Eu estava caindo…
E durante a queda fui engolida pelo caos. Pude sentir as minhas vértebras rangerem, fazendo com que a sensação se alastrasse pelo meu corpo através de tremores incessantes, como se os meus ossos e a minha pele tentassem, em vão, purificar o que pudessem.
Só havia o silêncio…
Por mais que eu tivesse visto o vento subjugar as águas, o céu morrer e a escuridão me consumir, havia ainda essa ausência auditiva que me privava de ouvir os sons desastrosos da minha escolha. E isso doeu… Ansiei escutar as maldições que me seriam direcionadas e as sentenças de meus juízes, porque esse vazio silencioso era devastador demais para suportar: enquanto ele ressoasse impiedosamente, eu lembraria do som que a luz faz ao ser apunhalada pelas sombras; eu recordaria da melodia que o mundo faz quando está morrendo.
Pude contemplar o meu coração e percebi que um dia havia sido o suficiente para transformá-lo…
Levei as mãos ondeantes ao peito, sentindo que o meu coração respondia ao toque com incerteza, como se as batidas fossem tremores compulsivos e amedrontados. Algo maligno havia o tocado, violado um limite que nunca fora previsto, pois jamais fora necessário perscrutar com tamanha minúcia o abismo da crueldade. Sempre ouvi falar sobre corações partidos e borboletas no estômago, mas talvez eu fosse a única pessoa que contemplou, mesmo durante um estado de quase-morte, as suas entranhas serem movidas como se fossem cipós e o íntimo vital e pulsante sendo mastigado e cuspido e torcido como se não significasse nada.
E durante a queda infinita através do triunfo da vida sobre a morte, no cerne da ordenação do caos, eu quis me encolher… Não porque me sentia pequena diante da magnitude da alomorfia, mas sim porque eu nunca seria capaz de me esquecer do dia em que morri sem realmente morrer e das barbáries que sofri por isso.
Queria que o sentimento de gratidão por terem me salvado se sobressaísse.
Queria poder dizer que iria ver aquela situação como uma aprendizagem.
Queria, mas não podia.
Afinal, ninguém sai ileso desse tipo de ruptura.
A escuridão era escura demais para mim…
E, por fim, me permiti chorar. As lágrimas jorravam e tantos pontos de luz foram se formando ao meu redor que, em dado momento, senti que elas me carregaram até um lugar seguro, ninando o meu adormecer com a gentileza que eu precisava, mas principalmente com a aceitação que eu não me permitia dar.
Chorei e dormi abraçada pela luminosidade carinhosa que me curava lentamente, como uma criança que dorme de luz acesa por ter medo do escuro.
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— Ela vai se lembrar do que aconteceu?
A voz questionadora e preocupada do tio Diab foi o primeiro som que escutei quando me permiti sorver a realidade novamente. Abri lentamente os olhos e me deparei com uma enorme janela. Busquei observar se o mundo ainda era o mundo e foi surpreendente presenciar o céu azul da Dimensão Infernal derramar gotas douradas, como se a luz tivesse purificado toda a escuridão que a caracterizava. Ouvi o som das gotas tocando o telhado, explodindo com gentileza sobre a superfície, como se estivessem dizendo “olá” a um amigo querido. Essa visão encheu os meus olhos, pois entendi imediatamente do que se tratava: as minhas lágrimas vagalumescas estavam se derramando através dos céus infernais.
Inalei o ar com força, deixando um suspiro trêmulo escapar. Foi quando eu senti alguém apertar a minha mão, o que me direcionou para o feitor do gesto. As íris escarlates do meu tio me encararam com um misto de muitos sentimentos, como se eles pudessem coexistir naquele espaço tão pequeno com a sua habitual intensidade turbulenta. Parando para pensar, não me lembro de, um dia, tê-los visto serenos: naquela imensidão escarlate de seu âmago, sempre encarei um oceano amotinado, prestes a afogá-lo.
Ele limpou o meu rosto já tomado pelas lágrimas e, com um sorriso aliviado, me segredou:
— Espero que essa seja a primeira e última vez que verei as suas lágrimas caindo do céu.
Senti um toque suave se espalhar pelos meus cabelos e me deixei guiar por ele, revelando que Tristeza estava deitada ao meu lado, como muitas vezes ela fez comigo quando me colocava para dormir.
— Até porque essa função é minha. — Ela declarou, enquanto sorria para mim e deixava escapar um pranto contido.
O cheiro de alecrim, lavanda e camomila alcançaram as minhas narinas e, como se respondesse a ele, sentei-me sobre o colchão. Dei de cara com tia Fubuki massageando as têmporas de Tortura, que estava sentada em uma poltrona e tinha um tecido macio e úmido sobre os olhos, revelando que a mistura das ervas originava-se dali: uma infusão que a minha tia costumava fazer quando tínhamos tido um dia ruim e precisávamos relaxar.
