O copo de vidro veio da altura da sua boca e atingiu fortemente o balcão do saloon. Alguns pistoleiros levantaram incomodados com o barulho que novamente se repetia; outros abriram a boca para insultá-lo, mas se contiveram. O seu olhar era penetrante, capaz até mesmo de intimidar o próprio demônio. Seus dentes rangiam e esmagavam o palito que acompanhava o aperitivo. Era notório, através de sua feição séria, que ele ainda não estava satisfeito e desejava que seu copo fosse novamente preenchido pelo melhor uísque do estabelecimento.
— Ei, Ransom! Esse meu olhar amedrontador não é o suficiente para você vir e me servir mais daquele uísque?
— Olhar amedrontador não paga conta, Kid. Se quiser beber, tem que pagar.
— Ah, para com essa história! Quem está morto, não paga.
— E tampouco bebe.
O palito em sua boca caiu no chão e seu olhar mostrava estar inconformado. Mas nem por isso, Kid Billy deixou de beber o uísque que tanto o apetecia; colocou a mão no coldre e sacou sua arma. Em seus pensamentos, mandava seu amigo Ransom a merda por tratá-lo com tanta deselegância justamente no dia que o saloon estava cheio. Assim, Kid não existo de usar a arma para acalmar seu coração.
— Caralho, Kid! Você vai derrubar a garrafa no chão tentado puxá-la com essa pistola. Toma essa merda e para de incomodar.
— Sentiu medo do prejuízo, né, Ransom?
— Prejuízo já estou tomando com você bebendo sem pagar — a última gota de uísque preencheu o copo e Ransom pode fechar a garrafa. Após guardá-la, viu que Kid ainda aprontava com sua arma.
— Kid, você vai morrer envenenado misturando o gelo e o uísque com essa pistola enferrujada.
— Eu já estou morto, Ransom.
— Porque continua insistindo nesse papo furado? Está ficando chato.
O velho Ransom tinha seu saloon há mais de vinte anos e Kid Billy era um de seus clientes mais assíduos. Assim, Ransom o conhecia o suficiente para notar quando ele falava com seriedade ou apenas contava casos furados. E nesse dia, mesmo falando sobre estar morto, Ransom via nas atitudes de seu amigo que algo o perturbava. Kid Billy, quando sério, não se importava em se servir o próprio uísque e tampouco pelo preço da bebida. Além disso, sua perna esquerda vibrava em alta frequência enquanto os dedos da mão direita batiam ritmados sobre o balcão. Os olhos arregalavam, a sobrancelha esquerda encaracolava e as bochechas ficavam roxas.
— Perdeu muito dinheiro na última partida de pôquer, Kid?
— Perdi, mas não entendo como. Mas não é por isso que estou morto.
— E é por que, então?
— Está vendo aqueles cavalos montados por pistoleiros raivosos vindo em direção do saloon?
— Estou sim. São vários, inclusive. Mas o que tem?
— São meus cunhados e sogros.
— Como cunhados e sogros? Sogro não se tem só um?
— Foi-se o tempo de ter só um sogro, Ransom.
O som do galope dos cavalos e os gritos jurando morte ao infeliz que tinha maculado o nome de puras donzelas ficavam cada vez mais intensos. Tiros ao alto eram disparados e assustavam ainda mais os habitantes da vila, os quais corriam para o interior de suas casas com a clara intenção de se proteger da violência que aqueles homens traziam consigo. Logo, todas as janelas estavam lacradas, as lojas e demais estabelecimentos fecharam, o xerife se escondeu sob a mesa de sua delegacia.
Em poucos instantes, as ruas que até então estavam desertas foram tomadas por trinta homens, todos claramente transtornados. A raiva escorria pela pele em forma de suor e liberava um forte odor de morte no ar. Após um grito de ordem, todos os pistoleiros começaram a árdua atividade de encontrar o homem prometido a morrer. Com chutes potentes, derrubavam as portas dos estabelecimentos e gritavam com toda a força:
— Cadê o desgraçado do Kid Billy?!
— Está no saloon! Está no saloon! Vá para lá que ele está esperando por vocês com o dedo médio em riste! — confessou, acrescentando uma pequena mentira, o dono da loja de chapéus, que também queria Kid Billy morto.
Com a informação, a cavalaria toda se dirigiu ao saloon. Logo, todos os pistoleiros tomaram o lugar. Era possível ver pistolas nas janelas, nas portas e até mesmo no furo do telhado do saloon que apontavam para a cabeça do Kid Billy. Não demorou muito e três homens adentraram o lugar; um deles deu um tiro para cima, outro chutou uma mesa e outro, o qual liderava toda aquela gente, exclamou:
— Aí está você, Kid Billy!
— Sim. Aqui estou eu, Bronson!
— Não, não, não. Espera. O Bronson sou eu — corrigiu um dos pistoleiros posicionado logo ao lado do líder.
— Você é o Bronson? Mas você não se parece com a Etta...
