Até Eu Te Perder (Parte 1) (Em Andamento)
Sabrina Ternura
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Tipo: Romance ou Novela
Postado: 17/10/21 02:25
Editado: 09/09/24 19:15
Qtd. de Capítulos: 11
Cap. Postado: 06/08/24 18:49
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 46min a 62min
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Não recomendado para menores de catorze anos
Até Eu Te Perder (Parte 1)
Capítulo 9 Acolhido pela Escuridão

Nunca se esqueça, caro amigo que lê, que a coragem para amar é o primeiro passo para o amor.

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O que nunca te contam sobre viver na escuridão é que, em dado momento, você se acostuma com ela. Portanto, quando afundei nas águas sombrias, nadei sem me perturbar em ser engolido pela selvageria cruel daquele breu já conhecido. Era como se, a cada braçada em direção ao fundo, eu me sentisse em casa, só que dentro de outra pessoa. Ao passo que, ainda que aquilo que parecesse certo, também me soava errado: o ambiente podia ser o mesmo, mas haviam coisas fora do lugar, como se eu tivesse recebido uma visita inesperada. Eu não me importaria que Ternura entrasse em minha vida e a virasse de cabeça para baixo — na verdade, eu esperava ansiosamente que ela me bagunçasse —, porém não dessa forma: não era justo que ela se perdesse na minha escuridão, porque eu tive medo de escapar dela; não era justificável que ela pagasse um preço tão alto pela minha covardia.

De súbito, comecei a sentir uma certa resistência da água, como se eu não fosse mais bem-vindo a partir daquele ponto e eu soube que Ternura estava em algum lugar atrás daquilo, pois o meu coração, até então preenchido pela calma, brandou em meu peito como se precisasse dela para existir — e, de fato, precisava. Um tímido brilho amarelado surgiu alguns metros à frente, seguido de muitos outros. Uns passavam por mim e se apagavam, enquanto outros piscavam diversas vezes ao longe e resplandeciam. Ainda que a pressão da água sobre o meu corpo aumentasse gradativamente, fazendo com que os meus órgãos começassem a ser comprimidos no processo, estanquei no lugar por alguns segundos ao perceber que todos aqueles pontos luminosos se tratavam, na verdade, de vagalumes. Nesse momento, me forcei a continuar em frente, ainda que a ideia de nadar entre as lágrimas de Ternura fosse a coisa mais consternante que fiz em minha vida, pois o meu coração ansiou ter chorado todas as lágrimas dela, só para poder descansar tranquilo depois, sabendo que a tristeza não havia lhe atingido. Eu preferia mil vezes viver sob o jugo da crueldade do que saber que, por trás de seu sorriso bondoso, havia tanta dor.

Ao atravessar a horda luminosa mais triste de todos os tempos, mergulhei mais fundo no íntimo de Ternura, sentindo cada vez mais distante a sensação de estar em casa e me acostumando com a ideia de que eu era um invasor naquela vasta imensidão obscura. Embora estivesse mais adaptado à pressão da água, o meu corpo começara a formigar e tive a sensação de que o mesmo estava mais pesado, sinalizando que era necessário encontrar os Desígnios o mais rápido possível.

Inesperadamente, a voz de Diablair ecoou pelas águas e o vi vindo em minha direção com uma ira palpável nos olhos. Quando tentei desviar dele, no entanto, o mesmo atravessou o meu corpo, ignorando completamente a minha presença. Outras vozes emergiram, enquanto diversos retalhos memoriais vagavam de um lado para o outro, imersos na mais pura confusão. Não era possível distinguir o que eles falavam, mas quis imediatamente me encolher e cobrir os ouvidos, como se o gesto pudesse afastar a crescente angústia e a frustração que inundavam o meu peito. Foi então que compreendi que havia alcançado o Vórtex¹ de Ternura e que seria preciso enfrentá-lo para alcançá-la. Tudo o que lhe afligia se materializava ali através de memórias do passado, do presente e do futuro, no entanto o que mais me assustava era uma determinada região acinzentada, diferente da escuridão que cercava todo o local. Me recusei a olhar com mais atenção, pois sentia que, o que quer que habitasse aquele pedaço do Vazio dentro de Ternura, me mataria se eu ousasse sequer encará-lo. Era como se a crueldade tivesse sofrido uma mutação e se tornado algo tão maligno que ultrapassava qualquer capacidade de significação. Era como se a barbárie, a mais crua violência e a morte houvessem se misturado e se tornado aquilo: algo tão ruim, apodrecido e desumano que nem mesmo a parte mais hedionda de minha escuridão quis tocar e corromper. Mesmo sentindo um olhar de escárnio cravado em minha pele como se fosse um machado, nadei em frente, pois, apesar do pavor que sentia, estava cansado de tantos obstáculos subjugando o meu amor.

O Vórtex de Ternura era formado por um turbilhão de pequenas memórias que se converteram em sentimentos negativos que foram guardados a sete chaves. O mais curioso é que, diferente de mim e de outros que haviam sido tocados pela escuridão, as vozes que se sobressaiam pertenciam a ela própria e sempre eram em tom de retaliação para si mesma. Por isso, quando eu conseguia distinguir bem o que era dito, buscava respondê-la com palavras de afirmação, pois, por experiência própria, eu sabia que ela iria ouvi-las quando precisasse, não importava o quão longe eu estivesse. Ainda que isso não pudesse reparar os erros do passado que a magoaram, eu queria que ela soubesse que ninguém podia medir o que ela sente e que cada dor, pequena ou grande, é digna de pauta.

Ele quis dizer que você é fraca”, mas você é a mulher mais forte que já conheci.

Ela não disse nada de errado, até porque você realmente é desastrada”, quem nunca quebrou uma dúzia de copos por ano que atire a primeira pedra! Não se esqueça que foi por sua causa que a palavra gentileza foi parar nos dicionários.