— Ela irá se lembrar. — A mulher declarou repentinamente, enquanto me encarava com doçura e preocupação.
— A questão é… — Voltei-me para a voz de tio Pablo, que estava encostado no batente da porta. — Você quer se lembrar, Ternura?
Abaixei os olhos e encarei as minhas mãos.
Elas ainda tremiam.
O meu coração ainda tremia.
As minhas lágrimas ainda tremiam.
Eu sabia que o meu tio poderia apagar facilmente aquelas memórias, porém eu me esqueceria da coragem de Philip ao me salvar e do seu amor por mim sendo maior do que o seu vazio. Não recordaria da delicadeza do tio Diab em permitir que os meus vagalumes chovessem dos céus, apenas para que, quando eu despertasse, pudesse ver que o mundo ainda era o mundo, porque eu fazia parte dele junto com a minha dor. Não me lembraria da benevolência de Tristeza em querer chorar no meu lugar e do cuidado sempre atento de Tortura em deixar o ambiente preenchido com um cheiro acolhedor, para que eu pudesse me sentir confortável quando acordasse em um local que tinha o aroma de lar, mas principalmente da bravura de ambas quando saltarem rumo ao desconhecido do meu poder, apenas para me proteger dele. Eu não me lembraria da bondade da minha família e do amor deles no momento em que menos senti que merecia ser amada.
Eu não me lembraria da importância e força da minha luz, quando encarasse a minha escuridão.
— Eu vou me lembrar para nunca esquecer da força da minha luz.
A minha resposta saiu, dilatando os meus poros no processo: verbalizá-la era como fazer uma promessa em voz alta para mim mesma.
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Após a conversa tensa e decisiva, comi uma deliciosa torta de maçã e tomei algumas muitas xícaras de chá de lavanda com o objetivo de me acalmar, pois, ainda que a minha mente estivesse mais limpa e certa sobre como eu deveria seguir em frente, o meu corpo parecia não acompanhá-la e os tremores ainda eram projetados através da minha pele. A serenidade dos pensamentos não conseguia acompanhar o caos assombroso que as cicatrizes daquele acontecimento causaram em mim. Além disso, uma coceira incessantemente se espalhava através do meu corpo, causando a sensação de que diversas formigas cavavam túneis em seu interior.
— Acho que preciso tomar um banho. — Declarei ao colocar o pires com a xícara na bandeja que estava ao lado da minha cama.
— Claro… — Tio Diab respondeu de imediato, pigarreando em seguida, como se alguma coisa estivesse incomodando a sua garganta. — Iremos dar privacidade para a senhorita.
Tio Pablo o acompanhou e fez uma reverência pomposa na porta do quarto antes de fechá-la. Soltei uma risada baixa por causa disso e coloquei as pernas para fora da cama. Foi quando encarei a extensão delas que me lembrei do feitiço de aceleração que eu havia lançado em mim e em Philip. Estiquei as mãos e movi os dedos, virando-as para verificar as palmas e os traçados enigmáticos que as cortavam como rios que anseiam ser desbravados. Toquei o meu rosto e encontrei a minha boca, o meu nariz e os meus olhos no mesmo lugar de sempre, mas era como se eles tivessem vivido longos anos em poucas horas. Deslizei os dedos pelo longo cabelo castanho claro, parando antes da primeira mecha terminar apenas para acolher a perfeita curvatura de um cacho que a finalizava. A minha pele ainda tinha a mesma coloração amendoada, porém parecia mais madura e sedosa, ansiando por sensações que eu não conhecia.
Uma sombra surgiu diante de mim e percebi que era tia Fubuki oferecendo-me a sua mão para levantar.
— Por que você não vem se ver? — Ela sugeriu com afabilidade.
Aceitei a sua ajuda e caminhei na direção do espelho. Contudo, nada havia me preparado para ver o meu eu crescido refletido. Toquei as maçãs avermelhadas do meu rosto, surpreendendo-me com a intensidade do lilás dos meus olhos e com os traços singulares que compunham a minha face. Observei o meu corpo coberto por uma fina camisola de seda branca que ressaltava com certa timidez as minhas curvas. O tecido só não conseguia disfarçar o tamanho dos meus seios que, para o meu mais completo choque, eram grandes.
— Parece que você roubou o posto de mais peituda da família da minha madrinha. Ela ficará furiosa. — Tortura falou e soltou uma risada baixa, enquanto abria os botões da minha camisola.
— Ei, mais consideração com aquelas que não foram tão abençoadas assim. — Tia Fubuki a repreendeu de modo divertido e jogou várias pétalas de rosas na água quente da banheira até que a superfície aquosa estivesse coberta por elas.