— Calado, Kid! Você é muito corajoso em fazer essas brincadeiras. Ou seria a certeza da morte? — o líder dos pistoleiros olhou fixamente para Kid Billy e apontou a arma. Ele sabia que Kid se acovardava em sua presença onipotente e que logo tenderia a se render e pararia de fazer graça.
— Caramba... se o senhor ao teu lado é o Bronson, quem é você mesmo?
Sem um pingo de hesitação, o gatilho da pistola do líder foi puxado. A bala explodiu a garrafa do bom uísque que Kid Billy bebia, o que deixou Ransom muito puto. No entanto, as demais pessoas do saloon entraram em pânico e esvaziaram o recinto de imediato — todos sem pagar a conta, o que fez Ransom desmaiar de raiva. O clima no lugar estava cada vez mais tenso e todos sabiam que Kid estava prestes a ser furado.
— Porra, Kid! Eu sou o Newman, o pai da Etta. No meu lado direito está o Bronson, o pai da Ann, e no meu lado esquerdo está o Hill, o pai da Rose. Sua hora chegou, Kid!
— Ah! Verdade. Dá para perceber que o Bronson tem o mesmo olhar da Ann e que o Hill tem as mesmas bochechas da Rose. Mas você não tem nada da Etta, Newman. Você tem certeza que ela é mesmo sua filha?
Mais uma garrafa na prateleira explodiu. Milhares de cacos de vidro refletiam com imagens distorcidas a aproximação dos três pistoleiros junto ao Kid Billy. Newman estava muito furioso a ponto de ficar completamente vermelho.
— Você conseguiu, Kid. Você conseguiu com eu atingisse a minha máxima raiva e ficasse completamente vermelho. E você sabe o quanto isso me incomoda, pois quando minha pele fica rubra, ela não combina com a cor das minhas botas. Você está querendo acelerar o seu enforcamento, Kid Blily?
— Eu quero saber o porquê do nervosismo de vocês. Por que querem me ver morto?
— Você ainda pergunta, seu desgraçado?! — esbravejou Hill, quem muito dificilmente falava, pois resolvia todos seus problemas na base da bala — você enganou nossas filhas e acha que vai sair impune?! Você vai morrer!
— Elas que me enganaram! Vocês estão sendo injustos comigo! — Kid Billy se mostrou completamente transtornado com a acusação daqueles que já chamou de “sogrão”. — Quando eu percebi, elas já estavam me usando para seus bel-prazeres.
— Você foi longe demais, Kid Billy. É melhor que você fique quieto, pois queremos você morto num enforcamento público — alertou Bronson, com o cano da pistola encostado na testa de Kid — Não ficaríamos nada felizes em estourar seus miolos aqui.
Uma coronhada foi o suficiente para o apagar. Com os sentidos confusos, quando voltou a si, Kid Billy demorou para perceber sua situação. Vozes e rostos conhecidos eram notados em todas as direções, mas não faziam sentido estarem ali. Assim como não fazia sentido seu corpo estar de pé, sobre uma portinhola posicionada no centro de um palanque montado no meio da principal rua da vila. Uma coceira forte em seu pescoço o fez perceber que aí se encontrava uma grossa corda, o que fez o relembrar que estava prestes a morrer. Olhou atentamente e viu seus ex-sogros em sua frente, informando a todos o motivo da execução.
— Prezados, é com muita felicidade em nossos corações que informamos que Kid Billy vai morrer! — os aplausos eram intensos e se misturavam com os assovios. A população estava em estase — Esse desgraçado sempre se aproveitou de nossa boa vontade, de nossas filhas e de nossos esforços. Esse desgraçado tem que morrer!
Kid Billy viu que de fato a situação estava ficando complicada e que seus sogros não parariam até vê-lo morto. Diferentemente de outras oportunidades em que esteve em aperto e conseguiu escapar, ele precisava agir de forma mais enérgica e séria.
— Escutem aqui, seus pistoleiros de araque — com os olhos esbugalhados, com a pele roxa e com a sobrancelha encaracolada, Kid Billy revelou importantes detalhes sobre seu relacionamento com as filhas de quem o queriam morto — Ann é muito assanhada, Etta, muito ciumenta e Rose, muito avarenta! Elas tiraram tudo de mim para manter suas maluquices!
— Ora, seu desgraçado. Como ousa falar assim?! — Hill se aproximou da alavanca que abriria a portinhola e faria com que Kid fosse sustentado somente pela corda — Você vai morrer é agora.
— Acalme-se, Hill — interrompeu Newman — Parece que esse desgraçado tem mais alguma coisa para nos dizer. Aparentemente ele quer ter a chance de nos deixar ainda mais enraivecidos. Vamos deixá-lo tentar, para que a sua morte tenha um gosto ainda mais refinado.
— Obrigado, Bronson...
— O que você disse, desgraçado?
— Acalma-se, Newman. Se você quer dar essa chance de ele lhe enraivecer ainda mais, você não pode se exaltar por ele trocar nossos nomes. Continue, desgraçado.
— Pois bem... — assim Kid Billy começou a contar a sua versão da história, na qual tinha completa convicção que salvaria seu pescoço.