Eles estão certos, você deveria parar de achar que vai ser forte o suficiente para salvar alguém um dia”, mas você me salvou, meu amor.

Ternura acreditava muito na bondade das pessoas e isso seria algo admirável, se não lhe fosse tão nocivo. Ela engoliu todas as piadas que visavam diminuir o seu potencial, fingiu que não escutara todas as vezes haviam a subestimado nas mais simples atividades cotidianas e, por todas as pragas do purgatório, sorriu quando falaram algo que a incomodava. As memórias com a família Infernal apareciam em situações que normalmente envolviam uma proteção exacerbada em relação a ela e isso claramente a sufocava, mas o que me incomodou foram os olhares de desprezo que ela recebia de alguns membros da realeza do Hades, enquanto entregava-lhes o seu melhor sorriso. Essa memória do futuro ficou cravada em mim, pois eu sabia o porquê daquela reação: todos eram desgraçados preconceituosos e hipócritas que, em bando, declaravam a morte de pessoas da cor de Ternura, mas, nas sombras, investiam valores absurdos em mulheres submundanas traficadas para o Hades só para terem concubinas com aquele tom de pele. Não os conhecia, mas gravei o rosto de cada um em minha mente, pois na hora oportuna eu os mataria lentamente, só para fazê-los pedir clemência por terem pensando qualquer coisa da minha mulher. Por todos os deuses, eu congelaria a porra do inferno, caso o diabo olhasse torto para ela.

Em meio ao sentimento de asco e ódio, dei continuidade nas braçadas, sentindo os meus pulmões queimando e os meus dentes rangerem. Conforme a escuridão tornava-se mais sombria, a temperatura diminuía, fazendo com que o meu corpo inteiro se sacudisse em tremores. Era como se alcançar mais profundidade equivalesse a se aproximar de algo maquiavélico que bebia da perversidade alheia… algo quase demoníaco que claramente não pertencia a Ternura. Notei a borda do Vórtex próxima e me preparei para a comoção que aconteceria, porque aqueles sentimentos eram, também, guardiões e não me deixariam passar sem lutar. Já que eu não havia sido corrompido por eles, haveria uma tentativa de me arrastar para fora na força bruta.

Como se lesse os meus pensamentos, o Vórtex aumentou a sua velocidade giratória e eu precisei de um esforço sobre-humano para me manter no lugar, contudo não consegui permanecer imóvel diante da forte pressão e fui lançado com violência para a lateral espiral, que parecia ansiosa para me carregar até o cerne do redemoinho. No instante do impacto, no entanto, senti diversas mãos me agarrarem, puxando-me para fora das paredes do turbilhão. Apesar de parecer que o Vórtex havia alcançado a sua potência máxima de rotação, elas permaneciam me segurando, como se suas existências dependessem de mim — e, de fato, dependiam.

Quando o Desígnio da Morte passou os braços ao redor do meu tronco, puxando-me com violência para o outro lado do sorvedouro, o meu corpo foi arremessado, fazendo-me rodopiar de maneira atrapalhada e veloz para trás de meus salvadores, criando uma certa distância entre nós. Mesmo que eu ainda estivesse rodopiando descontroladamente, a diminuição da velocidade me permitiu observar os Desígnios em suas formas espectrais com a clareza que me havia sido restringida durante todos os anos sombrios em que os tive dentro de mim.

A Fome tinha uma aparência esquelética que se realçava por conta de suas vestes impecavelmente brancas e que pareciam maiores em seu corpo magro. O tecido alvo, que cobria desde o seu pescoço até os seus pés, escondia as diversas bocas famintas que estavam espalhadas por sua carne, prontas para se alimentar da avareza, da gula, da inveja, da ira, da luxúria, da preguiça e da soberba humana. Os seus olhos amarelos tinham a mesma tonalidade do ouro quando fundido e eles seriam encantadores se não fossem fundos e escuros, como se a desnutrição de seu corpo transbordasse pelas janelas de sua alma faminta e pronta para devorar quem quer que ousasse lhe encarar. Não era possível dizer se ela era homem ou mulher, já que os cabelos grisalhos e longos lhe davam uma aparência feminina, mas os lábios murchos e rachados denunciavam uma indiferença tipicamente masculina. Em suas orelhas haviam brincos de prata com o formato de uma balança dividida no meio. As lendas diziam que esse adereço da Fome fora forjado com as trinta moedas de prata que Judas ganhou na fatídica noite em que traiu Jesus.

Já a Guerra tinha uma postura ereta quase forçada, cabelos negros como a noite cuidadosamente penteados para trás e olhos vermelhos que pareciam possuir um ar destrutivo plainando ao seu redor. O corpo musculoso destacava-se ainda mais na farda militar cheia de insígnias, fazendo com que o homem tivesse uma postura implacável, quase corrosiva a qualquer coisa que não fosse sinônimo de extermínio. Ele era maior do que os outros Desígnios, mas anormalmente alto diante de qualquer humano: era como se a altura de seu corpo tivesse que acompanhar a grandeza de suas conquistas para alimentar a sua soberba. Entretanto, nem mesmo seu tamanho antinatural era capaz de esconder as diversas espadas cravadas em suas costas. Elas eram a materialização da morte nos campos de batalha, mas sobretudo um aviso: se ele era capaz de se ferir com tamanha selvageria apenas para fazer de seu corpo um templo bélico, o quão cruel ele poderia ser com os seus inimigos?