Quando o tecido escorregou, pude visualizar a completude de todos os meus mistérios e, por mais que me sentisse constrangida por estar sendo observada, havia algo que me impedia de me cobrir com a toalha que a minha irmã me oferecia. Notei que haviam algumas linhas esbranquiçadas nas laterais dos meus quadris e pelos cobrindo a minha pele e o meu íntimo. Os meus cabelos eram longos, volumosos e quase tocavam o fim da minha coluna. Percebi, por fim, que o encantamento se deu, pois era a primeira vez que eu me sentia linda. Tudo em mim parecia ter sido desenhado pelo tempo com dedicação, carinho e sinceridade: aquela era eu materializada dentro da minha própria definição de perfeição.
Três batidas na porta e a entrada repentina da Imperatriz puxando uma arara cheia de roupas quebraram o espanto de me ver pela primeira vez.
— Arrastar esse guarda-roupa rosa e cheio de glitter é considerado tortura em várias regiões diferentes das dimensões, sabia, tia? — Ela reclamou com sinceridade e me encarou. Antes que eu pudesse cumprimentá-la, a Imperatriz caminhou na minha direção e surpreendeu-me com um abraço. O retribui com a mesma doçura, ainda que a situação fosse constrangedora pela minha nudez. Quando ela se afastou, segurou o meu queixo e disse: — Olá, criaturinha!
Deixei uma risada escapar pela forma que ela se dirigiu a mim, como se nada entre nós tivesse mudado, e fui instruída a ir até a banheira. Meus pés tocaram a superfície quente e, sem hesitar, sentei-me, permitindo-me afundar na água por alguns segundos. Percebi, nesse momento, que um pouco de miasma negro evaporava da minha pele e isso provavelmente era o que estava ocasionando a coceira. Quando emergi, encostei-me na parede de porcelana e sorvi o aroma de rosas, lavanda e alecrim. A mistura, ainda que tivesse o intuito de perfumar, era também uma forma de purificar a pele e, pouco a pouco, o incômodo diminuiu até se extinguir.
Enquanto tia Fubuki e a Imperatriz avaliavam o meu novo e, aparentemente, improvisado guarda-roupa, Tortura começou a lavar os meus cabelos e Tristeza sentou-se ao lado da banheira, apoiando-se na borda para que pudesse tocar com os dedos a superfície da água. Por algum tempo, nenhuma das duas disse nada e aproveitei a duração de nosso silêncio para encontrar uma forma de pedir desculpas por tudo o que havia acontecido.
— Você fez o que precisava fazer, Ternura. — Declarou repentinamente a minha irmã mais velha com a sua característica seriedade amável. — E por mais que isso tenha nos assustado e nos feito tomar medidas extremas, ninguém vai te culpar por ter escolhido salvar o garoto que você ama.
Afastei-me da borda da banheira, encolhendo-me no centro, e Tortura passou a enxaguar o meu cabelo. Permiti que a água que escorria se mesclasse com as lágrimas que escapavam dos meus olhos, porém o polegar de Tristeza acolheu com carinho o meu choro e, como se o breve toque fosse capaz de transferir os meus sentimentos mais profundos e os meus pensamentos mais angustiantes, ela me confortou ao dizer:
— E você vai sobreviver, mesmo que acredite que é impossível que o seu coração possa ir muito longe estando em pedaços. Você é forte, Ternura… Nunca deixe ninguém te fazer pensar que a sua bondade é uma forma de fraqueza.
Ao ser acolhida por minhas irmãs, um peso enorme saiu de meus ombros, pois eu sentia que as tinha decepcionado quando optei por ir pelo caminho mais fácil. Ainda que Tortura e Tristeza estivessem sendo treinadas e os seus poderes tivessem se desenvolvido mais do que os meus, a evolução foi gradual e demasiadamente árdua. Quantas dias Tortura delirou de febre e outros sintomas por conta dos venenos que era obrigada a ingerir para se tornar imune a eles? Quantas noites Tristeza havia passado acordada, na chuva e sem comer, pois só lhe era permitido deixar o seu posto quando controlasse as águas que não eram parte do seu domínio? Ao deixar a inveja me cegar, maculei anos de dedicação e ignorei a jornada solitária e dura que elas estavam construindo. Tortura e Tristeza deveriam ser inspirações para mim e não um parâmetro de rivalidade. Aquele homem havia despertado o pior que existia em mim ao me fazer acreditar que apenas os meus sentimentos ruins poderiam me impulsionar: se engana aquele que pensa que o amor não é forte o bastante para vencer. E eu amo as minhas irmãs com o meu coração, ainda que despedaçado, pois sei que elas também sentem o mesmo e me aceitam com todas as minhas cicatrizes.
