Almas de escritores perdidos
Jadi Araújo
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 04/02/16 11:56
Editado: 04/02/16 12:10
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 6min a 8min
Apreciadores: 15
Comentários: 6
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Usuários que Visualizaram: 32
Palavras: 1025
Não recomendado para menores de catorze anos
Notas de Cabeçalho

Esse texto também foi postado no Social Spirit e no meu blog. É de uma compreensão um tanto difícil, e a interpretaçã­o também. De qualquer forma, espero que interpretem cada um a sua maneira e que gostem hahah (isso que é o importante).

Boa leitura. <3

Capítulo Único Almas de escritores perdidos

Da última vez que meus pés haviam feito caminho por lá, a entrada era estreita e o fundo escondia estantes grandes, com livros antigos e esquecidos. Apenas uma lâmpada amarelada iluminava o cômodo, que tinha cheiro de mofo e poeira. O encanto daquele sebo simples sempre permaneceu intacto dentro de mim. Apesar da pouca idade e das memórias embaraçadas, eu me lembro nitidamente de percorrer os livros com os olhos, fascinada, atraída e sugada para aquela aura de palavras.

• • •

Anos depois, eu protagonizava — mas não protagonizava nada, de fato, além dessa história embebida em óleo de confusão — algumas das ruas de São Miguel — distrito da poluída e lamentável São Paulo — embutida no emaranhado de pessoas que tropeçavam em mim (às vezes com os olhos, às vezes com o corpo mesmo), quando esbarrei sem querer nas minhas lembranças e no próprio estabelecimento que eu havia visitado há alguns anos.

A multidão não quis saber de minha parada repentina, e continuou a deixar pegadas invisíveis de impaciência. Eu, no entanto, resolvi parar a trilha de minhas próprias pegadas ali, na frente do local. Sacudi meus pés sujos de pressa e adentrei. Estava tão antigo quanto antes, dessa vez com algumas manchas de infiltração­­­ na parede e uma aura mais desconfortável.

— O que posso fazer por você?

Girei o corpo para encontrar os olhos de uma velha senhora — reconheci como a funcionária de anos atrás apenas pela mancha escura que tinha no queixo —, que me encarava com estranheza.

— Eu só queria alguns livros — pronunciei, um tanto incapaz de me concentrar totalmente com aquela figura próxima.

Ela me deu um sorriso torto e me conduziu ao antigo caminho que eu bem conhecia: para o cômodo da lâmpada amarela e do mofo. O local parecia imune ao tempo, por não ter mudado absolutamente nada. Por alguns momentos me perdi naquela imensidão de capas, autores e ilustrações­­­; e foi assustadoramente familiar.

Tive a liberdade de percorrer os corredores — vazios; estava visível que o lugar não era visitado com frequência — e me distrair com todos aqueles títulos. A senhora pareceu perceber que eu ainda iria demorar, por isso notificou:

— Se precisar de qualquer coisa, estou no balcão, ali na frente.

Assenti.

Poderia ter se passado anos ou séculos, mas eu, assim como aquela sala, estava parada no tempo. Abri vários livros, me deparei com diversos trechos, me entreti com tantas linguagens que perdi a conta; por causa da poeira, os meus olhos arderam e eu espirrei tanto que achei que tinha pegado alguma doença. Mas, acima de tudo, a sensação de conforto que tive ao ler cada página desconhecida era mágica. Perdi a noção do tempo, e estava esperando que a velha senhora viesse me apressar.

Nada se ouvia lá dentro, nem um mínimo ruído. Por isso me assustei imensamente quando, ao esperar uma voz feminina, uma masculina sussurrou no meu ouvido:

— Faz um tempo que não vejo alguém tão absorto.

A sensação que tive foi a de que cada pelo do meu corpo se arrepiou. Eu não tinha visto mais ninguém naquela sala. Ele era alto, pálido, esguio e com sardas vermelhas — e irritadas — distribuídas pelo nariz, com um cabelo tão preto que poderia se ocultar facilmente em um aposento sem luzes.

Disfarcei a minha surpresa e me afastei alguns passos. Fiz um sinal com a cabeça e respondi com silêncio. Ele pigarreou.

— Eu estava te observando há um tempo. É que trabalho aqui e estava checando os livros, então pensei se não poderia ajudar.

Franzi as sobrancelhas, pois estava convicta de que só eu estava naquela sala.

— Não preciso de ajuda, obrigada. — Recuei, um tanto assustada.

— "Eu procuro incessantemente por algo que preencha o meu vazio, qualquer rastro ou resto que me leve até ela". — Encarei-o. — É uma citação. Na verdade só estou tentando puxar assunto, você parece solitária. — Os seus olhos sorriram.

— Nunca ouvi essa citação.

— Na verdade, só você ouviu. — Ele se apoiou na estante. — Eu escrevi.