A pequenez da Peste fazia ela contrastar dos demais, pois a sua aparência infantil e as suas íris que cintilavam um breu obscuro quase sobrenatural, seriam capazes de cegar o mais inteligente dos homens apenas para matá-lo sorrateiramente em seguida, como uma doença que se alastra por nosso corpo imersa na grotesca quietude da retaliação. Ela estava flutuando de cabeça para baixo, com as suas pernas na posição de lótus, fazendo com que os seus longos cabelos escarlate se espalhassem esvoaçadamente em torno de sua cabeça, revelando que os fios, na verdade, eram helmintos ansiosos para parasitar dentro de alguém. A sua cabeleira rubra estava achatada por um jarro de pedra velha, enquanto algumas moscas dançavam ao redor do curioso apetrecho. A sua pele possuía uma coloração esverdeada que remetia a uma grave enfermidade e isso se potencializava graças aos diversos sinais de putrefação e feridas hansênicas que se espalhavam por sua pele. Contudo, foi o sorriso cínico marcado pela falta de alguns dentes e pela presença de alguns podres que fez o meu estômago embrulhar: era como se ela ansiasse infligir sofrimento apenas pelo prazer sórdido de contemplar o seu processo; era como se o fim não importasse, apenas os seus meios.

Por fim, quando os rodopios cessaram, encarei a Morte. Ela estava coberta por um manto de coloração alabastrina que revelava um vestido longo, casto e tão alvo que, se estivesse nevando, seria possível que a vestimenta se camuflasse em meio a alvura. O que realizava o contraste perfeito com o tom de sua pele azul petróleo que se aprofundava em sua longa cabeleira cacheada. Era como se suas roupas fossem nuvens e sua pele fosse o céu por onde elas passeavam… era como se o branco profundo transmitisse toda a sua virtude e candura, enquanto a sua derme, tão expansiva e acolhedora, fosse capaz de nos abraçar por toda a eternidade. Entretanto, todos esses elementos ternos e poéticos entravam em conflito com a grande coroa de ossos humanos que repousava tranquilamente em sua cabeça, assim como o osso de uma costela infantil que atravessava o seu nariz, adornando-o. O que me perturbou, no entanto, foram as íris brancas que eram engolidas pela alveza da esclera e, no cerne de seus olhos, suas pupilas enegrecidas eram apenas dois pontos diminutos. Engoli em seco, pois por mais gentil que a Morte aparentasse ser, havia aquele abismo branco em seu olhar que, ao fundo, abrigava em suas pupilas algo primitivo e fora da mortal compreensão humana.

Os Desígnios encararam-me de volta com a mesma curiosidade, como se buscassem ver em mim os detalhes que haviam sido escondidos pela barreira que nos separou durante todo esse tempo. No entanto, a minha aparência também era novidade para mim, por conta do feitiço de aceleração temporal que Ternura lançou sobre nós dois. Eu sabia que a magia revelava como eu seria no futuro e era decepcionante saber que, por mais que os meus olhos fossem vermelhos e corajosos como os de minha mãe, todo o resto era um lembrete eterno de que eu sou filho de um homem perverso e cruel. Não bastava as marcas gravadas em minha alma, ele precisava se reconhecer em minha pele como se eu fosse sua propriedade. O quarteto diante de mim parecia ter chegado a essa mesma conclusão e, instintivamente, retraíram-se cada um à sua maneira: a Fome desviou o olhar, a Guerra deu um passo para trás, a Peste abraçou o seu próprio corpo e a Morte se encolheu. Não podia culpá-los pelo receio, afinal cada um de nós sofreu nas mãos sádicas de meu pai e sabíamos como Vassily Petrov gostava de mostrar que existia algo pior do que o inferno quando ele se fazia presente.

Eles não iriam retornar para mim sem que eu garantisse a segurança que eles sempre mereceram. Além disso, era preciso fazer alguma coisa, principalmente porque nós cinco já sentíamos as consequências da ausência de nossa simbiose: o tremor nas pontas dos dedos, a lentidão do sangue para chegar nos órgãos vitais e os pensamentos nublados pela abstinência de nosso vínculo. Cerrei os punhos e, seguindo um conselho antigo dado por minha mãe, falei aquilo que veio em meu coração:

— Infelizmente sou filho do meu pai e, por crueldade do Destino, me pareço com ele. Eu serei uma lembrança diária a vocês do que aquele homem é capaz de ser e de fazer, mas eu também sou filho da minha mãe e os meus olhos sempre poderão ser um abrigo consolador para vocês. — A fala atraiu a atenção deles novamente para mim e notei um cintilar de esperança nos olhos que, agora, me fitavam com atenção, o que me inspirou a continuar: — Eu não posso obrigá-los a retornar depois de tudo o que vocês viveram dentro de mim, porém sei que dependemos uns dos outros para continuar existindo. Só que eu… — Engoli em seco, sentindo o meu coração subir até a garganta, como se o medo que me assombra nesse momento fosse capaz de deixá-lo fugir. — … tenho uma pessoa que amo muito e ela precisa de mim nesse momento. Eu só preciso tirá-la desse lago e, para isso, preciso da ajuda de vocês. Não me importo em morrer no processo, porque se alguém tiver que sair dessa porcaria com vida, será ela… sempre será ela. — As últimas palavras saíram em um sussurro abafado, quase desesperado. Fechei os olhos com força para impedir que as lágrimas escapassem e finquei as unhas nas palmas das mãos com força em uma vã tentativa de buscar algum tipo de estabilidade para finalizar o meu monólogo. — Sei que não posso pedir nada a vocês, mas, por favor… por favor! Me ajudem a salvá-la. Eu a coloquei nessa situação e não é justo que ela perca a vida pelos meus erros.

Parei de falar, porém não tive coragem de abrir os olhos. Me sentia constrangido ao pedir qualquer coisa para os Desígnios, porque não me parecia certo implorar que eles voltassem para o lugar onde haviam sido tão feridos. Quando a desesperança começou a me contagiar, senti um toque afável em minha testa, um aperto convicto em meu ombro, um beliscão amistoso em meu pulso e uma mão quente em minhas costas. Abri os olhos e dei de cara com a Morte, enquanto os demais me rodeavam.

