Pensando bem, talvez fosse meu destino ter uma queda por ela, afinal...
Diariamente nos víamos no interior do ônibus pela manhã. Eu ficava olhando aquela garota de pele clara roubar a cena com sua extensa, volumosa e invejável cabeleira preta cacheada que emoldurava aquele rosto de feições agradáveis, delicadas. Ela sempre conseguia se maquiar e vestir de uma forma que a deixava sexy sem ser vulgar, o que só me deixava mais abobalhado enquanto ela passava por mim e se sentava metodicamente no mesmo banco do outro lado do corredor do coletivo... Bem no que era paralelo ao lugar em que me habituara a ficar.
Nossos encontros não duravam muito tempo, apenas algumas paradas adiante e ela tornava descer: provavelmente fazia alguma baldeação. Então eu aproveitava o curto período para observar vez ou outra aquela beldade de baixa estatura. Sabe aquelas olhadas ligeiras, meio de lado? Foi assim e com o passar do tempo que descobri que, quando ela sorria ao ver algo legal no celular, graciosas alcovas surgiam em suas bochechas. Que ela aparentemente era fã de Star Trek. Que possuía o hábito da leitura. Que eu estava cada vez mais atraído por aquela moça.
Nossa, já não era mais queda: era um tipo inusitado de "crush", como estava na moda dizer. Sim, porque eu não achava que tinha muita chance por N motivos que agora me parecem bem idiotas. Então, ficávamos nessa rotina de me perder nos raros vislumbres daquelas íris castanhas e imaginar toda a promessa de ternura e felicidade ali contidos, de sentir o coração levemente acelerar quando ela se ajeitava no assento e arrumava o cabelo, de aspirar seu perfume e suspirar baixinho ao perceber que aquela proximidade física era tão ilusória quanto provavelmente imutável.
Só que hoje o motorista freou abruptamente enquanto ela vinha na minha direção com atípica pressa e ambas as mãos ocupadas; de imediato me ergui e a segurei, impedindo que a mesma colidisse de rosto com a haste metálica logo adiante. Ela sentou ao meu lado(!) e finalmente ouvi sua voz enquanto agradecia pela ajuda: santo Deus, que timbre e sotaque lindos eram aqueles?! Quase emudeci, ainda absorto pela inebriante sensação de ter enfim tocado naquele corpo feminino tão admirado e desejado. E o sorriso gentil, sincero? E o olhar sutilmente intenso? Perfeição definia aquela garota.
Nos apresentamos, conversamos brevemente e para meu espanto e tristeza, descobri que ela também me notara há tempos e estava indo passar as férias em seu Estado natal. Qual não foi minha surpresa quando ela, faltando um ponto para descer, perguntou se eu tinha Whatsapp e me pediu o meu número de telefone para mantermos contato! Meio gaguejante, forneci a informação sem crer no que estava havendo.
"Não posso me atrasar, socorro! Logo te mando um oi e a gente vai se falando! Até mais! E muito obrigada de novo...", ela afirmou antes me beijar na face, saltar do banco e descer do ônibus apressada, levando as malas, meus pensamentos e um pedaço do meu coração junto. Segui meu itinerário meio que no piloto automático, o calor daqueles lábios e a consistência do batom me mantendo animado e corado mesmo depois de eu ter descido e seguir meu caminho pelo parte de pedestres viaduto afora.
Logo, meu celular tocou, vibrante como meu espírito. Estaquei por um instante, o retirei do bolso às pressas e vi cinco mensagens daquele número desconhecido: era ela! Cliquei ansioso, vendo a tela ficar toda branca enquanto o aplicativo carregava. A expectativa e felicidade foram tamanhos que naquele ínfimo momento, o resto do mundo deixou de existir para mim.
Vai ver que foi por isso que não vi a carreta desgovernada cruzar a pista, colidir com uma moto, atravessar a mureta de proteção dos pedestres e me atingir em cheio, me arremessando para fora do viaduto enquanto igualmente caía na estrada abaixo. Foi uma longa e lenta queda, cheia de dor e incompreensão até que eu literalmente explodisse no asfalto.
O celular vibrou e tocou segundos antes disso. Eu sorri enquanto uma lágrima verteu sobre a marca de batom.
Escuridão.
Silêncio.
Regresso.
Agora observo meu corpo, ou o que sobrou dele, bem como o desastre infernal à minha volta. Enquanto os outros gritam e soluçam, eu apenas olho entristecido para aquela mão ensanguentada segurando tenazmente um celular com a tela escura e tão despedaçada quanto eu. O que será que ela tinha me mandado? Eu só queria saber isso antes de ir embora. Só que nunca irei.
Nunca...
Estão me chamando. Hora de partir.
Que ambos façamos uma boa viagem...