“Tô te falando, tá tudo indo por água abaixo” gritou uma voz claramente embriagada.
São apenas uma hora da tarde de domingo e já há vários bêbados no Âncora Enferrujada, alguns provavelmente estão aqui desde ontem, e um deles já descreveu com estúpidas palavras meu dia até agora. Este é o único bar por aqui então está sempre cheio de fregueses, muitos deles desmaiados numa poça de seu próprio vômito. Não é raro eu ser um destes junto com meu sócio, Thomas. Thomas e eu temos um negócio de pesca de lagostas. Pescar lagostas é bem simples, nós jogamos algumas armadilhas no mar, cada armadilha tem uma boia amarrada para podermos saber onde está, a deixamos lá algum tempo e quando voltamos, com sorte, terá várias lagostas e outros tipos de animais marinhos para vendermos, pode ser um tanto perigoso e demorado já que algumas das armadilhas ficam em alto-mar, então passamos praticamente o dia inteiro no mar. Ontem foi um desses dias, pelo menos pra mim.
Hoje de manhã ao acordar, levantei para preparar algo de comer mas tudo que achei foi uma lata meio aberta de feijões verdes, neste momento Tommy saira do quarto semi-nu
— Tommy, cadê a comida?
— Como assim? — Perguntou ele ainda sonolento
— Eu te dei dinheiro ontem para comprar comida, onde está?
— Oh… o dinheiro era pra isso?
— É claro, Tommy! Para que mais seria? — Minha raiva aumentando a cada segundo
— Eu sai pra beber com uma amiga — Disse ele com uma tranquilidade que quase me fez explodir de raiva
— Como você gastou o dinheiro todo em tão pouco tempo?! — Perguntei incrédulo
— Pouco tempo? Nós bebemos quase o dia todo
— Quase o dia todo? Quer dizer que você não foi colocar as armadilhas? Então porque quando voltei seu barco não estava lá?
— Eu dei uma volta de barco com ela
— Mas que caralhos, Tommy! Você compreende que precisamos dessas armadilhas colocadas pra sobreviver? — Gritei
— Relaxa, temos dinheiro suficiente para ficar tranquilos por enquanto
— Claro que não, seu estúpido. — Coloquei a mão na testa tentando me acalmar — Eu te dei tudo o que tínhamos para comprar combustível pros barcos e comida — Disse num tom um pouco mais tranquilo.
Como se está situação não fosse estressante o suficiente, uma figura feminina sai do quarto de Thomas usando nada mais que uma camisa velha dele e calcinha
— Que gritaria toda é ess- — Ela parou e me olhou nos olhos, assustada — Thomas, o que meu irmão está fazendo na tua casa? — Perguntou Claire agora pálida e sem parar de olhar pra mim.
— O que você está fazendo na minha casa? No quarto do Thomas? — disse olhando pra ela, me virei na direção do Thomas — O que você está fazendo com minha irmã seu bastardo!? — A calma que eu lutara tanto para manter se foi em menos de 1 segundo e foi substituída por pura raiva.
Pulei encima de Thomas derrubando-o no chão, conseguir dar uns dois socos em seu rosto antes de sentir as mãos de minha irmã no meu braço me afastando dele
— Você esta louco, cara! — gritou o Thomas ainda no chão — Foda-se você e sua pesca — ele limpou um pouco de sangue que havia em sua boca e se levantou, abriu a porta e antes de sair disse — Eu diria “Foda-se sua irmã” mas eu ja fiz isso ontem à noite, não é? — deu um meio sorriso e saiu pela porta antes que eu pudesse dizer ou fazer qualquer coisa. Houve um momento de silêncio.
— Desculpa — disse ela olhando para o chão
Sem olhar pra ela me levantei e saí de casa, foi então que vim ao Âncora Enferrujada tomar um drinque antes de ir pra alto-mar colocar as armadilhas que Thomas não colocara. Assim que entrei no Âncora um bêbado com cara de quem já devia ter saído dali a muito tempo vomitou em um de meus sapatos, estava já com tanta raiva que nem ao menos olhei pro sujeito, apenas mandei ele dar o fora e me deixar em paz. Sentei numa cadeira afastada de todos no balcão e pedi minha cerveja favorita, Weisefel, mas, é claro, não havia mais dela no estoque então pedi uma qualquer parecida apenas para molhar a garganta antes de sair. Embora esteja horrível tenho que pagar minha bebida com o último trocado que me restou e ir direto para o cais para, novamente, embarcar em direção à alto-mar colocas as malditas armadilhas. O barco de Thomas já não está mais parado do lado do meu, ainda bem, não sei se me controlaria se o visse de novo. Ainda do lado de fora já posso ver algumas armadilhas jogadas no deque, eu tenha umas de sobra guardada, mas pelo menos ele teve a decência de devolver. Ainda exausto subo no meu barco já enjoado desse maldito cheiro de peixe. Acho que não importa por quanto tempo trabalhe nisto, nunca vou me acostumar a esse cheiro. Vou dar uma olhada nas armadilhas no chão de meu barco e só posso pensar — Ótimo, tudo o que meu dia precisava — o bastardo fez questão de arruiná-las antes de jogá-las aqui, — Filho da puta — suspiro em voz baixa. Pelo menos tenho combustível suficiente para ir e tenho um galão sobrando para a volta, apenas o barco daquele babaca que estava precisando de combustível, ele provavelmente comprou com o dinheiro que lhe dei e com isso foi embora para nunca mais voltar, espero eu.
