Os adultos o olhavam como se fosse um monstro. Talvez ele fosse, por que deveria se importar? Mas ainda assim ele se sentia mal. No último dia que ficou em casa antes de ser mandado a um reformatório, Mikael ouviu a discussão de seus pais.
— ...Vamos, não finja que não acha que tem algo errado com aquele garoto. — seu pai dizia a sua mãe, quando achava que o garoto não estava escutando. Infelizmente, sua audição era melhor do que gostaria.
— Ele não age como uma criança normal as vezes... — admitia a mãe relutante.
— Ele não age como humano! — retrucava o pai.
Essas palavras, atormentariam Mikael para o resto da vida.
Estava começando tudo novamente. Ficar naquela casa o estava deixando louco, estava começando a ver coisas nas sombras da janela a noite, sem falar nos pesadelos. Ultimamente era quase difícil diferenciar a realidade do sonho e tudo o que ele não precisava agora, seria ficar louco. Quer dizer, mais louco.
Mikael saiu mais cedo de casa para ir a escola. Não que estivesse ansioso para chegar a escola. Deus, isso não.
Mas realmente precisava sair daquela casa. Seus pais não paravam de discutir. Eles brigavam todos os dias, todas as horas. Mas dessa vez ele era o motivo da briga. Mikael também tinha seus problemas, como TEI (Transtorno Explosivo Intermitente). Mas vamos chamar de Síndrome de Hulk, porque soa mais legal e o efeito é quase o mesmo. A não ser por ficar verde, talvez fosse moreno de mais para ficar verde. Não iria combinar.
Tudo o que se sabe, é que isso causa muitos problemas, tanto para ele, quanto para seus pais, que a muito tempo eles já desistiram dele. Acabou indo parar em um reformatório, mas talvez por sorte ou azar, estava de volta. Esse era o motivo da briga de seus pais. E ironicamente o que estava o fazendo pirar, era estar em casa.
Entende por que de repente até a escola pode parecer um lugar... Talvez não bom, mas razoável?
Entrar na escola praticamente no final do ano não era algo tão divertido também. E lá estava ele, o aluno novo. Poderia ser um novo começo, onde seria o cara legal que chegaria se tornaria amigo do garoto estranho e recluso que costuma se sentar sozinho no almoço.
Ah, espera. Esse garoto sou eu.
Assim como todos os professores, os outros estudantes também sabiam, que ele esteve os últimos anos no reformatório, era o tipo de assunto que esse tipo de cidade pequena adorava, um dos mais comentados entre as donas de casa fofoqueiras, quase tão interessante quanto ao ataque de animal que matou Mike Norton, um garoto problemático com pais ricos, mas é claro, agora todos o falavam dele como se fosse um anjo, uma pessoa cheia de luz que iluminava a vida de muita gente. Mikael queria saber se eles também diriam que ele era um bom garoto, caso acontecesse o mesmo com ele. Dúvidava, basicamente recebia o tratamente de uma bomba relógio, todos já esperavam ou até ansiavam, que ele explodisse.
Uma prova disso era o olhar censurador que recebia ao entrar na sala da Sra. Burton, uma senhora de quase uns seiscentos anos, vestindo um suéter de lã cor-de-rosa e usando óculos com armação vermelha presos a uma correntinha no pescoço. A sala era um quadrado perfeito com umas vinte e cinco pessoas sentadas em carteiras retangulares do tamanho de mesas de cozinha, com dois alunos em cada uma. Todos olhavam para ele e o ignoravam ao mesmo tempo.
Mikael ficou tentando a dar um pulo e gritar; Buuuh! Apenas para ver a reação. Mas enquanto esse dia não chegava ele seguia para a mesa e se sentava ao lado de Alice Blake, sua nova parceira desde o mapa de sala ter sido re-organizado. Era obvio o critério que eles haviam usado para os tornar parceiros. Todos queriam ser parceiros dela, e ninguém queria ser o seu.
A Sra. Burton começava a explicar porque há anéis em torno de Saturno e que eles são feitos basicamente de partículas de gelo e de poeira.
Depois de um tempo, Mikael deixou de ouvi-la e se concentrou nos alunos. Ethan Michael estava sentado duas mesas a frente, ele era o capitão do time de futebol, loiro, alto, forte e o que as garotas chamam de "um gato", como se isso ainda não fosse o suficiente, ele ainda era rico e dirigia um porsche novo. Sua namorada deveria ser Tiffany Connor, a líder das lideres de torcida, loira de caixinha e uma garota muito bonita, que infelizmente odiava Mikael.
Tá, sem querer, poderia ter acertado uma bola no olho dela quando fazia o teste para o time de futebol, seu olho ficou roxo e inchado por uma semana... Nem era como se esperasse entrar para o time mesmo.
Enfim, Ethan joga furtivos olhares para a mesa de Mikael, e considerando que os olhares não eram para ele - ou pelo menos assim esperava. -, ele estava olhando para sua parceira de estudo.