— Você não é o seu pai, Philip. — Ela declarou repentinamente.

A gentileza de sua voz ressoou pelos meus ouvidos, fazendo ecos em minha alma no processo. As lágrimas, como se sentissem a vibração poderosa que ressoava em mim, saltaram de meus olhos. No fundo, eu sempre soube disso, mas não sabia o quanto precisava ouvir alguém me confirmar que eu não era a imagem e semelhança de um monstro. Era como se o meu coração temeroso necessitasse confirmar, de alguma maneira, a bondade oculta em mim.

— O que importa, no fim das contas, não é a aparência… — Começou a dizer a Guerra, que segurava meu ombro direito.

— Mas, sim, o seu coração. — Completou a Peste, enquanto apertava o meu pulso esquerdo.

— E você, garoto, descobriu que, apesar dos seres humanos serem constituídos por diversas camadas de sofrimento, o cerne de vocês é revestido, sempre, por amor. — Sussurrou afetuosamente a Fome, acariciando as minhas costas. — E essa substância tão inerente à natureza humana foi a matéria que nos criou…

Antes que eu pudesse respondê-los, uma memória se projetou diante dos meus olhos. Apesar da torrencial chuva que assolava o local, era impossível não reconhecer as profundas cavernas do Poço da Solidão. Em meio a tempestade, duas jovens figuras encontravam-se diante de mim: minha mãe, Ana, estava em cima do corpo ensanguentado do meu pai, Vassily, tentando estancar sem sucesso uma ferida mortal.

Você não vai morrer… Não agora que podemos ficar juntos, maldição! — Ela gritou com tanta bravura que os sons dos relâmpagos que cortavam os céus pareciam pequenos diante de seu destemor.

Sôlnichko², meu amor. — Ele sussurrou, segurando as mãos dela, impedindo-a de continuar contendo o seu ferimento. — Está tudo bem…

Não! — Ela protestou, rompendo em um choro copioso, enquanto aproximava o seu rosto do dele. — Como eu posso te deixar ir, sendo que acabei de me acostumar com a ideia de te amar, Miłostka³?

Entretanto, sem ter a chance de responder, o coração do meu pai parou de bater e o da minha mãe pareceu fazer o mesmo. Após isso, consegui ter acesso apenas a alguns resquícios daquela memória: a chuva e as gotas congeladas que escorriam pelas pedras, como se o tempo tivesse parado; a prece silenciosa de minha mãe; a aparição de uma mulher espectral vestida pela primavera, mas que usava uma coroa de ossos; o toque sutil que ela deu na testa de minha mãe, despertando uma aura que fez surgir as marcas de cada um dos Desígnios por seu corpo, como se eles respondessem ao chamado daquela luminescência estranha que emanava luz e escuridão.

A sua prece de amor foi forte o suficiente para me convocar… — A voz do espectro surgiu suave, mas carregada de imponência. — E eu sei que você será forte o bastante para equilibrar o bem e o mal que estão implicados neste poder, pois apenas o afeto entre dois corações pode domar as nossas sombras e nos guiar pela luz.

Subitamente, tudo volta a ganhar vida: a chuva, as gotas que escorrem pelas pedras e o meu pai, após receber um beijo de minha mãe.

O que aconteceu? — Ele questiona, enquanto se senta e toca o local onde o ferimento mortal estava.

Ela o abraça com força, como se ele pudesse desaparecer repentinamente. No entanto, foi no olhar dela que encontrei a descrição exata para o que eu estava passando nesse exato momento, fora dessa lembrança: a alegria ao encontrar quem amamos mesclada ao medo de ter experimentado o gosto amargo de perdê-la.

Eu te perdi… — Ela sussurrou sofregamente, enquanto as suas lágrimas se misturavam com as gotas da chuva. — Mas agora eu te encontrei.

A memória some e a realidade volta a se projetar diante dos meus olhos. Antes que eu pudesse esboçar qualquer sentimento acerca da origem dos Desígnios, noto o desaparecimento deles.

— Estamos-estamos-estamos aqui-aqui-aqui dentro-dentro-dentro! — Equaliza a Peste em diversos tons de voz através de ecos malfeitos, rangendo os dentes em seguida. — Depois a gente te explica melhor o que aconteceu, mas, agora, vamos salvar a sua garota!

— Garoto, senhor! — Chamou o Desígnio da Guerra, enquanto prestava uma continência. — Fizemos todo o possível para salvar a senhorita Ternura, mas, dada as circunstâncias…

— Para de enrolação, cacete! — Protestou a Peste e, depois de tossir como alguém que está à beira da morte após fumar sessenta tabacos por dia durante toda a vida, ela explicou, sem pestanejar: — Ela está dentro da redoma atrás de você.

Virei-me bruscamente e me deparei com uma redoma de tamanho mediano onde, no fundo, podia ver Ternura em sua versão criança, enquanto o seu corpo quase adulto encontrava-se no topo da campânula, com uma espada completamente cinza cravada no peito, o que a prendia na superfície, fazendo com que o seu sangue escorresse pela cúpula.

— Ele separou o corpo e a alma dela. — Respondeu o Desígnio da Morte, antes que eu pudesse verbalizar a minha confusão ao vê-la daquela forma.

— E está realizando uma sangria. — Completou o Desígnio da Fome em um sussurro rouco, como se sua garganta estivesse completamente seca. — Como ela é muito poderosa, não é possível matá-la apenas com a separação, é preciso matar o corpo e depois o espírito. Enquanto o corpo dela está sangrando até morrer, ele está consumindo a alma dela com a escuridão. Você deve ter reparado que aqui está mais escuro do que na superfície…

Era verdade. Provavelmente, por estar tão próximo de Ternura e automaticamente do cerne, notei que o breu tornava a visibilidade baixíssima e só fui capaz de reconhecê-la porque, ainda que estivesse corrompida pelas trevas, ela resplandecia levemente, como se pudesse sinalizar que a luz era a verdadeira essência de sua alma. Entretanto, quando percebi que a Ternura de dentro da redoma gritou, como se estivesse enfrentando o seu pior pesadelo, cerrei os punhos com força, totalmente enfurecido.