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Após me secar do banho, passar um incrível creme de lavanda no corpo, enfrentar um feitiço de vento quente da Imperatriz para secar os meus cabelos e colocar um desconfortável espartilho, escolhi um vestido com um corpete rosa que tinha diversas flores coloridas bordadas e que desciam em alturas variadas pela saia branca levemente volumosa. Quando sai de trás do biombo, notei que as minhas irmãs e a Imperatriz não estavam mais no quarto.
— Parece que Philip está despertando e elas foram verificar se Diablair não matou os garotos. — Esclareceu tia Fubuki, chamando-me com um aceno de mão para a penteadeira.
Sentei-me no banco acolchoado e a encarei através do reflexo, ansiando que ela me contasse mais sobre Philip, mas ela me olhava de volta com um misto de preocupação e afeto, como se tudo o que ela precisasse estivesse diante de seus olhos. Ficamos assim por alguns segundos, como se buscássemos nos acostumar com a mudança repentina sem cair no saudosismo de um passado nem um pouco distante. Quantas vezes minha tia havia penteado os meus cabelos, tornando-os intermináveis apenas para me contar sobre as suas histórias? De repente, essa situação tão comum a nós pareceu ter um peso diferente, pois eu já não era mais pequena o bastante para balançar os meus pés sentada no banco… Por mais que quisesse, eu não me parecia mais com a menininha que ela ninava em seus braços por longos minutos. Às vezes, ela adormecia junto comigo, como se não quisesse que eu estivesse sozinha nem mesmo nos meus sonhos. As íris esmeralda dela cintilaram, como se os nossos pensamentos estivessem sincronizados e banhados por nossas memórias. Fubuki, por mais que não tivesse tido filhos ainda, nos criou como se compartilhássemos o mesmo sangue. Até mesmo Blake e Damon, que eram agregados da família, não escapavam de seus cuidados e puxões de orelha. Ela é grandiosa em seu trabalho, virtuosa em suas atitudes e justa em seus julgamentos, mas, acima de tudo, leal àqueles que ama e uma segunda mãe para nós.
Para que esse dia não ficasse ainda mais banhado de lágrimas, tia Fubuki piscou várias vezes para contê-las e começou a mexer em uma caixa grande que estava sobre a penteadeira. Dentro dela, haviam diversos compartimentos que guardavam todo tipo de acessório. Ela vasculhou os espaços e, quando encontrou o que buscava, perguntou:
— O que você acha desse conjunto?
Ela aproximou do meu pescoço um colar com um pingente de flor e da minha orelha um par de brincos com o mesmo formato. Ambos possuíam pedras de quartzo rosa e combinavam perfeitamente com o meu vestido.
— Eles são perfeitos. — Respondi, enquanto acariciava o cordão dourado já devidamente preso. — Parece até que eu estou vestindo a primavera.
— De fato, minha menina, você floresceu… — A mulher me confessa com amabilidade, enquanto penteia os meus cabelos e eu coloco os brincos.
Os ecos de um grito de dor soaram pelo quarto, sobressaltando-nos. Reconheço a voz de Philip e levanto-me imediatamente, porém volto a posição que eu estava por conta do toque em meu ombro. Os grunhidos diminuem, mas as batidas de meu coração preocupado são frenéticas e ressoam através do meu corpo, dando a impressão de que todos os presentes na casa são capazes de ouvi-lo.
— Você poderá vê-lo em breve, querida, mas você precisa saber que da mesma forma que você fez escolhas que te mudaram para sempre, Philip também fez. — Ela explicou e começou a repartir com uma habilidade surpreendente as mechas do meu cabelo.
— O que você quer dizer com isso? — Questionei, engolindo o bolo desconfortável que se formava em minha garganta por recordar da nossa experiência dentro do lago.
— Philip está temporariamente cego, Ternura. — Ela falou abertamente e eu vi a cor do meu rosto desaparecer pelo meu reflexo no espelho. — Mas quando a dor começa a se manifestar, significa que ele está recobrando a consciência e, automaticamente, a visão.
— Em nomes de todos os infernos, como diabos ele ficou cego, tia? — Sussurrei com receio, cravando as unhas nas palmas das mãos para conter o nervosismo que me afligia.
— Ele escolheu matar alguém… De verdade. — Ela me confessou, voltando a me encarar pelo espelho.
A objetividade da resposta foi chocante, porém eu preferia milhões de vezes a sinceridade cruel do que não ter conhecimento da verdade. Acenei com a cabeça como um pedido silencioso para que ela prosseguisse com a explicação.
