Fome, sede, comida e água.
Essas eram as únicas coisas que se passavam na cabeça de Isabel enquanto definhava dentro daquele moquifo em uma favela paulistana qualquer. Nascida em berço de ouro, sempre foi uma pessoa mimada que teve tudo o que quis, do jeito e na quantidade que bem entendesse.
Os roncos de seu estômago eram tão grandes e feios que sentiria medo e/ou vergonha se não estivesse sentindo tanta fome. Lembrou aos prantos de todas as vezes em que desperdiçara ou mesmo desprezara as fartas refeições que eram postas à mesa. Até mesmo o sal das poucas lágrimas que porventura chegavam ao seus lábios lhe lembrava alguma coisa gostosa e ela se apegava àquela ilusão gastronômica o máximo que podia.
Sequestrada em uma ação ousada de criminosos durante uma ida ao médico, sabia que alguma estava muito errada. Nunca mais vieram lhe oferecer as tais marmitex, sucos e água, recusadas por orgulho e agora desejadas com a avidez que só um jejum prolongado provocaria em alguém.
A garota, uma jovem loira, bela e vaidosa, agora estava parecendo uma mendiga, posto que suas roupas de grife se converteram em andrajos nojentos fedendo a urina e excremento. Amordaçada, com mãos e pés presos por algemas e acorrentada ao piso só enquanto os meliantes iam "fazer um corre", Isabel se viu abandonada à própria sorte quando, na sua mente enfraquecida, já havia se passado dois dias desde que eles saíram.
Na verdade, às quinze horas havia feito três dias e meio que os bandidos foram emboscados e mortos por engano na mais nova guerra entre gangues da região. E ninguém mais sabia de Isabel e seu cativeiro.
Isabel, a patricinha arrogante que sempre destratou a quem julgava inferior, que até achava engraçada a visão das magérrimas crianças africanas, que fizera guerra de comida com as amiguinhas nas festinhas quando mais nova.
Sim, era ela. A mesma garota fétida, faminta e agonizante que se arrependera amargamente de sua conduta e que morrera pedindo perdão para Deus e desejando como nunca ao menos um pedaço de pão.
Sua alma desprendeu-se do corpo repugnante como uma borboleta ao libertar do casulo. Estava limpa e linda de novo, entristecida tanto pelo seu próprio fim quanto pelo modo brutal como teve de aprender duras lições.
Havia alguém lhe esperando. Era um menino bonitinho, loirinho e de pele alva como a sua, um pouco gordinho, trajando uma toga branca como leite. Parecia até um cupido dado o tamanho e aspecto, estendendo a mãozinha rechonchuda para ela com o mais lindo dos sorrisos.
Isabel suspirou ao olhar para seu próprio cadáver pela última vez e com uma lágrima na face, todavia sorrindo, foi em direção ao garotinho lindo e segurou sua mão. Era tão quente e macia...
Caminharam aos risos e pulos para fora do casebre, onde a fronteira entre os mundos começava a ser vencida. Não contendo a curiosidade, Isabel olhou para o mais novo e risonho amiguinho, decidindo fazer-lhe uma pergunta.
— Por gentileza, me conta uma coisa... — ela mesma estranhou a própria cordialidade, até então inédita e prova de que algo mudou dentro de si. — No Céu tem bastante comida, né?
O garotinho continuava a guiar Isabel pela mão quando respondeu com um tom de voz tão meigo quanto o dela:
— Quem disse que eu vou te levar pra lá, sua filha da puta?
E então, com uma gargalhada monstruosa e apertando ainda mais os dedos da menina que gritava tentando em vão fugir, o infante desapareceu junto com Isabela.