Numa manhã agradável de inverno, em que o sol era quente o suficiente para os mais corajosos usarem uma regata e exporem seus excessos na alimentação, Anderson desejava uma mudança drástica no clima, em que o frio não fosse fraco e que a chuva não fosse rara. Nessas condições climáticas, ele acreditava que poderia amenizar os sintomas da forte tristeza e depressão que o acompanhavam e se manifestavam com fortes dores, principalmente na cabeça — de repente, só a dor no seu coração fosse maior.
Mas suas obrigações na escola, onde lecionava a disciplina de química, lhe fizera levantar da cama e ver no que dava, o seu dia. Logo que adentrou à sala de aula, foi recepcionado por seus alunos com um caloroso “oi”, mas os respondeu de forma seca e sem motivação alguma. Em seguida, virou-se para o quadro e, de supetão, começou a explicar como regiam o hidróxido de sódio e o ácido clorídrico para formar o cloreto de sódio. Anderson começou a olhar para o NaCl escrito no quadro e se lembrou de como essa ligação era forte e estável, de como esse composto resistia as mudanças de temperatura e de pressão sem sofrer nenhum tipo de dano. Seus olhos encheram de lágrimas e seu desabafo estava prestes a acontecer.
— Já era, infelizmente...
— Professor, você está chorando? — quis saber Valdivia, uma de suas alunas.
— Desculpem-me, turma, mas eu não estou bem.
— O que aconteceu, professor?
— Nesse último final de semana, minha namorada me deixou e alegou que não me amava mais. Mas eu descobri que, na verdade, ela me traiu com o Carlos Recoba.
— Com o Carlos Recoba? Aquele retardado metido a milagreiro? — indagou Richard, um de seus alunos mais agitados.
— Sim, meu Deus! Com ele.
— Nossa, professor. Está feio pros teus lados. — completou, Vitor.
— Calem a boca, seus abobados! — interrompeu Valdivia — Coitado do professor... vocês não veem que ele tá sofrendo?
— Não é coitadismo coisa nenhuma, — contra-argumentou Anderson, num tom de voz exagerado — é a realidade. Eles formam um belo casal, não tem porque nos comparar.
— Por que tu não matas o Recoba, professor? — sugeriu Lucas com apoio do Richard e do Stallone.
— O Recoba tem um corpaço e já está em terceiro no campeonato de Karatê. Infelizmente, ele me bateria e o pior de tudo: na minha casa.
— Ai, professor, não dá bola para esses malucos. Eles são capazes de incentivar um idoso alcoólatra a continua a beber só para ver confusão.
— Valdívia, eles são malucos do bem, então está tudo bem.
— Ai, professor, eu acho que você deveria fazer algo que lhe anime. Sei lá, vá para o cinema, pescar...
Ao ouvir a sugestão, Anderson lembrou-se que teria o show do Black Sabbath na capital de seu estado. Ele sempre fora grande fã da banda — inclusive a ponto de ser conhecido como Tony Iommi por seus amigos mais íntimos — e só não estava indo ao show, pois tinha sido obrigado por sua namorada a ir ao show do Luan Santana e do Exaltasamba, num evento que seria repleto de pessoas iguais e sem personalidades e que aconteceria na mesma noite do show do Black Sabbath. Mas por estar solteiro, agora nada mais o impedia. Assim, sem mais nem menos, Anderson saiu correndo da sala de aula, deixando os alunos sozinhos, e rumou direto à rodoviária. Embarcou no primeiro ônibus para a capital, o qual demorou cinco horas para chegar ao destino. Em poucos instantes, de taxi, Anderson fez o trajeto da rodoviária até o estádio de futebol em que aconteceria o show. Olhou para os lados e logo achou a bilheteria, para onde rumou sem pestanejar.
— Um ingresso para o show, por favor.
— Todos os ingressos já foram vendidos, senhor. Estamos com a casa cheia.
— É sempre assim. Já era, infelizmente.
A depressão voltou ao corpo e à mente de Anderson de forma impiedosa. Saiu perambulando pela esplanada do estádio, olhando para o chão e chutando uma bola de papel formada por publicidades de um dos patrocinadores do show, a grande rede de restaurante Bolicho. Nisso, um senhor o vendo triste, o cutucou e o indagou:
— Quer ver o show?
— É o que eu mais queria.
— Mas que sorte, hein ô? Eu tenho um ingresso que estou vendendo, o ingresso.
— Sério? E por que você venderia?
— Você vai achar ridículo, mas eu nunca ouvi um rock, que aliás, corre a passos largos para ser o estilo de música que menos gosto.
— Seria uma excelente aquisição! E quanto você quer por ele?
— Hoje à noite terá o show do Roberto Carlos aqui perto. Você compra um ingresso do rei e a gente troca de mano, portanto.
— Está bem. Mas você sabe que esse show do Black Sabbath é algo gigantesco, certo?
— Ora, mas não é melhor do que o show do cantor bom de microfone Roberto Carlos. O rei, ninguém duvida, que conhece o microfone como poucos. Quando a letra da música chega com qualidade na cabeça e quando ele acerta a nota na parte da garganta que ele quer, ela chega também na parte do ouvido dos espectadores que ele quer. Showzaço e Roberto Carlo entre os melhores shows do Brasil.