— Quando escolhemos matar alguém, a nossa alma fica manchada. Os fragmentos da escolha ficam expostos nos olhos através de pontos negros, como um lembrete ao indivíduo por ter se colocado na posição de juiz do destino de alguém. Quanto mais negros os olhos de alguém, mais vidas ele escolheu tirar… — Ela se interrompeu, como se ponderasse se a próxima informação deveria ser passada ou não. Uma veia saltou na lateral de sua cabeça e eu soube que ela estava se comunicando com alguém por seus pensamentos. Quando a resposta do outro lado pareceu chegar, ela disse: — É o caso do Blake, do Diab e do Pablo.
Paralisei diante da revelação, lembrando-me de todas às vezes que eu comparei os olhos de Blake a jabuticabas e uma sombra de tristeza pairou sobre o rosto de Tortura, que sempre me dizia que era uma linda forma de vê-los e que eu deveria contar isso a ele, como um meio de fazê-lo sorrir. Eu nunca havia contado, no entanto.
— Mas os olhos dos tios são… — Não terminei a frase, imersa na confusão dos meus pensamentos.
— Vermelhos. — Ela completou, enquanto voltava a trabalhar no penteado. — Uma brincadeira de muito mau gosto da parte deles, diga-se de passagem, pois a fama dos dois os precede. — Ela se interrompeu por um momento, ao colocar alguns grampos na boca enquanto unia as duas tranças laterais acima dos cabelos, formando uma tiara. Quando os fios ficaram no lugar correto com o auxílio dos grampos, ela começou a espalhar uma espécie de óleo com cheiro de mirra nas mechas que ficaram soltas e prosseguiu: — Os olhos dos seus tios não são como os de Blake, que ainda tem espaços para serem preenchidos, caso ele queira… A esclera deles é completamente negra.
Foi chocante descobrir que muitas coisas que eu não costumava ver significado algum tinham histórias tão sombrias por trás, mas não os culpei por não terem me contado antes. Afinal, como se explica para uma criança de cinco anos que ela convive com assassinos? Certamente eu não os estimaria menos por causa disso, tendo em vista que não tenho conhecimento dos seus motivos, mas a verdade não deixava de ser perturbadora e impactante.
— Ninguém escolhe matar outra pessoa sem um motivo. — Tia Fubuki esclareceu, puxando alguns fios de cabelo próximos de minha orelha e os envolvendo nos dedos indicadores para os cachear. — E as manchas só marcam os olhos daqueles que escolhem matar por amor ou lealdade a outros ou a si mesmos. Aqueles que são assassinos de sangue frio, querida, têm olhos verdes.
Ela se afastou de mim com o olhar triste, abaixando-o em seguida de um modo que eu não podia vê-los. O gesto transpareceu a ideia de que ela não era merecedora da minha presença e, também, pareceu que ela o tinha feito incontáveis vezes em diversas situações diferentes. O significado da ação comprimiu o meu coração, fazendo-me puxá-la pela mão, impedindo-a de continuar se afastando e se considerando a pior pessoa do mundo.
— A minha irmã também tem olhos verdes e eu não a amo menos por isso. — Segredei a ela, acariciando suas mãos com carinho. — E isso não me fará te amar menos, tia.
Ela me abraçou com força, como se a minha aceitação tivesse uma importância imensa. Permanecemos unidas por alguns minutos e quando nos afastamos, os seus olhos transbordavam lágrimas.
— Eu sempre amei a cor verde e me amaldiçoei muitas vezes por ter nascido com os olhos amarelos. — Ela me confessou, sentando-se em um das poltronas perto da janela e encarando a chuva como se não a visse e enxergasse somente os fantasmas de suas memórias. — Tudo mudou quando o meu pai, que também tinha o mesmo dom que eu, começou a me controlar durante a Guerra dos Fraudulentos, que aconteceu na fronteira com o Submundo, e a me usar como uma arma. Nós, que temos a habilidade de ler e transmitir pensamentos, quando não treinamos o suficiente, somos facilmente manipulados por terceiros… Para ser sincera, eu não me lembro do rosto de nenhum mercenário que matei. Só lembro das dores terríveis que tinha na cabeça o tempo inteiro por conta do controle mental descuidado e de ter escolhido matar para que, em algum momento, elas parassem. — Tia Fubuki apertou as pálpebras, como sempre fazia quando se sentia cansada ou estressada e, com a voz baixa, me disse: — Fui fraca por não ter tentando impedir o domínio de meu pai, mas o que me consola é saber que ele enlouqueceu por causa disso e morreu consumido pelos lamentos daqueles que controlou. Ele pagou o preço com a sua sanidade e vida, e eu, com os meus olhos…
As palavras me pareceram pequenas diante da história dela. O que eu poderia dizer para consolá-la? Será que existe algum tipo de construção sintática em alguma língua que seja capaz de se igualar a grandiosidade de certos fatos que vivemos, que consiga oferecer o conforto necessário diante do sofrimento? Novamente, senti os olhos encherem de lágrimas e, por mais que a tristeza devesse ser exclusiva da contadora do relato, eu quis chorar por ela… Derramar todas as lágrimas que lhe foram negadas, só para que ela não precisasse sentir dor toda vez que se lembrasse disso.