— Quando eu encontrar aquele maldito… — Comecei dizendo, mas fui interrompido pela Morte.

— Já o encontrou. Ele está dentro da redoma com ela. — Ela disse com a voz grave, cruzando os braços. — Não deixe as suas emoções mais instáveis dominá-lo. Você só terá uma chance de salvá-la. Uma! Agarre-se ao único sentimento que você tem certeza, isto é, o seu amor por ela, Philip.

Ela estava certa. Se eu tiver apenas uma chance de salvar Ternura, não posso deixar que os meus sentimentos sejam um obstáculo. Respiro fundo, buscando controlá-los. Ao clarear os pensamentos, percebo uma dormência se alastrar pelo meu corpo, devido a opressão do local somada a profundidade em que me encontro. Creio que os dois fatores só não são letais por conta dos Desígnios e a resistência que eles me oferecem, mas isso não significa que posso continuar perdendo tempo.

— Isso, garoto… É o foco que você precisa ter. — A Fome me elogia em um murmúrio rouco. — Agora vá, salve a sua menina! Não tema a escuridão que você conhece tão bem e tome posse do seu poder…

Nado até o topo da redoma e encontro o corpo de Ternura, que já apresenta indícios da ausência de sua alma: os lábios azulados, selados por um fúnebre silêncio; a pele pálida com manchas roxas, revelando o lento caminhar da morte por seu corpo; os longos cabelos castanhos, que estão espalhados ao seu redor, parecem querer fugir do iminente destino que os aguarda; e as mãos delicadas, resilientemente posicionadas em cima de seu coração, dariam a impressão de que ela está apenas dormindo, mas a espada curta e cinza que as atravessa parece ser aquela que a sentencia ao fim. Olhando-a assim, acolhendo o exício como se este fosse um bom amigo, me faz ter a certeza de que a imagem de Ternura morta me assombrará pelo resto de minha vida.

— É apenas por agora. Logo ela volta para puxar a sua orelha. — Afirma a Peste com divertimento, fazendo-me sorrir no processo.

— General Philip! Ela pode parecer morta, mas apenas o senhor é capaz de alterar essa situação! — Brandou a plenos pulmões a Guerra, após fazer uma continência exagerada que nem mesmo um fortíssimo tapa na nuca dado pela pequena garota ruiva foi capaz de abalar.

A leveza na interação deles foi o que me fez focar completamente no meu objetivo, pois foi neste momento que tive a certeza de que não estava mais sozinho.

Assim, posicionei-me acima de Ternura, de modo que ambos os pés ficassem ao lado de seu corpo, e segurei a empunhadura do gládio. No mesmo instante em que o toque ocorreu, senti a superfície da redoma vibrar e pude notar a aproximação de diversas presenças. Era como se, abaixo de nós, houvesse uma manada descontrolada e invisível, prestes a nos esmagar. Supondo o que viria a seguir e de modo quase natural, como se o meu espírito estivesse acostumado a liderar o meu corpo nessas ocasiões, levei uma das mãos ao meu ombro direito e instantaneamente a aura do Desígnio da Guerra me tomou. Respiro fundo uma última vez e diminuo o aperto dos dedos na empunhadura, de modo a alongá-los.

— Não se preocupe, Philip. — Ouço a Guerra sussurrar com imperiosidade ao meu redor. — Nós só entramos em guerras que temos a certeza da vitória.

Em uma situação diferente, eu teria respondido que não devemos declarar o êxito antes do tempo, mas a confiança imperativa que transbordava de suas palavras pareceu me possuir, como se elas sempre tivessem feito parte de mim. Assim sendo, aperto com uma força sobre-humana o cabo da espada e instantaneamente diversas mãos escuras surgem de dentro da redoma, agarrando várias partes de meu corpo no processo. Entretanto, concentro-me apenas em lutar pela lealdade do gládio, que não se moveu um centímetro sequer desde que tentei removê-lo. Para conquistá-lo, é preciso mostrar ser mais poderoso do que o homem da escuridão e, para o azar dele, hoje é um dia atípico, visto que me sinto capaz de partir uma montanha com um assobio apenas para ver a mulher que eu amo novamente.

Deszcz mieczy** — Declamo em minha língua ancestral.

Repentinamente, diversas espadas caem, atingindo cada uma das mãos e prendendo-as à superfície da campânula. A quantidade de armas é maior do que eu esperava, assim como a minha falta de controle ao realizar a invocação, pois as mesmas se espalham pelo ambiente e acertam uma das bochechas de Ternura.

— Peste! — Invoco-a ao tocar o símbolo do jarro em meu pulso esquerdo. — Kokon**.

Respondendo a minha invocação, uma névoa esverdeada se formou ao redor do corpo de Ternura, protegendo-a da chuva incessante de espadas, o que me deu liberdade para agir, pois, ainda que as lâminas atingissem os seus alvos, as mãos demoníacas continuavam se debatendo, quebrando-as no processo.

Após alguns segundos mantendo a tempestade bélica, consegui conter a fúria das palmas inimigas e uma linha avermelhada começou a preencher os detalhes da espada, fazendo com que o cinza desaparecesse. Em seguida, a lâmina se moveu do peito de Ternura e, por fim, abandonou o local ao qual ela não pertencia. Vislumbrei brevemente o ferimento no peito dela: um corte profundo que atravessava a sua carne e perfurava o seu coração com violência, já que o órgão estava completamente dilacerado, como se o responsável tivesse não somente a golpeado friamente, mas também tivesse girado o gládio com uma selvageria brutal após o mesmo ter acertado o seu alvo. Nesse momento, tive certeza de que pior do que ser assombrado pelo seu corpo morto quando eu fechasse os meus olhos, seriam os pesadelos que eu teria com o ferimento que a tomou de mim, ainda que por alguns minutos.

