Eu não sei bem o que sou e nunca quiseram me explicar. Há muito tempo perguntei a Deus sobre minha origem e sobre minha missão junto aos deuses e aos humanos. Ele me respondeu que isso não se fazia importante saber, frustrando-me completamente. Mas eu estava muito curioso e, portanto, questionei a Lucífer, convicto que saberia mais sobre mim. Quebrei a cara mais uma vez. Até mesmo o fofoqueiro dos Infernos me negou essa resposta, dizendo que quem deveria sanar minha curiosidade era Deus. Fiquei enraivecido com esse silêncio e simplesmente decidi ignorar essa dúvida em minha cabeça, para poder viver em paz. Também fiquei enraivecido, ainda que momentaneamente, quando Deus me colocou no limbo, onde me encontro até agora, com a intenção de me castigar. Caramba, eu gosto muito de ser livre, de poder transitar pelo Céu, Inferno e Terra. Aqui tem cheiro ruim e é muito monótono e entediante, embora consiga me distrair perdendo-me em lembranças.
A minha última atividade com Deus o deixou muito fulo da vida, a ponto de me castigar de tal modo. Sei que parece uma reação exagerada, mas também entendo que o que aconteceu foi o pingo que faltava para a água transbordar. Em outros projetos que trabalhamos juntos, também cometi erros incríveis, que comprometeram muitos anos de trabalho. O primeiro deles foi há milhões de anos, quando fui a Terra para auxiliar no desenvolvimento tecnológico da primeira espécie superior que Deus criara. Eu e os lagarteanos, uma espécie de dinossauro, desenvolvemos um meio para que a obtenção de alimento fosse de forma rápida e eficiente, sem precisar de toda a truculência do método tradicional. Para isso, construímos enormes máquinas em enormes edificações, que ocupavam enormes regiões de terra e mar pelo globo inteiro. Foram muitos anos de trabalhos, até o dia da inauguração, o dia do meu primeiro grande erro. Para me homenagear, Deus e os lagarteanos decidiriam que eu deveria apertar o botão que colocaria todo o sistema a funcionar. Fiquei muito feliz e estava muito orgulhoso do nosso trabalho. No entanto, apertei o botão errado e uma reação em cadeia não prevista gerou uma gigantesca explosão. Todo o desenvolvimento tecnológico foi varrido da face da Terra e a primeira raça superior foi extinta. Deus não acreditava no que via e, em um momento de extrema raiva, me mandou para o Inferno, dizendo que estava proibida minha presença no Céu e na Terra até ele se acalmar e recomeçar seu projeto de uma espécie superior.
Fiquei por um longo tempo no Inferno, na boa companhia de Lucífer, com quem sempre tive grande amizade. Ficávamos noites em claro nos divertindo com jogos de azar e criando criaturas demoníacas para assustar os outros seres. Inclusive, enquanto criávamos uma espécie de mula que cuspiria fogo pela boca — só faltava fazer a cabeça —, Deus veio até o Inferno me procurar e disposto a me dar uma nova chance. Desta vez, a minha incumbência era ajudar um humano chamado Noé a construir uma arca gigantesca. Muito tempo depois, conversando com Lucífer, vi que Deus estava insatisfeito com a maioria dos exemplares da nova espécie superior que tinha acabado de criar e, por isso, decidiu salvar somente os exemplares bons e exterminar os demais com um dilúvio. Mas na época, eu nem perguntei o porquê Deus queria fazer isso, mas disse que ajudaria Noé com maior prazer. Voltei a Terra, onde começamos a construção de uma arca gigantesca, grande suficiente para abrigar cem casais de tudo que fosse vivo. E, com muito trabalho, eu e Noé terminamos a construção da arca em um mês. Deus gostou muito do que tínhamos feito e ficou feliz que estávamos dentro do prazo estipulado. Mas quando ele foi dar continuidade ao projeto, obrigou-se a interrompê-lo, pois eu tinha decidido inaugurar a arcar jogando em sua direção uma garrafa de champanhe, a qual se chocou com o casco com muita força. O estrago foi gigantesco, a ponto que seria mais fácil construir uma arca cem vezes menor do que reparar a arca danificada. Infelizmente, foi isso que aconteceu, o que acabou atrasando muito o projeto de restauração da espécie superior. Deus ficou muito bravo comigo e me mandou ao Inferno mais uma vez.