Vendo-a sentada com os pés na poltrona e o queixo apoiado sobre os joelhos enquanto via a chuva cair, vi aquela pequena mulher em seu momento de maior grandiosidade: era preciso muita força para sobreviver a esse tipo de experiência, mas é necessário o dobro de força para falar sobre as suas maiores dores. Ainda assim, não me parecia justo… Pois, embora ela fosse uma das melhores pessoas que eu conhecia, a vida não a havia poupado de seu ardil.
Aproximei-me dela e sentei-me no chão. Quando encostei a cabeça em suas pernas, ela levou uma de suas mãos até os meus cabelos, afagando-os sem estragar o penteado. Observamos as minhas lágrimas caindo do céu por alguns minutos, mas quebrei o silêncio ao dizer:
— Obrigada por me contar sobre isso… E eu sinto muito mesmo por tudo o que você passou, tia…
— Obrigada por me ouvir, querida. — Ela agradeceu e, mesmo que eu não pudesse vê-la daquele ângulo, a sua voz parecia sorrir. — Algumas cicatrizes doem mesmo depois que saram, mesmo após tanto tempo… — Ela me respondeu mais baixo, como se aquela fosse toda a força que ela tinha para verbalizar as palavras. — Decidi compartilhar tudo isso com você, pois sei que o seu coração está dilacerado, tremendo como se nunca mais fosse recuperar o ritmo tranquilo das batidas. Eu sei como é estar dentro do próprio corpo sem conseguir fazer nada para impedir que alguém o machuque.
A intensidade da chuva aumentou e, na segurança do colo de minha tia, me permiti chorar naquele momento não por aqueles que eu sentia que tinha frustrado, mas por mim mesma e pela ruptura devastadora que estava me dilacerando.
— Não posso te garantir que o tempo será capaz de curá-la, pois existem certos tipos de sofrimentos que nos corroem em profundidades que a temporalidade não alcança. E eu sinto muito por isso, Ternura… Queria ter o poder de afastar essa dor de você até que ela caísse no Vale do Esquecimento. Queria que o Destino te poupasse de viver os horrores da crueldade. — Ela também chorava e as suas palavras saíam em meio a soluços fortes que faziam o seu peito se mover com violência. Após três tentativas de se recompor, ela conseguiu se recuperar e continuou: — Mas eu sei que você é forte e sobreviverá. Por isso, quando você se sentir pronta para me contar sobre o que aconteceu, eu estarei aqui para te ouvir, pois quando os nossos corações partidos se juntam, eles se tornam inteiros. E enquanto o meu bater, o seu nunca estará só.
As palavras dela abriram as comportas dos meus olhos. Em seu colo, chorei todas as minhas lágrimas e, mesmo que não conseguisse verbalizar os fatos, expressei a dor que eles me causaram e a intensidade dos danos.
Do lado de fora, já não era mais possível distinguir as gotas da chuva: elas haviam se tornado uma correnteza que, por mais que não parecesse, levavam consigo a minha dor.
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Após desabafar em silêncio com tia Fubuki, conversamos sobre os danos do incidente.
— Quer dizer que voltamos no tempo por conta de uma distorção temporal que os meus ventos criaram? — Perguntei, mantendo sobre o rosto o pano com a mistura especial de ervas de minha tia para diminuir o inchaço dos olhos.
— Sim e, para a minha sorte, terei mais tempo para resolver as pendências da festa. — Ela me respondeu e a ouvi torcer o seu pano sobre a bacia com a mistura.
O quinto grito de dor de Philip ecoou pelo quarto e, como nas vezes anteriores, o meu corpo imediatamente respondeu, tensionando-se por completo. Todavia, decidida a ouvi-lo em pleno desespero pela última vez, tirei o tecido do rosto e me levantei, pronta para ir até ele e disposta a enfrentar a todos se fosse necessário.
— Vá! — Minha tia disse simplesmente, colocando o seu pano banhado pelas ervas sobre os olhos. — E não se atrasem para o jantar. Por todos os infernos, essa família ganhou algumas horas a mais, então iremos aproveitá-las em paz, harmonia e com a barriga cheia.
