De noite, novamente, ela se agarrou à manga dele. Havia um fio solto e pouco a pouco o punho se descosturava, embora ela não o soltasse e ele não fazia questão de impedi-la.
Havia algo simbólico no modo como ambos se moviam, gesticulavam quando estavam juntos. Um código decifrado apenas pelos dois, em que palavras não significavam nada e olhares eram letras que juntas formavam uma mensagem.
Cinco dias depois eles se viam, numa quinta-feira, na única aula da semana que tinham juntos. Apenas um olhar para dizer olá e depois adeus, até que se encontrassem novamente no fim de semana para dormirem na grama atrás da casa dela.
Tinha um fantasma que assombrava seu corpo, e ela frequentemente perguntava de que forma ele gostaria de ser chamado antes de dizer qualquer coisa.
Vinícius ou Violeta.
Adele.
Seu nome era tão simples comparado à complexidade que cercava aquele garoto. Ou garota.
Tinha dias que ela pensava em desistir, em simplesmente deixar que o pensamento da massa a influenciasse e assim terminarem tudo o que construíram em dois anos e meio de relação. Todas as conversas, todas as ofensas, todas as desculpas e todos os perdões. Cada mínimo detalhe contribuiu para que ele, ou ela, estabelecesse um pilar de confiança que dificilmente ruiria.
No entanto, havia dias que Adele não suportava a mudança. Às vezes ela pensava que seria mais simples namorar alguém “normal”, até que estapeasse sua face mentalmente e se lembrasse que Vinícius também era normal. Ele era humano, igual a ela. Ele era da mesma espécie que ela. A única diferença é que ele não se identificava com seu gênero físico, embora a definição correta seria seu sexo.
Ele fluía livremente entre o masculino e o feminino, a masculinidade e a feminilidade.
Ele era um conjunto de eletricidade e simplicidade que a fascinava. Sua luta diária contra os estandartes que a sociedade binária exibia o fazia ser uma pessoa a quem ela admirava com todo o fervor que podia.
Adele só se sentia tão ridícula perto dele.
Quando ela saía com pessoas como ele, que sofriam a mesma coisa que ele ou até sofrimentos piores, ela se sentia acuada. Ela se sentia como se não fosse especial, como se sua existência fosse miserável simplesmente por ser quem é.
E então ele a abraçava, com suas mangas esfarrapadas e o calor de seu corpo aquecendo seu coração delicado. Ele falava como esse pensamento era ridículo, como ela era muito mais do que ela pensava que era, como ela era maravilhosa por ser quem é.
E logo ela se enchia de tristeza, pois essas palavras deveriam sair de sua boca. Ela quem deveria confortar o namorado quando ele era cercado por homens mais velhos questionando sua “masculinidade” nos dias em que ele se sentia mais feminino. Ela quem deveria estar o apoiando quando ele se tranca no quarto, não deixando ninguém ver suas lágrimas e se convencendo de que não havia nada de errado em se identificar com dois gêneros.
Ela quem deveria secar as lágrimas dele, e não o contrário.
Adele levantou os olhos do papel e observou Violeta, com seu cabelo curto cacheado e a face de Vinícius, com olhos delineados pelo lápis de olho e o pingente de pimenta que ela a deu quando fizeram seis meses de namoro.
- Algum problema? – Violeta, que falava com a voz um pouco mais fina que Vinícius, questionou. Ela sabia que era complicado para Adele aceitar sua natureza, ainda mais quando a garota se mostrava tão relutante para mostrar seu amor quando ela estava em seus dias femininos.
Adele se sentia atraída por masculinidade, Violeta soube disso no momento em que ela a conheceu, como Vinícius, na primeira semana de aula.
Adele a encarava timidamente, com os cílios longos batendo a cada poucos segundos como se quisessem se assegurar que aquele garoto era mesmo de sua sala. Violeta sabia que seria complicado caso se apaixonasse por alguém tão acostumado à ideia binária de gêneros, isso já tinha acontecido antes. Nunca dava certo se aproximar de alguém com a cabeça tão conservadora e ignorante.
Entretanto lá estava ela, como Vinícius, em outubro do ano em que mudara de cidade, perto dos armários da escola recebendo a confissão encabulada da menina fofa de sua sala. Ele deu um sorriso, e pediu que ela a escutasse atentamente e depois dissesse se realmente queria começar alguma coisa com alguém como ele.
Naquela época Violeta era tão insegura de si. Ela contou o que ela era, como ela tinha o gênero fluído e como ela simplesmente se sentia mais como uma mulher ou como um homem variando os dias, às vezes ambos ao mesmo tempo ou até mesmo nenhum dos dois. Ela não ficaria surpresa caso Adele quisesse xingá-la ou falar qualquer coisa a seu respeito.
Ela ficou surpresa quando Adele disse que tentaria seu melhor para entender e que se esforçaria ao máximo para preservar seus sentimentos por ele. “Ou ela”, Vinícius a lembrou. “Ou ela”, Adele havia respondido relutante. Naquele mesmo dia ela disse que nunca sequer cogitara ficar com uma menina, então pedira paciência. E ambos a deram tanto paciência, quanto amor, quanto perdão.
E Adele lhes deu tanto o respeito, quanto reconhecimento e amor. Embora ela também tenha dado tristeza, raiva e muitas vezes tenha feito ambos quererem terminar tudo o que estavam tentando construir.
- Só estava pensando em nós duas. – Adele respondeu a Violeta, um sorriso se abrindo em seus lábios.
Ou nós dois. Vinícius lembrou a Violeta, porém essa parte a mesma preferiu ignorar.
Ambos estavam felizes naquele momento, era isso o que importava.
Violeta então sorriu para Adele, e Adele sorriu para ambos.
Ela também estava feliz, e no geral, o amor deles falava mais alto do que qualquer dúvida.