O som de algo rachando ecoou pelo ambiente e amparei o corpo de Ternura antes que ele despencasse junto com o emaranhado de fragmentos da redoma e das armas. Senti o peso de seu corpo quando passei o braço direito ao redor de seu tronco e, por um milésimo de segundo, me perguntei se eu seria capaz de esquecer que aquele era o peso de seus ossos sem vida… que aquele era o peso da minha covardia e que ela havia sido paga com o sangue, o coração, a alma e a vida da mulher que eu amava. Será que um dia eu seria capaz de me perdoar por tê-la feito suportar o peso da minha escuridão?

Todavia, foi no segundo seguinte que tive a certeza de que a visão de Ternura morta e ferida seria superada pela que se materializava diante dos meus olhos. Entre os estilhaços da redoma, vi a alma de Ternura em sua forma infantil. Sua pele, ainda que lutasse para resplandecer, era um misto grotesco de azul e roxo. Seus olhos lilases estavam arregalados, como se tivessem contemplado o mais puro horror na última vez que a vida pairou sobre eles. E acima de seu pequeno corpo, encontrava-se o homem que a minha aparência refletia. Vassily Petrov tinha o coração de Ternura em suas mãos e se alimentava dele como um animal faminto, deleitando-se não somente do sabor, mas também com a constatação de que eu estava vendo de camarote a sua ação cruel e animalesca.

Para o completar o ritual de separação, é preciso praticar canibalismo. — Esclareceu com certo asco a Fome. — O parasita deve se alimentar do órgão mais precioso de seu hospedeiro como forma de macular aquilo que lhe é mais importante.

A busca por respostas não conseguia ser maior do que o vazio profundo que me tomou. De repente, o ódio não me pareceu ser um sentimento potente o suficiente para direcionar ao meu genitor e as minhas angústias não eram mais o bastante para me tirar do torpor de presenciar a alma morta de Ternura sendo violada pelo homem que havia destruído as migalhas do meu coração. As minhas piores emoções não pareciam mais aptas para exercer qualquer controle sobre mim e apenas o vazio deixado pela escuridão ao redor se encaixou como se fosse exatamente aquilo que eu precisava.

— Peste! Guerra! — Exclamei com uma calma antinatural, enquanto arranhava com fúria as marcas de ambos em meu corpo. — Levem o corpo de Ternura para a superfície.

— Mas para quem devemos entregá-lo? — Questionou a menina ruiva, projetando-se espectralmente ao meu lado e colocando Ternura nas costas, envolvendo o corpo dela com diversas camadas de névoa esverdeada.

— Eu estarei logo atrás de vocês. — E, voltando-me para o já projetado espectro da Guerra, toquei em seu ombro direito e ordenei em minha língua ancestral: — Wolność dla wojny**.

Instantaneamente, o Desígnio dobrou de tamanho, fazendo com que os seus músculos rasgassem a sua elegante farda. O sorriso sádico nos seus lábios mostrava que ele seguiria a ordem de liberdade para guerrear com lealdade, porém à sua maneira e através de seus métodos. Virei-me mais uma vez para a Peste e comandei:

Zatruć**.

Ela soltou uma risada estridente e infame, como se a ordem que lhe era direcionada tivesse sido a melhor coisa que lhe acontecera. Ela começou a nadar em direção à longínqua superfície do lago com Ternura em suas costas, deixando, entretanto, um rastro amarelo para trás: um miasma envenenado com maldições. A Guerra a seguiu, cortando a água já contaminada com suas espadas. Como eu era imune ao veneno e ele não iria afetar Ternura por conta da proteção da Peste, as criaturas das trevas que tentassem atacá-los seriam afetadas ou mortas, mas aquelas que porventura fossem tolas o suficiente para dar continuidade no ataque suicida, teriam que enfrentar o jugo feroz da Guerra.

Voltei-me para onde Vassily estava sem olhar para trás, ainda que eu ouvisse o tilintar das armas da Guerra e a gargalhada satisfeita da Peste. O vazio finalmente me abraçou no momento em que o vi acariciando o rosto assustado de Ternura com malícia. O gesto e a sua feição, todavia, duraram pouco menos de um segundo, pois foram substituídos pela mais pura surpresa: a escuridão ao redor tremeu, como se temesse o meu próximo movimento… como se soubesse o que eu era capaz de fazer quando estava faminto pela morte de alguém.

Apertei com uma gentileza vil os símbolos da balança partida e da coroa atravessada por um arco. Diferentemente do que acontecia, a simbiose não mudou a forma do meu corpo para uma fusão descontrolada e grotesca com os Desígnios, apenas senti um poder primitivo emanar de mim, enquanto os meus olhos se fechavam. Entretanto, soube no instante em que os abri que a Morte havia tomado o meu olho esquerdo e a Fome, o direito.

Vassily levantou-se pela primeira vez, como se apenas naquele instante eu tivesse me tornado algo digno de sua atenção. Alguns minutos atrás, essa atitude teria sido adicionada a minha longa lista de mágoas, mas agora era indiferente: eu não conseguia sentir nada pelo primeiro homem que eu quis matar de verdade.

E eu iria matar.

Philip, haverão consequências para a sua escolha. — Avisou-me a Morte, com cautela, através de nossa conexão mental.

Quando se decide matar alguém, uma mancha surge em nossa alma… E ela ficará exposta nos seus olhos para o resto de sua vida, como um lembrete de que você se colocou no papel de juiz e sentenciou quem deve viver ou morrer de forma parcial. — Explicou a Fome.