Beijei ambas as mãos dela para me despedir, sentindo-me mais próxima de minha tia do que nunca, e caminhei até a saída, disciplinando os meus pés que queriam sair correndo até Philip. Quando alcancei a maçaneta e a girei por completo, ao abrir a porta, encontrei tio Pablo parado do lado de fora. Ele estava encostado na parede, com as mãos nas costas e, por mais que sorrisse para mim, os seus olhos estavam tristes, revelando que ele havia escutado tudo e confirmando as minhas suspeitas de que era com ele que tia Fubuki estava falando por pensamento durante a nossa conversa. Certamente ele estava aguardando a minha saída para ver como a minha tia estava, pois ele deveria saber mais do que ninguém o quanto aquela história era uma cicatriz dolorosa para ela.
— Como você está? — Ele me perguntou, afagando com cuidado o topo da minha cabeça para não desfazer o penteado.
— Vou sobreviver. — Respondi com sinceridade e vi de relance Tortura, Tristeza e a Imperatriz saindo do quarto ao lado com toalhas sujas de sangue e bacias de água vazias que, todavia, estavam manchadas por um líquido negro.
— Sei que vai. Você é forte, minha pequena não mais tão pequena assim.
Tio Pablo me abraçou demoradamente e com força, beijando a minha testa antes de se afastar como ele sempre fazia. Contudo, segurei o tecido de sua roupa, impedindo que o enlace se rompesse. Ele não se moveu nem um centímetro sequer e, como se o tempo lhe fosse algo secundário e eu fosse uma das partes mais importantes de seu coração, aquele homem grande e de aparência imperiosa continuou a me acolher em seus braços com toda a humildade e devoção necessárias.
— Ela também escolheu se lembrar. — Ele confessou repentinamente com a voz baixa, apoiando o queixo sobre a minha cabeça, como se, além daquele espaço em que estávamos, ele estivesse visualizando algo afogado pelas águas do passado. — Lembro que ela acordou ensopada de suor por conta dos pesadelos, completamente ofegante e com os olhos assustados… E eu não podia fazer nada. Não podia parar aquela dor que a assombrava… — Ele se interrompeu e respirou fundo, dando a entender que falar sobre isso também era uma cicatriz dolorosa. Nesse momento, percebi que muito se fala sobre aquele que sofreu o dano, mas muito pouco é repercutido sobre aquele que ama essa pessoa e precisa contemplá-la enlouquecida pelo próprio sofrimento sem poder fazer nada. — Durante o longo tempo em que isso aconteceu, eu mal dormia, pois tinha medo de não estar disponível no segundo que em que ela precisasse de mim. Eu estava exausto fisicamente, mas nada se comparava ao cansaço de vê-la sofrer sem poder fazer nada… Cogitei até mesmo apagar as memórias sem o consentimento dela, mas essa escolha cabia somente a ela, pois eu nunca seria capaz de fazer aquela dor desaparecer sem que ela decidisse, em seu coração, que queria isso.
Senti a respiração dele tremer dentro do peito e o escutei engolir os suspiros desesperados que ameaçavam sair de sua garganta. Não ergui os olhos, paralisada tanto pela dor da situação quanto pela surpresa de presenciar a tentativa dele de não chorar. Afinal, eu nunca havia visto o tio Pablo chorar.
Foi quando me lembrei de uma conversa que tive com o tio Diab, alguns anos atrás, na beira do pequeno lago que fica nas dependências da Mansão Infernal. Nós estávamos descalços dentro da água e com as calças dobradas de modo que as mesmas não se molhassem, enquanto disputávamos quem conseguia arremessar as pedrinhas o mais longe possível sobre o lago. Eu o questionei de forma inocente se o tio Pablo não estava chorando escondido, por conta do acidente que havia acontecido mais cedo. Basicamente, eu havia escalado umas das Macieiras de Eva do quintal, quando me desequilibrei. Foi quando o tio Pablo saltou no ar e me segurou, recebendo todo o impacto da queda quando aterrissamos no chão com violência.
— Ele ficará bem… — Esclareceu Diablair, posicionando-se para lançar sobre a superfície do lago uma pedra grande demais, que eu tinha certeza que afundaria. — A única pessoa que pode fazê-lo chorar de verdade é a Fubuki.
Na época, eu não compreendi o peso das palavras do meu tio, pois estava focada demais em equilibrar o inalcançável placar de 30 a 3. Entretanto, hoje, eu entendo… Não é que o tio Pablo se faça de forte o tempo inteiro e que nos ame tão pouco ao ponto de não chorar por nós. Ele apenas é demasiadamente apaixonado pela minha tia e o sentimento que os une é algo que ele não tem com mais ninguém. Para ele, ela é única… tão única que ele reserva para ela todas as suas lágrimas, assim como a totalidade do amor que transborda de seu coração.