Blake não era muito alta - talvez pouco mais de um metro e sessenta -, apesar de magra, era curvilínea, com longos cabelos loiros-dourados. O rosto era quase infantil, poderia se passar por bem mais jovem, provavelmente quando tivesse trinta ainda iria parecer uma adolescente. Mas não se engane, ainda era a garota mais bonita que já havia visto, poderia afirmar que praticamente todos os garotos - e talvez algumas garotas - fossem pelo menos meio apaixonados por ela. Mas o que a mais a destacava eram a cor de seus olhos, verde-vivo. Não o verde quase azul, não. Era um verde veneno. Era lindo e quase hipnótico, mas havia algo estranho neles e não era a cor.
Será que ninguém mais percebia que seus olhos oscilavam entre um olhar insano? Mikael conhecia bem de mais esse olhar para não percebe-lo, era o mesmo olhar que apenas os piores garotos do reformatório tinham e que os outros apenas tentavam imitar. Ela, no entanto, o escondia atrás de uma faixada de doce inocência.
— Perdeu a hora Sr. Delinquente? — perguntou a garota entediada, até sua voz parecia mel.
— Na verdade acho que cheguei até mais cedo... — resmungou.
Ela riu.
— Verdade, você praticamente chegou na hora certa hoje.
Não era difícil entender por que todos gostavam dela.
— Ethan está olhando para você, de novo. — comentou.
— Talvez seja pra você. — disse ela, repentinamente o avaliando de cima a baixo como se realmente estivesse considerando. — Você fica uma graça com essas botas.
Automaticamente Mikael escondeu seus pés em baixo da cadeira, por alguma razão sentindo-se quase violado.
— Você por acaso tem dupla personalidade? - perguntou sem pensar tentando tirar a atenção do seu rosto vermelho. — Ou é bipolar?
Ela parou. Surpresa por um momento. E então sorriu.
Um sorriso que não alcançava seus olhos. O mesmo sorriso que você dá antes de jogar gasolina em uma pessoa e acender o fosforo.
Mikael desviou o olhar, repentinamente interessado na explicação da Sra. Burton.
Nenhum deles disse mais nada durante o resto da aula, tampouco aprenderam sobre os mistérios do universo que a Sra. Burton tentava ensinar. Durante boa parte dela, Blake desenhava imagens que pareciam ser um cachorro - não, um lobo - pelo menos ela não estava desenhando flores, e nem escrevendo o nome de algum garoto. -, e então um rosto, - ela era muito boa com desenhos. - estranhamente familiar, mesmo sem me lembrar de algum dia ter visto qualquer pessoa assim e isso causava arrepios em Mikael. Blake fechou o caderno abruptamente, quando percebeu que estava sendo observada.
Havia um alvoroço acontecendo no refeitório. Alguns corriam e outros gritavam incentivos, não era preciso ser um gênio para saber que estava acontecendo uma briga. O que parecia estar se tornando algo quase frequente. Era a terceira em um mês, e ao contrario do que se poderia pensar, Mikael não tinha absolutamente nada a ver com esse aumento no indice.
Conseguiu chegar a tempo de ver Ethan socar a mandibula de Gary Collins e então ser jogado no chão por outro garoto que sequer sabia o nome. Era estranho de se ver mas parecia que a briga começava a se tornar uma guerra, alguns tomando partido e alguns até escorregando para de baixo da mesa, - isso mesmo Willian, eu vi você. - A maioria das garotas ficavam paradas e gritavam os nomes de quem estava brigando. Entretanto uma chamava a atenção. Uma que parecia totalmente confortável no meio de tudo isso, Alice Blake. Ela estava sentada no seu lugar bebendo suco de morango em caixinha enquanto tudo isso acontecia, apenas observando. Seus olhos pareciam quase brilhar.
Mikael esqueceu tudo isso quando alguém o acertou no estomago, sequer chegou a ver quem era quando se dobrou de dor. Depois disso a racionalidade apagou-se e quando se deu conta, havia feito de novo. O único de pé era Mikael. Por todo o refeitório os outros alunos o observavam horrorizados. Talvez exceto por um, o diretor Miller estava com uma expressão de raiva e sua careca brilhava numa bonita coloração de vermelho beterraba.
"Ele não age como humano!" A voz de seu pai ecoava em sua cabeça.
Isso foi o suficiente. O diretor teve um tipo de acesso e depois de mandar todos para a enfermária, teve uma recaida nos antidepressivos e foi necessário uma ambulância.
O que na verdade foi interessante, no final descobriram que a briga havia começado apenas porque Collins havia espirrado um pouco de suco de caixinha em Roger - o qual agora estava com os dois olhos roxos igual a um panda e talvez um dente quebrado -, e então um simples empurrão acabou virando uma enorme bola de neve.
Ninguém falou com Mikael sobre o que aconteceu, mas ele podia sentir os olhares. Ele ainda era o monstro dessa historia, sequer conseguia levantar a cabeça, era tudo o que ele mais odiava, perder o controle, e a memoria aparentemente.
Ele estava no lugar errado, na hora errada, certo? Então por que todos ainda o olhavam como se devesse estar em uma camisa de força?