Fiquei quieta por alguns instantes.

— Escuta, qual é o seu nome?

— Amélia.

— Amélia... — Ele riu. — Eu poderia dizer o meu, mas um nome não vale muita coisa para mim, e não quero que valha para você.

— Certo. Olha, eu só quero pegar um livro e ir embora — Franzi os lábios, nervosa.

— Eu tenho o livro perfeito para você. Espere.

Ele sumiu no meio dos corredores por alguns instantes, me deixando com uma sensação estranha na cabeça, como se uma corrente fria ultrapassasse meu cérebro. De repente, eu só queria sair dali. Ele voltou pouco tempo depois com um pequeno exemplar na mão, que me estendeu com um sorriso.

— É um tanto complexo, mas tenho certeza de que você vai conseguir compreender perfeitamente.

O livro caiu na troca das mãos, e ele se abaixou rapidamente para pegá-lo. Quando levantou, estava incrivelmente perto, a poucos centímetros de distância. O momento que se seguiu ainda é confuso para mim.

Foi como se pura poesia entrasse na minha respiração,­­­ nos meus poros, no meu corpo, na minha mente, e eu estava em combustão, em êxtase, em transe, e ele sugava alguma coisa de dentro de mim, ele sugava, e sugava, e me deixava na escuridão, e eu suava, e ele tirava...

— Fuja, vá embora, menina! Vá embora! — A velha gritou, enquanto suas mãos gélidas — tão diferentes das mãos dele — me empurravam para fora e eu não sabia o que fazer além de andar, correr, rastejar para fora dali.

Quando olhei para trás, apenas vi os olhos melancólicos dele me dando um adeus indesejado e triste. A porta se fechou atrás de mim e o cheiro de mofo sumiu do meu nariz. Dei de cara com a multidão novamente, tentando normalizar a respiração. Já estava de noite. Olhei para as minhas mãos e o livro estava lá. "Lamentações e súplicas da palavra". Quando abri, a primeira página continha uma mensagem com tinta fresca: "Obrigada por me deixar roubar um pouco da história que tem em você".

Alguma intuição desconhecida que eu carregava dentro de mim ordenou que eu olhasse para cima. E quando o fiz, reparei em algo que nunca tinha visto antes; o letreiro daquela livraria, que dizia: "Almas de escritores perdidos".

❖❖❖
Apreciadores (15)
Comentários (6)
Postado 04/02/16 22:06

wow menina! me surpreendi quando cheguei mais ou menos no meio da estoria. Ela daria um bom anime/mangá ^^ Gostei mesmo! parabéns Jadi!

Postado 27/02/16 03:47 Editado 27/02/16 03:48

oohh, surpreendi você! olha que mágico! -* e de quebra você ainda curtiu o texto. <33'

muito obrigada, linda! ~ <3

Postado 14/02/16 13:32

Indescritivelmente maravilhoso...

Fascinante!

Postado 27/02/16 03:48

muito obrigada!! ><

Postado 26/02/16 00:36

Faz muito tempo que não leio uma história assim, e faz mais tempo ainda que não comento uma história. Eu costumo fazer comentários grandes, espero que não se importe ^^'

Para começar tem essa menina que desde pequena tem uma paixão pela leitura, e isso foi muito bonito e fácil de se indentificar. As descrições que você fez do caos da cidade, e logo depois do silêncio do sebo foi um contraste tão aparente, mas que passa despercebido pelo mundo. O atual e o lugar intocado pelo tempo. Os livros como velhos companheiros que continuam a contar velhas histórias, e a aparição do livreiro que a um momento não estava lá, e subtamente revolve toda a narração. Foi uma metáfora? Eu adoraria tentar entender. Por enquanto só consigo pensar na garota Amélia como uma potencial escritora, e o livreiro como o sistema social que tem como objetivo impedi-la de mostrar seu poder sobre as palavras r ou a história que ela escreveria. Ele dá a ela suas desculpas antes de roubar seu bem precioso, um pouco de sua poesia e fantasia, mesmo que não queira, porque as histórias precisam ser alimentadas. Ele se alimenta da alma dos escritores para formar novos livros e assim atrair mais pessoas com potencial, começando tudo de novo.