Fiquei na companhia do Lucífer por mais um longo tempo, o que não foi problema algum. Não sei como Deus pretendia me castigar me mandando ao Inferno. Mas enfim, fiquei nas profundezas até Deus me chamar novamente e pedir por ajuda. Desta vez, Deus engoliu um pouco de seu orgulho e decidiu pedir colaboração para outros deuses, para finalmente ser possível ter uma espécie superior que funcionasse corretamente. Sua primeira parceria foi com Rá-Atum, com quem elaborou um plano que tinha como objetivo aproximar os humanos e os deuses. Para isso, era necessário a construção de inúmeras pirâmides, as quais serviriam como antenas que transmitiriam mensagens entre o criador e a criação. E assim, fui mandado ao Egito, onde, junto com o povo local, demos seguimento ao plano divino. No fim, construímos uma dezena de pirâmides e tudo parecia que correria bem. Pois bem, ledo engano o meu. Apenas três pirâmides permitiam o contato com Deus e Rá-Atum, enquanto as outras sete estavam voltadas para o Inferno. Lucífer, brincalhão como é, aprontou muito com os humanos e frustrou o plano tão bem elaborado. Deus e Rá-Atum acabaram com a parceria e eu voltei ao Inferno. Sei que Deus tentou uma parceria com Zeus, mas também não deu certo. Fiquei aliviado que a culpa não caiu sobre mim, ao menos daquela vez.
Mas minha serenidade não durou mais que alguns poucos séculos. Deus iria tentar novamente desenvolver uma civilização avançada entre os povos, a qual, posteriormente, doutrinaria a palavra divina a todos. Isso não seria problema, se para essa nova tentativa ele não tivesse chamado o hippie do Jesus. Deus me preteriu a um hippie! Deus achou que um hippie poderia mudar o cenário caótico que acometia a sua espécie superior. Subi ao Céu e disse diretamente a Deus e a Jesus que esse plano não daria certo. Voltei ao Inferno e prometi a mim mesmo negar ajuda a Deus até ele não admitir que cometera um grande erro. Na companhia de Lucífer e da mula sem-cabeça, cuja virou bicho de estimação e fugiu um tempo depois, acompanhei o desempenho de Jesus. Tenho que admitir que no começo, ele foi bem, mas no fim, deu a merda que já era prevista. A tentativa foi tão frustrada, que hoje em dia os humanos continuam sendo falhos e, para piorar, utilizam o nome do hippie para justificar suas falhas.
Mas Deus, genial como é, percebeu que cometera um grande erro com Jesus e por isso veio até mim admiti-lo e pedir ajuda. Eu fiquei muito feliz que poderia voltar a frequentar o Céu e ajudar a Deus a criar a espécie superior perfeita, algo que ele tanto almejava. Inclusive, prometi a mim mesmo e a ele que faria de tudo para não estragar nada da próxima vez, quando na verdade, eu cometeria o erro que acabaria com a paciência de Deus e o faria a agir como agiu. A nova tentativa de Deus foi aproximadamente nos anos dois mil após o hippie nascer na Terra. Esse novo plano era diferente de tudo que Deus já tinha tentado, a ponto de deixá-lo muito radiante e confiante. Dessa vez, Deus se esforçou muito em algo que ele considerava utópico, mas que foi possível de ser construído: um humano de bom coração e de boa índole. A ideia era que esse humano fosse até a Terra e se reproduzisse com os demais humanos. O gene da bondade seria sempre dominante e em um século, ou até em um milênio, a humanidade seria completamente boa. A minha missão nisso tudo era levar o humano bondoso até a Terra e protege-lo de qualquer mal que pudesse exterminá-lo. Era algo simples e que poderia fazer sem causar nenhum dano. No entanto, frustrei os planos de Deus novamente. Ao partir do Céu em direção a Terra, decidi mostrar o humano ao Lucífer, para que visse a boa ideia de Deus. No Inferno, Lucífer também concordou no sucesso de Deus, visto que era uma brilhante ideia. Ele pediu para ver o humano mais de perto e eu, obviamente, deixei. Não deveria tê-lo feito. Lucífer se aproveitou de um momento meu de distração e modificou o coração do humano. Assim sendo, quando o humano bondoso começou a se reproduzir na Terra, seus frutos eram tão problemáticos quanto os demais humanos. Deus logo percebeu que algo estava errado e, com uma rápida investigação, descobriu o porquê.
E é por isso que hoje estou no limbo. Deus quer me ver distante da Terra, do Céu e do Inferno. Quer também que eu fique longe do Lucífer, visto que é uma má influência. Sei lá, acho que Deus exagera, às vezes, mas não vou entrar nesse mérito. De fato, acabei com o trabalho dele. O negócio é esperar ele se acalmar para eu poder sair daqui. Mas até lá, me obrigo a ficar sentido esse cheiro podre no ar e compartilhar minhas aventuras e missões que vivi na Terra, no Céu e no Inferno para as almas que aparecem por aqui. Felizmente, esses momentos nostálgicos me acalmam e me motivam. Quem sabe, um dia saia daqui e resolva o problema da espécie superior para Deus? Ele ficaria tão feliz e, de repente, até me contaria o que eu sou de fato. Nossa, não vejo a hora de sair daqui.