Sótão
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A moça rebolava na cama.
No seu sonho alaranjado, o seu adorado personagem, daquela série tão masculina, esperava por ela com um sorriso discreto. Ahh… era agora… era agora que ela ia, finalmente, dar-lhe um…
— Mana.
A voz inocente penetrou o seu sonho e os seus olhos abriram-se por dentro das pálpebras finas. Alguém tinha-a chamado?
— Mana.
A voz mais firme despertou-a e a jovem virou o rosto ensonado para a porta do quarto, onde a silhueta da sua irmã mais nova encarava-a no meio da escuridão.
— O que é? — ela devolveu, num tom rouco e meio bruto, por ter sido despertada na melhor parte.
— Temumbarulhoeeutenhomedonãoseioqueé!
O emaranhado de palavras mal que perfurou a sua audição e a jovem encarou a silhueta escura, sem ter a certeza se tinha entendido o que ela julgara ter ouvido.
— Quê?! — ela exclamou, o mais baixo que pôde, numa tentativa de não acordar a sua avó, que dormia na cama ao lado.
— Chega aqui! — a mais nova pediu, num tom quase… assustadiço.
Relutante, a jovem desviou as cobertas quentes para o lado e calçou os chinelos bem posicionados abaixo da cama e seguiu para as escadas, onde a sua irmã a esperava.
Os seus olhos castanhos ainda recusavam a claridade que vinha da cozinha, então ela semicerrou-os, enquanto observava os verdes e bonitos da irmã.
— O que foi? — ela perguntou, enquanto as duas ainda estavam paradas à porta do quarto.
— Tem uma música a tocar e eu não sei o que é.
A mais velha fitou a loira por um longo minuto, o seu cérebro sonolento tentando processar o que esta tinha dito.
— Uma música? — a morena retorquiu, incrédula.
— Sim! — a mais nova disse, o seu tom quase implorando por ajuda. — Chega aqui.
A jovem quis bufar.
Era uma e tal da madrugada, ela tinha sido acordada na melhor parte do seu sonho, e agora havia uma música estranha a tocar pela casa. Lindo! Porque é que a mãe tinha decidido ficar a dormir fora justo naquela noite?
Tudo parecia um grande absurdo inventado pela sua irmã até que ela… ouviu. Ao chegar a meio da cozinha, uma melodia baixa e esquisita podia ser ouvida aos poucos. Esta parecia entrecortada e era impossível definir de onde vinha exactamente.
Naquele breve instante, a jovem reviveu todos os filmes de terror que ela tinha evitado desde a sua infância. Todas as histórias de fantasmas, todos os contos horrendos e sangrentos, todas as fábulas e lendas antigas, tudo o que ela mais temia parecia ter-se materializado naquela pequena melodia.
Porra.
Calma. Respira! Tu és uma estudante de ciências. Fantasmas NÃO EXISTEM! Essa música… essa música… essa música tem que estar a vir de algum lugar!
Ela viu o olhar assustado da irmã e, assumindo com fervor o seu papel de mais velha, encheu o peito de ar e preparou-se para descobrir a verdade.
Porque há sempre uma verdade. Todo e qualquer fenómeno pode ser explicado cientificamente. Ocorrências sobrenaturais não passam de coisas inventadas por quem não tem nada que fazer.
Sim, era nisso que ela acreditava.
— Isto parece estar a vir do quarto da mãe. Anda. — soando mais corajosa do que realmente era, a jovem começou a seguir até ao primeiro quarto da casa, a sua irmã seguindo-a com alguma relutância.
A morena começou a procurar nas diversas gavetas da cómoda, das mesinhas-de-cabeceira e naquelas esquecidas na parte debaixo do guarda-roupa. Nada. E, enquanto isso, a melodia continuava a tocar, rouca e entrecortada como dantes.
— O que estás à procura? — a sua irmã perguntou, tímida, da porta do quarto.
— Pensava que a música podia estar a vir de algum telemóvel velho da mãe. Mas não tem nada aqui.
— E não é?
— Não, não tem nada aqui. — a jovem respondeu, mantendo a sua pose calma.
