Interlúdio
Eu sempre soube que esse momento maldito iria chegar. Julguei-me plenamente preparado para ele em todos os aspectos e agora vejo o quanto havia subestimado as consequências de meus atos. Não que eu esteja arrependido: Não, de forma alguma. Só estou com muito medo, sentindo-o de uma forma inédita e absoluta, como se quaisquer outros sentimentos e sensações fossem inexistentes.
Acho que nunca chorei tanto em minha vida como estou fazendo aqui, sentado nesse lugar escuro, frio e cujo silêncio só é perturbado pelo meu soluçar e fungar de nariz. Estou nu, faminto e sedento, exalando um odor extremamente desagradável devido ao suor gélido que inunda meu corpo magro e moreno. Entre um delírio e outro, oriundo das privações a que me submeti por livre e espontânea vontade, o pavor permanece fustigando meu coração pelo que estou prestes a realizar.
Observo o reluzir esverdeado e fantasmagórico das unhas de minhas mãos: é o sinal de que chegou a hora. Meus olhos, já inchados de tanto expelir lágrimas, se fecham lentamente à medida que me levanto com dificuldade, tremendo como se possuísse Mal de Parkinson. Respiro fundo e fecho os punhos, ocultando parcialmente a luminescência espectral que deles irradia.
"Azurepmis, vinde a mim. Vinde a mim pela última vez."
Um mantra macabro é recitado em pensamento por mim. Doze vezes, um chamado para cada uma das badaladas que ressoam distantes e ecoam em meu âmago. A cada repetição, sussurros quase inaudíveis e o levíssimo deslocamento de ar se fazem notar, provocando arrepios diretamente em minha alma. A última delas mal foi entoada, tamanha a sensação esmagadora que me aflige.
Minha respiração está mais que alterada, minha pulsação encontra-se no limiar de um ataque cardíaco, minha vontade de irromper porta afora em uma fuga desesperada é simplesmente absurda. Por isso havia acorrentado a mim mesmo na parede antes de todo o processo que enfim terminei de executar.
Não haverá escapatória ou retorno... Está feito: Faz-se presente, comigo.
— Manoel, eis-me aqui. Bem sabes o que tal cousa significa para nós. — sua voz calma e deleitável de forma alguma me tranquiliza. — Todavia, assim como me fizeste pedidos, também o farei a ti. Somente um antes do que se seguirá após o realizardes.
Azurepmis tem uma presença tão poderosa que desde o segundo em que a notei encontro-me paralisado, mudo e com as pálpebras encerradas com força, ao ponto de me sentir incomodado pelo esforço de mantê-las assim. Visto que eu não podia negar-lhe nada mesmo que assim o desejasse, nunca saberei se aquelas palavras foram sussurradas nas trevas por consideração ou pura malícia.
— Olhai para mim. Fitai-me nas íris. Contemplai minha face neste momento derradeiro. — o timbre delicado de suas palavras era tão prazeroso quanto assustador. — Erguei teus olhos e vede o que criaste.
Nada faço ou respondo, sentindo meu coração congelar dentro do peito. Meus lábios sangram, pois eu os mordera profundamente para não emitir uma só palavra. Posso sentir Azurepmis se aproximando devagar, na companhia de todos os outros. Eu estou cercado de gemidos, pranto, súplicas e ranger de dentes em uma cacofonia digna dos salões de tortura da Inquisição.
— DORAVANTE, OLHAI PARA MIM! — vocifera de maneira ensurdecedora, quase como uma súplica desesperada que fez minha alma pesar. — RECEBEI TEU GALARDÃO E REGOZIJAI COMIGO! É CHEGADA A CEIFA!
Ao abrir os meus olhos, é a minha vez de gritar conforme minha vida passa diante de mim e me recordo em um sombrio flashback como tudo começou para mim e para Azurepmis... E enfim compreender o porquê dizem sabiamente que “de boas intenções, o inferno está cheio”.
Provavelmente estarei entre a população das lendárias pradarias flamejantes em breve.