Sob o pseudônimo de Agnes Martins Pereira
Não lembro do primeiro poema que fiz, mas certamente era um daqueles infantis que os pais e amigos insistem estar perfeito, mas na verdade está repetitivo, com uma linguagem pobre e tema ridículo. Um dia desses, meu pai me mostrou um poema meu antigo, no qual o eu-lírico, na mente de uma criança de sete anos, discursava sobre abelhas e borboletas.
É desnecessário dizer o quanto eu odeio esse poema.
Meu primeiro adendo no mundo fantástico da literatura foi recitar uma poesia da Cecília Meireles. Seu corpo dizia respeito a uma menina cujo sonho era ser bailarina; entretanto, ao final ela percebe o valor da diversão em contraponto à seriedade de seu objetivo de vida.
Amo esse texto até hoje, mas naquela época, uma criança de oito anos conseguiu estragar tamanha delicadeza.
Quando entrei para o mundo das fanfics, eu escrevia com toda a técnica de uma criança de onze anos, com enredos fúteis e personagens de personalidades abdicadas para se moldarem às vontades loucas da ficwritter.
Não tenho orgulho de nenhuma dessas histórias.
Tocando no assunto de orgulho, eu fiquei mais envergonhada ainda ao descobrir animações japonesas e músicas asiáticas, que criaram um abismo entre mim e aqueles que eu considerava próximos.
Ainda assim, esse mundo era tentador demais.
Pouco a pouco fui formando a minha identidade, e logo percebi que eu escrevia bem, modéstia à parte. Foi por volta daquela época, no florescer de meus quinze anos, que evoluí meu pensamento para algo crítico e depreciativo.
Ora, eu queria ser a melhor no que fazia, e para isso, eu precisava ter ciência de tudo o que fazia de errado.
A escrita, nessa época, tornou-se minha obsessão, minha doença e minha cura. Ela era meu escape da realidade disforme e negativa com a qual eu convivia, e ao mesmo tempo reafirmava sua existência.
Assim descobri o mundo da poesia e do anonimato. Ou melhor, percebi a vantagem de criar pseudônimos e heterônimos a là Fernando Pessoa.
Passei a assinar pelo nome de Alexandre. O nome tão útil me veio após a leitura de uma série que ampliou meu gosto por ficção e fantasia, a mesma que realocou minha mente para a cidade dos ossos.
O mundo então era meu, e eu o moldava ao meu bel-prazer.
No reino da internet não havia regras, não havia pais para dominar todos os passos da minha vida, não havia psicólogos me alienando para ser uma boa pessoa, não havia professores nem amigos e muito menos conhecidos para fofocar sobre minhas ações e atitudes. Eu estava livre depois de muito tempo; eu podia escrever desde romances açucarados a pornôs sadomasoquistas.
As regras do servidor eram o – aparente – limite, mas até sobre elas eu comecei a reinar.
Pus-me a escrever mais e mais, e com isso veio o terrível sentimento de que não era o bastante. Eu não escrevia bem o bastante.
Logo, a leitura compulsiva que me acompanhou desde os quatro anos de idade se apoderou de mim novamente com mais força, mais desespero, até que eu me via absorvendo palavra por palavra, ideia por ideia, de Azevedo a Wilde, de Stiefvater a Austen.
Holden Caulfied que o diga, eu me fechei em meu reinado secreto e todas as pérolas do mar eram minhas.
No mundo virtual eu era reconhecida, eu tinha meu nome estampado em revistas, jornais, blogs e artigos. Eu tinha meu nome nos comentários de todos, embora aqueles que me viam pessoalmente só tinham olhos para a menina quieta, encabulada e obediente.
Pergunte ao pessoal que frequentava meus fóruns, eles lembrarão dos meus títulos; eu não era a obediente, era a obedecida.
Meus olhos não eram iguais aos daquela cigana oblíqua e dissimulada, mas chegavam bem perto.
Via-me tão obcecada quando completei dezessete anos, e tudo se tornou pior a partir do momento que minha vida pessoal influenciou meus textos. Sentimentos que eram guardados a sete chaves estavam expostos nas folhas secas e telas digitais como carne de defunto sendo devorada por abutres. Entretanto, o que de início me era motivo de ira tornou-se minha salvação.
Com o tempo aprendi a manipular as emoções. Eu agarrei com mais força minha coroa quando separei minha vida da de Alexandre, e assim pude assumir diversas facetas em diferentes histórias.
Lentamente manuseei a artimanha de despejar um pouco de si em cada personagem, a criar versões de si mesmo, a cuidar da vida dos outros para esquecer o vazio que é a sua própria. Afinal, eu sou uma ladra e uma escritora; eu era a rainha das linhas tortuosas, das escritas tolas e dos tropeços sem volta para o abismo da auto-piedade.
Como eu amava a minha vida! Eu adorava sair de casa e ir para a praça observar o movimento, escolher a minha próxima vítima entre os humanos com a finalidade de mostrar a todos quem era a mais versátil, mais hábil, mais soberana. Eu adorava me distanciar do mundo real, daqueles que eram contra o meu governo infindável.
Eu escrevia sobre tudo isso, escrevia como se devora um doce suculento, como se sorve um café amargo, como se chora de solidão. Escrevia porque na escrita eu tinha um trono para me amparar se eu caísse.
Até que um dia eu finalmente compreendi: de rainha eu só tinha a sensação.
Então veio a ruína e uma última poesia, o som da menina desfalecendo enquanto sucumbia à exaustão.