— Eu não sei se, nesse dia, ela conseguiu ouvir o meu desespero… — Ele continuou, sussurrando, como se me confessasse um segredo. — Mas Fubuki escolheu seguir em frente e se permitiu lembrar com a justificativa de que, no futuro, alguém iria precisar dela e da sabedoria emocional que ela nem mesmo tinha naquele momento. — Tio Pablo se afastou e segurou o meu rosto com ambas as mãos. Contemplei, pela primeira vez, os seus olhos marejados que, todavia, destoavam do sorriso sincero em seus lábios. — Ela se lembrou, porque sabia que alguém que ela ama precisaria dela, da sabedoria de sua trajetória e das histórias de suas cicatrizes. Mesmo sem ter conhecer, Ternura, ela se lembrou do que aconteceu por você.
Não sabia como a chuva estava do lado de fora, pois estávamos em um corredor sem janelas e o som das gotas foi abafado pelo eco potente de um dos gritos de Philip, mas, se dependesse da intensidade das lágrimas que escapavam de meus olhos, com certeza a terra ainda estava sendo assolada por uma tempestade torrencial. Era impossível não se emocionar com tal revelação. Eu sabia que, na época em que tudo aconteceu, tia Fubuki não estava se referindo a mim excepcionalmente, porém saber que, desde antes do meu nascimento ela estava disposta a estar presente no dia mais difícil da minha vida, fez o peso do meu coração diminuir ainda mais… Fez com que essa situação se tornasse mais suportável.
Novamente, Tio Pablo beijou o topo da minha testa e acolheu o meu rosto com as mãos, observando o fundo dos meus olhos emocionados com alegria e orgulho. O gesto também fez chegar ao meu coração a sensação de que, da mesma maneira que a sua esposa decidiu estar ali para mim, ele também estava me dizendo, em silêncio, que escolheu me amparar com a sua alma, os seus ossos e o seu coração.
— Você está tão linda… — Ele declarou de repente, como se tivesse deixado um pensamento escapar. — Eu costumo dizer para o meu irmão que você pode até ser a protegida dele, mas, para mim, você é a menina dos meus olhos, ainda que eu não possa mais te pegar no colo e te salvar das quedas das árvores.
Ainda que abafada pelo nariz entupido de tanto chorar, deixei uma risada esquisita sair. Ele nunca havia me falado aquilo, porém “a menina dos meus olhos”, talvez, fosse a versão completa da metáfora “a minha menina dos olhos de borboleta”.
— Ternura? — A voz de Blake quebrou o silêncio e, ao me virar, vejo metade do tronco dele pendurado no batente da porta do quarto de Philip.
Encaro o meu tio, como se pedisse licença para me retirar, e ele aperta o meu nariz.
— Vá, narizinho vermelho! — Ele diz, colocando a mão na frente da boca em seguida, como se estivesse prestes a me revelar segredos de cunho diplomático. — Eu também vou ver o meu amor agora.
E, após me dar uma piscadela descaradamente charmosa, ele caminhou até a porta do quarto em que tia Fubuki estava. O vi respirando fundo antes de girar a maçaneta, como se a sua vida fosse mudar completamente quando ultrapassasse aquele último obstáculo entre eles. Quando a mesma se abriu, vi os olhos dele resplandecerem não só pela mudança de iluminação, mas também pelo motivo pelo qual ele sentia vontade de ver o mundo. Os seus lábios formaram um sorriso encantador que ninguém, além de tia Fubuki, era capaz de fazê-lo dar. Os poucos passos que o vi dar para dentro do quarto, revelaram uma leveza quase idílica, mas que, ao mesmo tempo, carregavam todas as certezas que ele tinha quando o assunto era ela.
Quando a porta se fechou, percebi com certa emoção que havia acabado de capturar as reações de um homem apaixonado, que refletiam a doçura do primeiro e único amor, mas também a maturidade alcançada por esse sentimento. Eles estavam juntos a tanto tempo e, ainda assim, haviam os fragmentos singulares do amor em sua forma mais verdadeira e sincera em cada uma de suas ações cotidianas. Nesse instante, percebi que aquele homem amava a sua mulher do jeito certo de amar: com profundidade, humildade e adoração. Não havia espaço para temer a entrega, pois o seu coração estava completamente preenchido e rendido pelo amor que ele sentia.
Com essa visão doce e inspiradora, encarei a entrada do quarto de Philip, e vi Damon, Blake e Necromanteion já distantes no corredor. Eu não sabia o que encontraria quando atravessasse aquela porta, porém eu sabia que o homem que alterou o significado de todas as minhas dúvidas para as mais verdadeiras certezas estava bem ali, esperando por mim. Não havia espaço para o medo e para as incertezas e, decidida a amá-lo com o amor que apenas o meu coração era capaz de oferecer, comecei a caminhar em direção àquele ao qual eu estava destinada.