Ele iria vir naquela noite.
Eu tinha certeza que sim.
Fazia tempo que eu estava ali. Muito, tanto que a quantia exata já havia se perdido em minha memória. Aquelas paredes brancas... Eu já havia decorado até mesmo as ranhuras na tinta. O cheiro dos produtos de limpeza, cujos rótulos de suas embalagens clamavam serem inodores, pareciam vagar pelo cômodo só para infestar minhas narinas, ainda que as mesmas estivessem com essa peça plástica inserida nelas.
E a cama, o lençol e a coberta? Eram quase parte de mim, extensões ultimamente desconfortáveis deste corpo esquálido. Até o medicamento me era íntimo naquela altura do tratamento (ou seria adiamento?), seu gotejar e percurso na mangueira ritmadas como o bipar do equipamento cardíaco ali presente.
Eu estava/ficava/sofria sozinho naquele quarto a maior parte do escasso tempo em que permanecia desperto. A doença fazia de mim seu longo banquete, saboreando uma módica porção de cada vez, sem pressa de terminar nem intuito de repetir ou deixar sobras.
Não restava muito de mim, inclusive.
Geralmente, era na madrugada em que meus olhos (e demais sentidos) voltavam a funcionar. As dorem vinham logo depois, tão toleráveis quanto farpas sob as unhas. Todavia, já havia me condicionado àquela tortura. Sentia que ela e meu estágio terminal estavam de alguma forma me alterando a consciência, o que era melhor do que o abandono social e familiar que a realidade solapava em minha cara .
Quando finalmente aceitei minha sina e parei de me importar com o fechar das cortinas, eu o vi pela primeira vez na janela, parado na barra metálica que emoldurava a vidraça.
O Pássaro Esverdeado.
Na primeira vez, eu me assustei tanto que quase me urinei: aquela ave , maior do que um corvo adulto, parecia me encarar mesmo que mantivesse as pálpebras fechadas. Seu bico tinha uma coloração semelhante a leite coalhado. Mas era seu corpo que mais chamava a atenção, causando-me intensa e instantânea repugnância.
Sua penugem era verde escura, brilhosa como fosse banhada em óleo. Entretanto, não o recobria por completo, o fazendo de tal modo que dava a impressão do animal possuir sarna. E o couro exposto ostentava um tom esverdeado que lembrava ranho. Parecia até ter a mesma textura, ao meu olhar apavorado.
O medo e a estranheza fizeram com que meu grito ficasse só na intenção. Nos encaramos. Então ele abriu uma das asas, me permitindo observar os vermes e carrapatos que habitavam sua carne gangrenada. Tombou para trás, sumindo junto com minha paz de espírito.
Que diabos foi aquilo?! Julguei-me alucinado, tomado por delírios farmacológicos. Provavelmente a moléstia já chegara ao cérebro. Qualquer coisa, menos crer na realidade daquela visita e visão macabras.
Ninguém acreditaria. Então guardei minha loucura para mim mesmo. Mas foi acontecendo outras vezes. Sempre na mesma hora. Sempre a mesma coisa. Até que uma bela madrugada, eu despertei com um som asqueroso reverberando de repente no quarto.
Ele começou a "cantar". Soava como piada dizer isso porque aquela sonoridade por ele emitida parecia mais um gargarejo feito por alguém utilizando soda caústica ou o regurgitar de um alcoólatra sufocando com o conteúdo de próprio estômago. E conforme aquele escárnio sonoro prosseguia, a ave grotesca batia as asas de maneira errática, expelindo bigatos, sangue e pus das chagas que o assolavam.
Estranhamente, eu achei aquilo tão nauseante quanto... Triste. Conforme a tentativa de canção prosseguia, eu pude enfim notar toda a sua dor. O martírio que lhe era soprar o ar pelos pulmões perfurados, a abertura forçada do bico frágil, a movimentação danosa e caótica. Chegava a ser masoquista tal performance artística.
Era como se ele fosse morrer a qualquer momento. Feito eu.