Embora eu soubesse que não havia volta para a minha escolha e que ela já estava se manifestando fisicamente em mim — tendo em vista que, ao escolher matar, a visão era perdida por algumas horas para que as manchas da alma pudessem subir até os olhos, marcando as íris para sempre com o mais obscuro negrume —, o meu destino era mostrar para Vassily que, se ele era a crueldade encarnada, eu era o fruto piorado dela. Eu revelaria a ele que havia sido um erro ter me tido como filho, pois eu seria aquele que o condenaria.

— Escolhas têm consequências, Philip. — Ele cantarolou, enquanto balançava os dedos indicadores de um lado para o outro, como se fosse o maestro de uma animada sinfonia. — Se eu soubesse que precisava acabar com a menina escurinha para que você decidisse me matar, eu teria feito isso antes.

Ao citar Ternura, a feição do homem foi do mais puro êxtase para uma palpável aversão. Ele se virou para ela e cuspiu em seu rosto, desfrutando como um verdadeiro covarde da falta de reação dela, como se a morte fosse, para alguém com aquele tom de pele, a única forma alternativa de existência.

Foi quando percebi que os meus pensamentos já não acompanhavam mais as minhas ações e por mais frustrante que fosse notar que eu não tinha o controle total da fusão dos Desígnios mais poderosos, era extremamente prazeroso sentir o toque violento da minha bota sobre o rosto de Vassily, por mais que a experiência se assemelhasse a pisar na merda ao caminhar por um estábulo. Ele se contorceu como o verme que era, tentando a todo custo se libertar e, de repente, aquela sensação de prazer desapareceu, dando espaço para uma íntima emoção desagradável.

Tocá-lo, ainda que fosse para feri-lo, era extremamente abominável.

— Como você consegue me tocar, sendo que apenas o meu espectro está aqui? — Ele perguntou com a voz abafada.

— Seu erro foi achar que a minha escuridão não seria leal a mim.

A resposta saiu em um sussurro rouco, como se a minha voz não conseguisse se projetar completamente por conta de todo o desconforto que a presença dele me causa. Pressionei ainda mais o pé direito sob a bochecha e ouvi o som dos dentes dele se quebrando. O urro de dor dado por Vassily foi acompanhado de um arregalar de olhos: ele não esperava que os danos causados por mim fossem direcionados ao seu corpo físico, também. Ainda pisando em seu rosto, abaixei-me em sua direção e coloquei as mãos para trás, tentando controlar o tremor ansioso e faminto que emanava por meu corpo, pela ânsia dos Desígnios em querer matá-lo. Não era apenas o meu vazio que estava me movendo, mas também a sede por vingativa dos pilares do meu poder.

Tudo pareceu passar como flashes diante dos meus olhos: os ossos das costelas de Vassily rasgando a sua pele, como se estivessem sendo invocados; o punhal amarelado que pareceu ter sido entregue pela escuridão ao redor como um ato de lealdade e que atravessou a sua garganta, impedindo-o de amaldiçoar os meus ouvidos com a sua voz desagradável; a sensação agradável nas pontas dos meus dedos ao sentir os seus globos oculares afundando lentamente para dentro de sua cavidade orbital.

Eu iria matá-lo, mas não antes de fazê-lo implorar por isso.

A escuridão ao redor rugiu com tanta força que as águas pareciam ter se afugentado para algum lugar, dando a impressão de que nós estávamos flutuando nas sombras. Entretanto, a minha mente estava ainda mais nublada, como se eu não fosse mais senhor das minhas ações. O meu corpo respondia apenas à violência que extravasava do meu vazio. Eu vi Vassily chorando, convulsionando, paralisando e morrendo apenas para ser trazido de volta para experienciar uma nova forma de morrer. E por mais que eu não soubesse o que estava causando aquelas reações, era suficiente para mim saber que elas eram causadas por mim.

Quando pensei que mergulharia na inconsciência, senti um toque tão bondoso em minhas costas que congelei. Os segundos em que fiquei estático, fizeram-me recobrar a soberania de meus pensamentos. Ao me virar, deparei-me com o espectro da minha mãe acolhendo a alma de Ternura com um amor quase tangível que não combinava com as sombras e a violência que pairavam naquele local. Ela me encarou com doçura, mas não para me mostrar que eu era um monstro: era para me lembrar que eu não estava sozinho e que o meu amor por Ternura era maior do que o meu vazio. Voltei o olhar para Vassily, que estava se regenerando dos ataques anteriores, e cheguei a conclusão de que a morte era uma forma de benevolência para ele.

— Eu não vou te matar. — Declarei com a minha voz normal novamente e sem qualquer emoção, surpreendendo-o. — A morte é o descanso dos heróis e a morada dos justos. Você merece ser humilhado e derrotado por aqueles que você sempre subestimou.

Após ouvir as minhas palavras, Vassily gargalhou até o ar faltar em seus pulmões. Ignorando-o, acariciei a marca da Morte e, em seguida, os ossos de meu antebraço direito saltaram através da minha pele e aumentaram de tamanho, aprisionando o homem. Ao me virar, deparei-me com a mulher que me deu a vida depositando um gentil beijo na testa de Ternura, colocando-a em meu braço esquerdo em seguida. Meus olhos queimaram lágrimas de amor e saudade quando o nosso olhar se encontrou.

Meu filho… — Ela me chamou com a voz carinhosa, enquanto tocava o meu rosto. Deixei que a minha bochecha repousasse sob a sua mão quente e acolhedora. — Eu me encantei dentro dos Desígnios para aparecer quando a hora do Despertar acontecesse, porque queria te falar que estou orgulhosa de você. Seja corajoso, bondoso e se permita errar para entender a importância de acertar. Se deixe apaixonar pela mulher que você escolheu para amar, porque o amor sempre será o suficiente, Philip. — O espectro dela começou a tremeluzir, mostrando que o encantamento estava desaparecendo, mas isso não a impediu de fechar os olhos de Ternura com delicadeza. — Lembre-se de que, por mais que os Desígnios sejam um poder demoníaco, eles foram criados através do amor. E nunca se esqueça de que esse poder é seu. — Ela começou a se desintegrar lentamente, deixando diversos fragmentos luminosos para trás.