Pego o combustível reserva no porão e coloco no tanque, agora só navegar em direção noroeste na área do Thomas, não sou familiarizado com esses lados do mar, sempre vou pro lado contrário para cobrir mais área mas é tudo bem parecido nestes lados então não deve ser problema. Com tudo pronto, desamarro a corda do cais e vou em meu caminho para o mar. Estar no mar é bem relaxante, especialmente hoje final de semana que não vai ter ninguém por ai, posso inclusive deixar numa velocidade baixa e sentar um pouco. Nada de Thomas, nada de irmã, nada de vomito em meu sapato (tenho que lembrar de limpar isso depois), nada de problemas.
O barco balança com um ruído forte me tirando do sono profundo em que estava, algumas coisas caem no chão da cabine — Merda, por quanto tempo dormi? — A fraca luz da lâmpada na cabine faz impossível ver o que caíra no chão — Espera ai… porque está tão escuro? — Saio da cabine e me deparo com um céu nublado iluminado apenas pela luz do luar, olho para um lado, mar e escuridão, olho para o outro, nenhum sinal de vida. Nada. Fitando o horizonte quase indistinguível graças a escuridão da noite sou tomado pelo total silêncio por alguns minutos. Silêncio. Porque está tão quieto? O fato surge em minha cabeça tão rápido que posso sentir o momento em que me bate como um soco na nuca e me apavora totalmente quase me fazendo perder os sentidos — O motor não está funcionando — sussurro. Após alguns segundos ainda parado grito novamente — O motor não está funcionando — como para alertar a mim mesmo do que estava acontecendo, finalmente corro para o porão, assim que coloco o pé com força no chão água respinga em minha calça, sem me importar vou até o motor agora inerte, tento uma vez, nada — Merda — Tento outra vez sem sucesso — Merda! — Tento uma terceira vez, apenas sons vazios — Merda, merda, merda — Chuto o motor com força suficiente para machucar um dos dedos — Merda! Aquele bastardo roubou meu combustível! Claro, como mais ele teria combustível para dar o fora? O FILHO DA PUTA ME ROUBOU! — grito desesperadamente dando mais uns chutes no motor até cair de joelhos no chão, só então percebo que a água subiu de nível e que, de fato, não deveria haver água alguma aqui — Que merda é essa? — procuro por todo lado algum vazamento mas não consigo achar, só posso ver o nível da água aumentando cada vez mais — Estou morto — é o único que consigo pensar de repente me lembro do sinalizador que mantenho sempre na cabine, uma rajada de esperança e felicidade invadem meu corpo e me fazem correr até a cabine onde antes havia um rádio, agora não há nada. Um lápis que estava encima começa a rolar e cai no chão, o barco já começa a se inclinar pela parte de trás, o lápis rola até um monte de objetos caídos, um rádio que após várias tentativas de ligá-lo percebo que está quebrado — Merda! — grito jogando-o para o outro lado da sala, uma xícara em pedaços, e algumas garrafas de cerveja, algumas quebradas outras não, entre isso tudo também está o sinalizador — Graças aos céus — Digo examinando o sinalizador antes de correr pra fora. O exterior nada tinha mudado até agora, continuava ainda deserto, seria possível alguém ver o sinal? Não sei, mas é minha única esperança. Levanto o braço com o sinalizador para o ar, aperto o gatilho, nada. Nem som, nem luz. Silêncio, escuridão. Aperto o gatilho de novo. Nada. De novo. De novo. De novo. Nada. Nada. Nada. Caio de joelhos no chão — Por quê? — Grito para o céu — O que fiz a você pra fazer isto comigo, seu deus miserável — Caio pra frente de bruços, chorando, cabeça grudada no chão — Por quê, seu filho da puta? Por quê? — Digo num leve sussurro. Quem sabe quanto tempo fiquei à deriva, não há um único pedaço de terra firme à vista, nenhum barco, nada, apenas escuridão. Sinto um vento frio passando por mim, levanto a cabeça e no alto, a poucos metros, posso ver as nuvens carregadas vindo em minha direção. Não demora muito para a água começar a ficar mais turva, e o barco começar a se inclinar cada vez mais. Não me resta mais nada a não ser sentar e esperar.