Ao me dar conta do quanto éramos parecidos, eu parei de tremer, mas não de temer. Ele pareceu se dar por satisfeito e caiu de novo. Senti um misto de pânico e pesar. O que significava aquilo? Teria a razão enfim me abandonado? Estaria o Sobrenatural ou até mesmo o Além se revelando para um moribundo? Não sabia dizer. Supus que nunca saberia.
O tempo passou. As visitas do enigmático pesadelo com asas eram aleatórias, todavia foram ficando mais frequentes na medida em que meu quadro de saúde declinava. Um certo dia, um enfermeira novata esqueceu a janela aberta. E justo naquela ocasião, a criatura alada veio me assombrar. Entendendo aquilo como um convite, ela adentrou o quarto em um rasante desajeitado, patético mesmo. Caiu como um pombo apedrejado no chão, bem ao meu lado.
Eu criei coragem e olhei para o Pássaro Esverdeado. Tentava se erguer, mas fraturou as pernas. Ficou ali mesmo, emitindo um barulho parecido com alguém tentando falar com a garganta retalhada. O bico quebrado e dependurado só tornou a cena mais deplorável. E o fedor, então?
Santa mãe de Deus, nada vivo poderia feder daquele jeito!
Ou podia?
A doença já me fazia cheirar como um cadáver. Não era muito diferente daquela coisa asquerosa gralhando como algo leproso. O medo não era maior do que a bizarra cumplicidade que passei a nutrir por aquele defunto voador com a qual eu julgava alucinar.
— Estamos fodidos, bicho maldito. — expeli meio com receio, meio com dó, meio tossindo. — Fodidos e mal pagos! Que final de merda esse nosso! — eu ria enquanto lágrimas escorriam de meus olhos. Dor e fedor, péssima combinação.
Quando a crise passou, tornei a olhar para baixo, mas ele havia desaparecido em uma poça escura e rançosa. Uma pena imunda bailava pelo ar, deixando um rastro pestilento enquanto o vento frio da madrugada a arrastava janela afora. Desnecessário dizer que a nódoa funesta sumiu pela manhã, inviabilizando qualquer comentário meu sobre o dantesco fenômeno.
Depois daquela visita, não demorou muito para que meu estado de saúde chegasse ao estágio crítico, terminal. Eu pressenti que iria falecer logo. Pedi que suspendessem a medicação: queria encarar meu fim totalmente lúcido. Não foi lá uma decisão muito sábia: a dor que eu senti foi algo que palavras humanas ainda precisariam ser inventas para descrever.
Era minha última noite. E ele então apareceu. Eu pedi para que deixassem a janela escancarada, o ar viciado me irritava. O frescor do vento noturno seria mais que bem-vindo. E meu vistante também. Ao menos daquela vez.
O Pássaro Esverdeado voou todo desengonçado até meu leito de morte, quase que desabando sobre meu peito ossudo. Ele era gelado e nojento, cheirando a carniça ou pior. Não liguei. Encarei suas pálpebras fechadas com meu olhar cerrado. Tentei agradecer por suas visitas assustadoras: foram as únicas que recebi. E ali, naquele momento derradeiro, havia ao menos outra alma miserável ao meu lado. Melhor que morrer sozinho.
Eu não tinha mais como falar. Gastei minhas últimas forças para acariciar aquela agourenta criatura, mesmo com o asco inundando minha alma. Ela se aquietou, permitindo que minha mão magérrima deslizasse por suas penas gordurosas, vermes, carrapatos e ferimentos apodrecidos. Emitiu um único e último chiado, fraco e baixo como o choro de um recém-nascido morrendo. E igualmente se foi.
E eu estava para segui-lo.
Sem culpa ou arrependimentos, sem reflexões ou questionamentos, sem absolutamente nada na mente ou no coração. Foi tão estranho quanto conveniente... Cheguei a fechar meus olhos, agradecido por ter vivido uma aterradora e diferenciada experiência de vida no final da minha. O sofrimento, a exaustão, a vontade do término... Tudo estava no auge.
Foi naquele ínfimo instante que o Pássaro Esverdeado finalmente abriu seus olhos. Seus terríveis e inacreditáveis olhos...
O que aconteceu a seguir? Bom, isso já é coisa para se contar em outra ocasião...