— Por que isso parece uma despedida, mãe? — Perguntei com a voz embargada, aconchegando-me mais ainda em seu toque.

Eu nunca irei me despedir de você, enquanto o seu coração for o meu lar… — Ela aproximou a testa da minha, tocando o meu nariz com a ponta do indicador, como fazia sempre que me encontrava. — Porque eu te amo, Philip.

Minha mãe desapareceu completamente e os seus fragmentos adentraram o meu peito, como se aquele fosse um caminho já conhecido. Queria desesperadamente chorar, porque senti que aquela seria a última vez que eu a veria… Tive a impressão de que aquele era o nosso adeus. Engoli o bolo que se formou em minha garganta e, sem tocar na marca da balança partida, ordenei a Fome:

Wirować.

A escuridão ao redor começou a se aglomerar em um redemoinho abaixo de nós, devolvendo ao lago a sua aparência anterior. A concentração sombria começou a ganhar força, impulsionando-me para cima. Segurei Ternura com firmeza, enquanto Vassily me amaldiçoava. Por mais que eu não soubesse o que encontraria quando submergisse, tinha a impressão de que tudo ficaria bem, porque eu sentia que não estava sozinho.

Quando tive um vislumbre da superfície, encontrei a Peste e a Guerra no caminho. Eles me entregaram o corpo de Ternura e desapareceram no momento em que sai do lago e fomos lançados para cima pelo enorme redemoinho de escuridão.

Tudo pareceu acontecer em um piscar de olhos: a alma e o corpo de Ternura se fundiram novamente, enquanto a prisão de ossos de Vassily se partiu e ele voou acima dos destroços. Todavia, eles continuavam subindo pela espiral sombria e eu parecia estar caindo mais rápido, como se a minha presença ali não fosse mais permitida.

Por mais que tudo passasse em câmera lenta diante dos meus olhos, foi nesse momento que percebi uma corda escarlate ao redor do meu corpo, puxando-me para a margem do lago. Assim que pousei na grama morta, as irmãs de Ternura saltaram em direções opostas para o redemoinho.

Todavia, senti um leve tremor percorrer a minha pele e um formigamento se espalhar por ela, como se o meu corpo tivesse detectado uma quantidade absurda de poder. Foi quando vi Blake destampando uma garrafa e jogando-a na direção do turbilhão, enquanto Tortura e Tristeza criavam uma barreira ao redor da irmã mais nova.

Diablair e Nekromanteion gritaram algo para mim, mas eu não conseguia ouvi-los, pois, de modo quase visceral, o vento gritou com fúria, sugando para si toda a escuridão que estava dentro de Ternura e materializada na espiral. Vi Vassily ser levado para dentro da garrafa, mas mesmo quando toda a energia sombria parecia ter sido sorvida, o vendaval continuava a levar para o desconhecido todas as coisas. As águas do lago se levantaram, como se estivessem se erguendo em respeito àquela cólera ancestral, e começaram a ser sugadas para dentro do recipiente. Foi nesse momento que vi as trigêmeas sendo carregadas pela torrente e o meu coração desaprendeu a bater. Tentei me levantar, mas era inútil: eu já havia ultrapassado o meu limite. Blake, que tinha conseguido reagir, foi impedido de avançar por Pablo, que o imobilizou no chão. Diablair berrou ferozmente algo para Fubuki, fazendo com que Nekromanteion recuasse, temendo que a fúria do Soberano Infernal lhe fosse direcionada.

Contudo, foi no momento que a senhora Calígula se aproximou de mim com uma serenidade inigualável, que eu senti medo. A postura implacável dela transmitia uma silenciosa e tangível cólera, porém quando ela deu uma ordem direciona a Ternura, o vento pareceu se calar para ouvi-la:

Feche a garrafa, Ternura.

O encantamento para que aquele pensamento chegasse até o seu destino fora tão forte, que transbordou das Linhas Mentais e ecoou através do espaço, permitindo-nos ouvir a sua fala. Neste instante, Ternura parou de se mover e, ainda com os olhos fechados, ela paralisou o vento, domando-o para dentro da garrafa até que a rolha impedisse a sua saída.

Quando o artefato tocou o gramado, todos pareciam ter desaprendido a respirar e ninguém ousou sair do lugar. As pálpebras de Ternura se moveram três vezes antes de se abrirem, porém, assim que as suas íris contemplaram o mundo mais uma vez, ele voltou a ser como era: a morte que outrora o devastara, parecia nunca ter estado ali. Depois disso, não vi mais nada, pois as sombras caíram sobre os meus olhos, mostrando que eu havia escolhido ser acolhido pela escuridão para que ela pudesse ser a minha luz.

❖❖❖
Notas de Rodapé

¹ Vórtex: espaço interno que apenas aqueles que manifestam poderes relacionados à escuridão possuem. Localiza-se na entrada da alma e possui todos os sentimentos negativos de alguém na forma de lembranças. É o último obstáculo para adentrar a alma de uma pessoa e poucos são os que conseguem enfrentá-lo, tendo em vista que é preciso uma imensa resiliência para alcançar tal feito.

² Sôlnichko significa “solzinho” em russo. Chamar uma pessoa assim significa que a pessoa brilha como o sol na sua vida.

³ Miłostka significa “amor” em polonês.

** Tradução do polonês para o português:

Deszcz mieczy = Chuva de espadas.

Kokon = Casulo.

Wolność dla wojny = Liberdade para a guerra.

Zatruć = Veneno.

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