Abominável.
Esta era a palavra que melhor descreveria a coisa que se encontrava à beira do Abismo que existia no fundo de um poço onde há tempos despencara. Descendeu tão profundamente que a luz da saída fitada lá debaixo mais parecia uma longínqua estrela. E como tal, embora sua luminosidade pudesse ser observada, provavelmente não mais existisse de fato.
Voltou o olhar enlouquecido para si própria. Aquela monstruosidade era enorme, disforme e maldita. Feridas e correntes rasgavam sua pele e minavam sangue como se fosse um pranto escarlate. Grilhões parafusados no crânio terminavam em pesos que pendiam até o solo frio e duro onde os cascos e joelhos da criatura se encontravam. Sua bocarra repleta de dentes (e por vezes, veneno) se mantinha funestamente fechada. Todavia, por dentro gritava. Urrava. Cada vez mais alto.
Inalou o ar viciado do local e se espantou com o próprio odor: fedia a excrementos, dela própria e dos que outrem lhe atiraram sobre o corpanzil ao longo do tempo. Sua pele estava esfriando de dentro para fora, igualando as temperaturas do corpo e da alma. O sopro do Abismo solapou suas narinas com um aroma inexplicável. Estava perigosamente perto da borda. Tão perto que talvez um pensamento a mais fosse o suficiente para que caísse. Só que a abominação não pensava mais. Apenas sentia. Sentia? Não sabia mais.
Não se importava mais.
O Abismo (ou seria sua mente?) ciciava... Ciciava... E a abominação, entorpecida, ouvia. Quando enfim tomou sua decisão, ouviu algo além. Assustou-se por um segundo: julgava estar sozinha naquela desolação. Ao menos, era a certeza que tinha. Entretanto, escutou perfeitamente o arrastar de passos em sua direção. Quase cega pela torrente emocional que a tomava há tempos e pelas trevas do recinto, demorando em discernir o que vinha vagarosamente ao seu encalço. Até que, por fim, a proximidade se fez suficiente e a coisa finalmente enxergou, por cima do ombro, a origem dos inacreditáveis ruídos.
Era outra criatura, bem menor, mais antiga e, ainda assim, infinitamente bela que ela. Os passos eram vagarosos e pareciam serem executados com dificuldade: havia muita dor naqueles movimentos. A pele, a cabeleira, a leve curvatura corporal... Tudo indicava e emanava a passagem considerável de tempo. No entanto, um paradoxo: havia muito poder naquela figura, tanto quanto a fragilidade aparente. Era algo tão intenso e inegável que a outra criatura se virou, demovida de seu intento por um instante.
Sabia muito bem diante de quem estava.
— Vá embora! — berrou a coisa à beira do Abismo com um timbre gutural e a plenos pulmões, o som dos elos enferrujados ganhando o ar infecto.
— Escutei "Por favor, fique!" — retrucou com suavidade a ouvinte enquanto continuava a seguir em frente.
— Você não entende! Nunca entendeu! — vociferou o ser grotesco, gesticulando com violência como se isso concedesse força às palavras.
— Escutei "Eu não consigo lhe explicar direito! Nunca consegui!" — respondeu calmamente a misteriosa aparição, cada vez mais próxima.
— Olhe para mim. Vamos, OLHE PARA MIM! — clamou ferozmente a criatura monstruosa, como que se expondo por completo — Não mereço sua ajuda... Não depois de tudo... — sua voz fraquejou, como se o jugo das memórias sobrecarregasse o âmago.
— Escutei "Não olhe! Não quero que veja o que me tornei... Nem que se suje por minha causa. Não de novo." — rebateu de modo afável a diminuta visitante ao ficar à distância de um toque daquele monstro.
— O que quer fazer, o que sente por mim... Não é do meu merecimento. — murmurou a aberrante entidade, desviando o olhar rumo ao Abismo, indicando o que julgava ser-lhe mais adequado. — Eu...
A ouvinte impediu que novas frases fossem ditas colocando o pequenino dedo indicador defronte a boca imunda do monstro, em um gesto sutil e ainda assim autoritário que foi obedecido. Em seguida, dilacerou o peito com a mão livre, expondo um coração anormalmente grande, teoricamente impossível de caber dentro de sua caixa torácica. O órgão pulsante e enrugado estava cheio de cicatrizes, algumas reconhecidamente feitas pelas grandes garras da testemunha de tal atrocidade. Havia uma energia colossal condensada ali, radiante ao ponto de expurgar a escuridão e devolver integralmente a visão da surpreendia monstruosidade.
— Veja, pequenino... Sinta. O que há aqui é seu. Sempre foi e será. —explicou a idosa criatura com um afável sorriso enquanto acariciava o rosto horrendo diante dela. — Não por merecimento, mas por direito de nascença. Entenda. Aceite.
Vencida, a monstruosidade gigantesca pranteou amargamente aos pés da outra coisa, que guardava o músculo cardíaco dentro de si. Depois disso, com uma força incondizente com sua estatura, ela apanhou o ser e o arremessou para cima, em direção ao ponto minúsculo que reluzia sobre ambos.
— Não posso te levar até lá. Mas sempre estarei por perto para mostrar o caminho. — exclamou a antiga visitante para o ser horrível de asas feridas, vendo-a fincar as garras nas paredes do poço quando a arremetida cessou. — Agora vá! Ascenda! Eu estarei com você, meu filho. Nem o Fim me impedirá de estar.
Ela desapareceu tão repentinamente quanto surgiu, deixando apenas a força de seu sentimento para trás.
Com o pranto contido e um sorriso atroz, porém agradecido, o monstro tentou mover os braços longos e delgados. Ainda estava (e se sentia) imundo. Ainda estava muito machucado da queda. Ainda havia muitos pesos e correntes. Não seria nada fácil escalar. Outras quedas certamente viriam. Todavia... Relembrara com sua progenitora, a única a quem amou e por quem era amado incondicionalmente, que deveria continuar tentando. Devia fazer isso, se não por si mesmo, ao menos para honrar os esforços dela.
A luz ainda estava tão longe quanto uma estrela. Só que agora, um gesto menos distante.