Então ela olhou para o tecto e a única resposta possível quase lhe causou um arrepio na espinha. O barulho estava a vir do sótão.
O sótão da casa era velho.
Era composto por dois cómodos e, para além de bater recordes em acumular teias de aranha, mesmo limpo de vez em quando, um deles era o antigo quarto da avó e, por isso, estava repleto de fotografias de familiares por todos os móveis antigos.
Fotos de casamentos dos seus filhos, fotos de todos os seus netos, em vários momentos da sua vida e, claro, as variadas imagens de santos que acompanhavam os retratos.
Nenhuma das duas gostava realmente do sótão.
Mesmo quando a mãe arranjou o quarto de dentro para ser o seu quarto de brinquedos, onde todas as Barbies, Nenucos, peluches e demais coisas de plástico descansavam, um pavor absurdo tomava-as sempre que tinham de passar pelo velho quarto da avó.
Durante vários anos debateram com aquele receio, mas este não passava disso, um estúpido receio de criança.
Mas, enquanto a mais nova ainda nutria um medo profundo, recusando-se em subir ao sótão à noite, a mais velha tinha descartado aquele antiquado temor e conseguia estar no sótão a qualquer hora, sem medo.
E foi engolida por essa sensação corajosa, que ela abriu a porta de madeira e começou a subir a primeira escada para cima.
— Vem comigo. — ela pediu, numa tentativa de ver a irmã ultrapassar aquele medo.
— Eu não vou. — a loira disse logo, os olhos assustadiços observando a sua mana a milímetros de entrar na escuridão.
— Então fica aí. — a morena disse, tentando afundar aquela mínima aflição.
E som da melodia ficou mais claro e mais forte a cada escada que ela subia.
Descartando o primeiro quarto, onde todas as velhas fotografias a observavam com olhos curiosos, a jovem quase voou até ao botão da luz, iluminando o quarto dos brinquedos.
Com a chegada da adolescência, a maioria deles tinha sido arrumada, só restando o enorme pato Donald sentando no canto entre a máquina de costura e a parede da janela. E era nesses brinquedos escondidos que parecia estar a origem daquela estúpida melodia.
A jovem olhou em volta, até fixar a arca onde grande parte dos brinquedos que partilhara com a sua irmã estavam guardados. Segura, agarrou na tapa e abriu-a, começando a procurar pela melodia que, cada vez mais, se tornava clara para si.
Agarrando na caixa do Pega-Peixe, ela riu-se sozinha.
Era aquele jogo idiota que estava a fazer barulho e a assustar a irmã. Um jogo que tinha sido ligado há alguns dias e cujas pilhas tinham decidido dar de si naquela madrugada.
— Achei! — a jovem exclamou do sótão e a irmã, talvez curiosa, ou talvez com um fôlego de coragem, subiu as escadas.
— O que era?
— Era isto. — ela respondeu, mostrando a caixa do jogo, a melodia já bem desligada. — Deve ter sido de termos jogado no outro dia.
— Deve ser. — a irmã concordou, visivelmente relaxada.
— Vamos? — a mais velha perguntou, guardando o jogo e fechando-o na arca.
— Vamos. — a loira concordou, descendo com pressa as escadas, deixando a irmã sozinha para desligar a luz.
A porta do sótão fechou-se, a mais nova sentando-se ao computador, enquanto a mais velha voltava para a sua cama confortável.
No velho cómodo dos brinquedos, uma sombra aproximou-se do pato Donald e sorriu, a sua face contorcendo-se numa expressão quase macabra.
— Também tens saudades delas, não é? — ela sussurrou ao peluche gigante, que deu-lhe um leve meneio de cabeça. — Não te preocupes, para a semana eu arranjo algo novo para desarrumar.
O que pareceu um brilho esperançoso trespassou os olhos de plástico duro e a sombra afagou a cabeça esponjosa quase com carinho.
Não fazia mal se ela fosse desarrumando uma coisa aqui ou ali. Afinal de contas, naquele sótão esquecido, ninguém percebia quando o tempo passava ou onde estavam mesmo aquelas coisas de meses antes. Só quando um barulhinho a mais se fazia. Ou uma melodia de um jogo ressoava ao fundo.
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Fim