pela estrada, na esperança que permanecesse viva e pudesse encontrar algum carro que a levasse para cidade. Mas ainda de costas percebeu que a fera silenciou e antes que entendesse alguma coisa, sentiu enormes garras cortando suas costas. De um lado para o outro, de cima para baixo numa flagelação insuportável.
Ela caiu e largou a garota envolta em panos próximo a si. Ainda conseguiu olhar para sua filha enquanto o lobisomem abria um buraco em suas costas.
O monstro cheirou a criança, olhou para a lua e uivou.
...
Acordei encostado em uma cerca de madeira. A luz do sol já tinha desfeito a transformação e eu retornara ao normal. Imundo, com as roupas rasgadas, machucado e totalmente coberto por sangue. A coisa deve ter sido feia. Tinha uma tênue memória do que tinha ocorrido e uma criança no meio do caminho me deixou confuso; também suja de sangue porém viva. Como sempre, perdi a consciência e não faço a mínima ideia do que fiz.
Tudo começou na adolescência, e na primeira noite que me transformei meu pai foi a primeira vítima. Na manhã, acordei com as roupas rasgadas e ele com os órgãos espalhados por todo quarto. Eu não entendia o que acontecera, mas ao vomitar vi coisas estranhas, como dedos e pedaços de órgãos. A polícia não acreditou em minha inocência e me deixou numa casa de detenção para menores. Eu não conseguia explicar o ocorrido, mesmo com as intensas sessões com psicólogos.
No mês seguinte, após uma noite de lua cheia, meu colega de quarto também acabou trucidado. Foi aí que decidi fugir de tudo. Eu que não tinha ideia do que era essa maldição, entendi do que se tratava e vi que lugar nenhum seria seguro para mim ou para outras pessoas. Em meio ao meu plano de não machucar ninguém, forjei com um ferreiro um conjunto de correntes feita de Titânio. E nas noites de Lua Cheia seguintes, consegui manter a fera bem guardada; amarrada à poderosas pilastras ou grossas árvores. Inclusive, na primeira noite de lua cheia nessa cidade, fui para a Fábrica abandonada e me algemei por lá. E as tinha levado na mochila também para o vilarejo, uma para mim e outra para ela, na esperança de dar tempo eu poder impedi-los.
Há alguns anos descobri que uma mulher com a qual tive um caso deu a luz a uma menina. O tempo nos separou e eu perdi o contato. Mas eis que ela me achou e me contou sobre certos episódios, através dos quais entendi que Nicole também tinha herdado a tal Herança Maldita. Daí saí em sua procura.
Antes que alguém passasse por aquela estrada, voltei à casa onde deixei meu carro e a vila inteira estava manchada por sangue. Não podia deixar a menina lá a própria sorte, a coloquei no banco de trás e segui viagem. Sei que não éramos os únicos, deve haver outros por aí. Eu era jovem quando meu pai morreu, mas lembro dele viajar pelo menos uma vez todo mês. Será que... será que era por isso que ele evitava tocar nesse assunto?
Começarei uma nova busca por pessoas iguais a nós. O que me intriga no entanto, foi o motivo da fera ter poupado essa criança, visto as inúmeras que matou na noite anterior. Não sei ao certo, será que ela reconheceu um dos seus? Será que essa menina... Não, como seria possível ela perceber... Pelo cheiro? Deverei esperar alguns anos para descobrir.