— Certo, então. Vamos fazer essa troca.
— Feito!
Anderson achou que o homem com que negociara estava embriagado por fazer um negócio desses, mas isso não lhe importava. Agora, sua mente e seu corpo estavam completamente voltados ao sonho de sua vida que se concretizaria. Com o ingresso na mão, ele se dirigiu a fila, por onde ficou por uma hora. Já na catraca, para ter acesso ao interior do estádio, Anderson entregou o ingresso ao funcionário que conferia a sua autenticidade. O teste foi realizado uma, duas e três vezes, dando todas respostas negativas. Assim, o funcionário chamou o Anderson para conversar.
— Meu filho, você sabe que esse ingresso é casca de banana?
— Como assim “casca de banana”?
— Meu filho, esse ingresso é falso e de falsificação eu entendo pá caramba.
— É sempre assim. Já era, infelizmente.
— Olha aqui ó, eu conheço o pojeto do show e posso te colocar até nos camarins.
— É o que eu mais queria! E quanto vai custar?
— Você tem que ver que o pojeto é muito bem feito e você não pode chega lá e dizer “olha meu filho, deixa eu entá pá vê o Ozzy”. Tem que ter um pojeto pá superar o pojeto do show. Então, vai custar cinco mil reais.
— Cinco mil reais? Eu não tenho esse dinheiro.
— Então deixa pá eu teu celular e o que você tiver de grana.
Meio contrariado, Anderson acabou aceitando a proposta, mesmo sabendo que a realidade seria de ele ser enganado mais uma vez. No entanto, o homem fez um bom serviço e o colocou dentro do camarim dos astros. Anderson estava ansioso pelo próximo passo do projeto, mas o funcionário o alertou que não podia fazer mais nada e em seguida foi embora com todo o dinheiro que tinha conseguido arrancar. Anderson ficou levemente depressivo por ter sido largado novamente, mas isso não importava, ao contrário do show, que agora era ainda mais grandioso, pois teria a chance de conversar com seus grandes ídolos.
Perambulando perdido pelos camarins, Anderson procurava pelos músicos da banda, principalmente por Tony Iommi. Mas conforme o tempo passava, sua depressão aumentava por estar frustrado em não encontra-los. Nisso, Anderson é abordado por um senhor de idade.
— Sai daqui, senão te encho de tapa.
— Desculpe, senhor, mas eu sou o Pinguim, digo, eu sou o..., eu sou o químico que a banda pediu.
— Senhor é minha bola esquerda. Me chama de João, porra. E que confusão de nomes foi essa?
— Às vezes eu perco meu senso de identidade. Mas então, João, você me leva até os músicos?
— E por que a banda ia querer o viado de um químico?
— Sabe como são esses drogados. Todo o rock tem letra demoníaca por causa das drogas.
— Sei... Me segue, então, seu merda.
João e Anderson caminharam alguns metros e entraram numa sala, onde Ozzy Osbourne, Geezer Butler e Tony Iommi se aqueciam com a música Paranoid. Os olhos do Anderson se encheram de lágrimas novamente. Pela primeira vez na vida, pode sentir-se mais feliz do que depressivo. Ele se aproximou dos músicos e foi apresentado pelo João.
— Seus viados, tá aqui o Pinguim, o químico, o sei lá quem, que vocês pediram.
— Químico? Pinguim? Tu não é o Josiel Fernando? — indagou o Ozzy.
— Não. Eu sou grande fã de vocês. Vocês tem uma bandaça e estão no G1 das bandas internacionais.
— Caralho, João. Nós pedimos pelo Josiel Fernando, que sempre nos consegue uma erva de boa qualidade.
— Eu sei. Desculpa, Geezer. E tu, seu químico viado, sai daqui — João começou a expulsá-lo do camarim a base de muito tapa e pontapé.
— Ei, ei! Espera! Tony, permita-me ao menos tirar uma foto contigo. Por favor!
Tony Iommi nada falou e se aproximou do Anderson. Em seguida, desferiu um soco certeiro na boca de seu fã, o qual caiu estirado no chão.
— Porra, Tony. Por que disso?
— Não gosto de mulheres que usam camiseta vermelha.
— Mas eu sou homem e estou de azul!
— Foda-se.
— Puta que pariu. É sempre assim. Já era, infelizmente.
— Isso aí, mesmo — intrometeu-se João — agora te arranca daqui.
Anderson estava arrasado. Queria morrer naquele instante e considerou a possibilidade de se jogar na frente do ônibus. No entanto, ele embarcou no ônibus e se viu voltando para sua vida medíocre. Abriu a carteira e viu fotos da sua ex-namorada e do Tony Iommi, as quais foram prontamente rasgadas e descartadas. Ele não queria mais aturar esse merdas, tal como os definiu para si mesmo. A viagem era longa, o clima era agradável, a estrada era cheia de buracos. Anderson não conseguia dormir e dedicou-se, portanto, a conformar-se com sua vida, a qual era fraca como uma ligação química de van der Waals.