Bem, você quem escreveu, e certamente sabe o que quis dizer. Eu sou só uma leitora engatinhando para decifrar o sentido por trás de suas palavras belas. Está muito bonito *-* vou me despedir, porque já está meio grandinho. Até~

Postado 27/02/16 03:58

oláá! muito obrigada por comentar, adoro comentários gigantes como o seu! <3

sabe, um dos meus (muitos) objetivos nessa história era apontar os contrastes entre um "universo literário" e o "mundo real", o modo como a aura, para nós, leitores, é totalmente diferente uma da outra; e fico imensamente feliz que alguém tenha percebido!

o seu raciocínio sobre o texto chegou muito perto do que era a minha intenção inicial; e pouquíssimas pessoas chegaram em uma conclusão parecida. eu adoraria lhe contar a minha interpretação, mas a sua é tão mágica quanto qualquer outra, e isso eu não gostaria de mudar! mas, se ainda assim quiser fazê-lo, é só entrar em contato comigo de um meio mais privado! quem sabe possa rendar boas conversas também! :3

no mais, muito obrigada pelo comentário gigante (sou muito fã deles u.u), por todos os aspectos da história que você percebeu e apontou pra mim e pelos elogios, os quais sou muito fã, apesar de não saber como lidar ;-;

fico feliz que tenha gostado! ~ <3

Postado 03/03/16 09:58

Estou surpreso, fascinado e agraciado como há algum tempo não ficava ao ler um texto, pois certamente este tipo de obra é um tanto quanto difícil de se encontrar. Li, reli e tornei a ler uma vez mais. É simplesmente incrível. não sou muito bom com interpretações, costumo levar tudo ao pé da letra. E certamente este texto possuí metáforas que só o enriquecem e engrandecem a esta talentosa e surpreendente autora.

A narrativa é algo único e aprazível, cheia de profundidade ainda que com combinações sutis (e poderosas) de palavras. Impossível não se identificar com a protagonista, soa tão familiar! A ambientação foi muito bem feita e descrita de modo que gera imagens em um piscar de olhos na mente de quem lê. E a trama é de uma primazia invejável. começo, meio e fim em uma escalada perfeita, mágica!

Só posso modestamente pressupor que Amélia simboliza a nós, os escritores, que muitas (tanta!) vezes se perdem na rotina e na correria da vida, por vezes incapazes de reencontrar e dar ouvidos ao Desejo da Escrita. Ele, para mim representado pelo livreiro, que anseia por extrair todo o nosso potencial, unindo nossos conhecimentos literários e vitais e convertendo o conjunto em obras feitas com toda ou parte de nossa alma (como é o caso desta história, que pode ser sentida).

Mesmo correndo o risco de nos consumir inteiramente.

O estabelecimento antigo me soa como o nosso lado escritor escritor, onde tudo o que retemos na mente por meio da leitura fica armazenado, por vezes mofando sem de fato ser utilizado e onde o Desejo vaga faminto por mais. E os livros seriam representações máximas dos pedaços de nossas almas e corações que transformamos (tentamos, ao menos) em obras.

Mas claro que na primeira vez que li, não houve nenhuma interpretação rebuscada. levei para o lado sobrenatural mesmo... Aquele ser peculiar era um demônio que devorava a inspiração de pessoas com potencial de escritor, deixando-os sem "alma" (não é como nós nos sentimos quando estamos com bloqueio?). Os livros eram apenas resquícios de obras de suas vítimas para atrair mais vítimas...

Meus mais sinceros parabéns e agradecimentos por esta verdadeira obra de arte que tanto encanta quanto ensina aos leitores e aos autores! a senhorita jamias me decepcionou e este trabalho foi/está magnífico! Me curvo humildemente perante a grandeza de seu conto!

Atenciosamente,

Uma criatura quase sem alma, Diablair,

Ps: perdão pelo longo comentário, faz MUITO tempo que não deixo um deste tamanho!

Postado 07/09/16 16:03

esse é um dos comentários mais perfeitos que já recebi.

não sei o que te dizer, mon ami, não sei como expressar o quão grata estou nesse momento.

Postado 27/06/16 21:41

Caracas! Fantástico essa história. Daria um filme, um seriado e sei lá mais o que. Daria um infinidade de coisas que poderam ser fodasticamente foda. Certeza. Explore esse universo moça, imploro que faça algo grandioso com isso.

Postado 07/09/16 16:00

você se surpreenderia se eu dissesse que, de fato, estou tentando fazer algo com essa história?! só está um pouquinho complicado! hahah

obrigada. <33

Postado 19/01/18 02:18

Fazia muito tempo que eu não lia algo desta magnitude. Foi a leitura mais surreal que fiz neste site até o momento. Sinto-me extasiada e um tanto quanto maravilhada com a sensação que essas palavras causaram em mim.

A narrativa é tão leve, que nem notei o tamanho da obra, apenas engoli cada palavra como se fosse a última. O homem misterioso que surgiu do nada poderia ser muitas coisas, menos aquilo que realmente era. Todas as minhas teorias foram pro saco rs.

A protagonista da história é tão parecida comigo que fique em estado de choque. Faço o mesmo que ela: paro na multidão e entro em sebos que conheço tão bem, só pelo prazer de estar lá e encontrar um livro que impregne minha alma.

Parabéns pela obra ❤

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