— Vovô, o que é paixão? E o que é amor? — perguntou Joãozinho ao idoso que caminhava ao seu lado no quintal. — Ou é tudo a mesma coisa?
— Não acha que é meio novo para querer saber dessas coisas? — retrucou Lair de modo afável, porém surpreso com as perguntas.
— Não. Eu já tenho seis anos. — respondeu o menino, fazendo seu avô dar uma gostosa gargalhada.
— Ok, ok. O que eu não faço pelo meu netinho? — indagou Lair ainda sorrindo ao estacar no lugar. — Me espere aqui que preciso de umas coisas para ajudar na explicação. — e sem esperar por respostas, o homem regressou a passos lentos para casa.
Joãozinho obedeceu e aguardou sentadinho. A ansiedade dele e a idade do avô fizeram a espera parecer mais longa do que realmente foi. Lair regressara trazendo uma tampinha de garrafa pet envolta em durex, fósforos e folhas de jornal velho. Ignorando as perguntas do menino, fez um pequeno monte com parte dos papéis e, em seguida, encarou o curioso neto e iniciou a sua argumentação.
— Faça de conta que esta pilha de jornais é o seu coração, João. — a frase soou como uma ordem que foi prontamente executada na mente de seu netinho. — Vai ter vezes na sua vida em que você vai encontrar pessoas que farão isso com ele. — Lair então riscou um fósforo e ateou fogo nos papéis.
João tentava assimilar o que seu avô lhe revelava. Sentiu que o fogo do "coração" não era igual aquele que ardia diante de ambos. Coçou a cabeça: devia ser coisa de gente grande mesmo. Isso só o deixou ainda mais curioso.
— Vai doer, vovô? — questionou enquanto franzia o cenho.
— Não, não. Talvez incomode no começo, mas você vai se sentir bem com isso. Mas, o melhor vem agora. — revelou o idoso com um sorrisinho sapeca enquanto se afastava do fogo. — Sabe as pessoas que fizeram isso? Bom, vão ter algumas que farão você se apaixonar por elas. E quer saber o que é a Paixão?
— QUERO! — berrou João, animadíssimo e pondo-se de pé.
Lair pegou o netinho pela mão e conduziu a ambos para longe da pequena fogueira. Depois, apanhou a tampinha e a atirou dentro das chamas, que imediatamente se converteram em uma violenta pira que arrancou um grito de assombro do menino.
— Isso é a Paixão, meu neto. E é isso que ele faz com seu coração também. — salientou o idoso, apontando para as cinzas que o vento espalhava no ar rumo ao céu.
— Nossa, vovô. Parece ruim... — ponderou o garotinho cruzando os braços e encarando o chão chamuscado. — Mas foi tão bonito....
— E é, meu netinho! E é! — concordou Lair, feliz e orgulhoso pela visão positiva do infante ao seu lado. — A Paixão é uma das coisas mais bonitas deste mundo!
— Mais do que o Amor? — rebateu o ouvinte mirím, fitando o sábio senhor nos olhos.
— Me diga você depois que eu lhe mostrar o que é. — respondeu sabiamente o homem, se afastando do neto e tornando a fazer um monte de papel com o restante dos jornais.
— Lembre-se: imagine que isto é seu coração e uma ou outra pessoa o acenderá. — alertou o homem de idade ao olhar para a criança. — Agora vou mostrar para você o que é o Amor.
A ventania estava um pouco mais constante quando Lair acendeu a segunda fogueira. Sendo assim, ele teve que proteger a chama com as mãos e os braços. Logo João notou que aquilo estava doendo na frágil e enrugada pele de seu avô. Ele pediu para o homem se afastar uma vez. Duas. Três. Correu até ele, já com a voz chorosa e berrou para Lair se afastar. Foi somente então que percebeu o pranto contido nos olhos do idoso e a pele começando a ser ferida por conta da proximidade e calor da fogueira.
— VOVÔ, PÁRA COM ISSO! — implorou o infante, mas Lair permanecia resoluto, impedindo que vento apagasse o fogo. — POR FAVOR, PÁRA!
O menino tentou desesperadamente puxar o avô, mas aquele idoso de repente parecia uma montanha aos seus olhos e esforços. Aos prantos, apanhou o pequenino balde de Lego largado ali perto, correu até a torneira na parede, encheu o mesmo com água, correu de volta e jogou o conteúdo rumo à maldita fogueira.
Seu avô simplesmente se interpôs na trajetória aquosa, levando um banho de água gelada que lhe fez se tremer todo enquanto seu neto berrava e chorava, indignado com a atitude do avô. Depois de um minuto que pareceu durar uma eternidade para ambos, as chamas finalmente consumiram o material e se extinguiram.
João, em absoluto choque, olhou seu avô: as mãos e braços estavam feridos e a parte traseira de suas roupas, encharcadas. Os olhos do idoso denunciavam toda a dor e o frio que ele suportava. Mas, bizarramente, havia um sorriso muito belo em seus lábios murchos.
— Isso é o Amor, João. E é isso que ele faz: te ajuda a manter a chama do coração acesa. — dizia Lair enquanto seu netinho abraçava suas pernas e chorava copiosamente. — E você acaba ajudando também. Mesmo que isso te machuque. Mesmo que tentem te impedir.
— Por quê? Por que eu faria isso, vovô? — clamava João com a voz embargada e o nariz escorrendo. — Por que o SENHOR fez isso?!
— Porque eu te amo, João. — respondeu o idoso fazendo um cafuné nos cabelos do choroso menino agarrado às suas canelas. — E você? Por que lutou tanto para apagar a fogueira?
— Porque aquilo estava... — ele então, tão novo e tão confuso teve a epifania. —Porque... Porque eu te amo, vovô! — e então o abraçou com ainda mais força: o que ele escutava dos pais e do avô agora finalmente tinha sido aprendido e entendido.
Ele agradeceu ao avô do fundo do coração; Lair, por sua vez sorria sabendo que seu neto levaria aquelas lições para o resto de sua vida.
Sem dizer mais uma palavra sequer, ambos enxugaram as próprias lágrimas, deram as mãos e então, a lentos passos, rumaram de volta para dentro de casa para se cuidarem.
E o vento os seguiu, ainda carregado de partículas das cinzas.