Há momentos em que a única coisa que resta são as cinzas de uma esperança queimada pelo fogo da dor e do desespero, que te faz enxergar nada além da escuridão e do poço amargurado que você se tornou. E é justamente nesses momentos que a vida deixa de fazer sentido, que as cores se tornam monocromáticas, e nada, mas absolutamente nada, te prende à realidade. Todos os pilares que seguravam seu mundo ruinam, fazendo você observar lenta e dolorosamente a paisagem se desfigurando, os muros se rachando, as pessoas indo embora... Você observa o seu mundo destinado ao fim.
E é justamente este o momento em que estou vivendo.
Um mês atrás.
Resfolegando, corri até o hall do hospital me anunciando e pedindo permissão para entrar no quarto 692 da Ala B – a Ala destinada a pacientes em estado crítico. Não consegui esperar até que a minha companhia chegasse, e mesmo que as minhas pernas exigissem uma pausa, não a concedi, correndo o mais rápido que pude entre os corredores enquanto desviava de alguns médicos e familiares de outras vítimas. Há exatamente uma hora que recebi o telefonema do Doutor Erick, me informando que a saúde dela piorou, requerendo a minha presença imediata. Talvez ela não passe dessa noite, Katie. Eu sinto muito. Aquela última frase dita ainda martelava em minha mente, e era impossível controlar as lágrimas que desciam incessantemente pelo meu rosto.
Parei bruscamente ante a porta e senti meu coração parar; a dor era demasiada ao ponto de me interpelar se não havia quebrado as minhas costelas, o que também poderia explicar a minha falta de ar. Permaneci alguns minutos parada, observando a pessoa deitada na cama, que respirava com o auxílio de uma máscara de oxigênio, com um soro anestésico na veia direita, e sendo monitorada por outras três máquinas.
– Mãe...
Senti minhas pernas cederem quando ela virou seu rosto pálido e sorriu fracamente para mim, e teria caído ajoelhada se não fosse pelo meu marido me segurando forte, mas delicadamente, pela cintura, oferecendo-me apoio. Enquanto andava em direção à cadeira ao lado da cama, senti uma vontade de parar o tempo, de fazer qualquer coisa para evitar esse momento. Eu queria trocar de lugar com ela e entregá-la à vida novamente.
Quando segurei sua mão pude finalmente enxergar aquilo que tentava a qualquer custo não acreditar: ela iria me deixar. Sua pele pálida e gelada, assim como seus olhos opacos e sua fraqueza repentina denunciaram seu estado terminal; sua imunidade se abalara com a recente pneumonia, e seu coração já dava indícios de cansaço.
– Por favor, mãe, não me abandone. Eu ainda não estou preparada para perdê-la.
– Você tem que me deixar fazer isso, querida.
Apertei sua mão mais forte enquanto a abraçava e escondia meu rosto em seu colo, sentindo sua mão esquerda acariciar levemente meus cabelos. Ah, como eu sentia falta disso, de estar no colo dela e vê-la me confortar.
Quanto ingressei na faculdade, estava aliviada por finalmente poder sair de casa. Era doloroso, no entanto necessário; não aguentava mais a minha mãe dizendo tudo o que eu deveria fazer ou não. Estava cansada de brigar todo dia por motivos fúteis que envolvia a falta de consideração dela por tudo que eu fazia, afinal, nunca saí de casa para beber, fumar ou ir para baladas como qualquer adolescente faria, mas ao invés disso preferi ficar em casa toda noite, me dedicando aos estudos, e tudo que ela fazia era me criticar. Não, eu não preciso de você, não sentirei saudades e posso muito bem me virar sozinha. Foi o que eu disse ao sair de casa há quatro anos, não tendo ideia do remorso que viria hoje.
– Me perdoa, por favor, eu não sei viver sem você. Eu não posso!
– Se acalme, minha filha, esse não é o fim do mundo. Erga seu rosto, sim? Não chore, sei que é doloroso, mas não quero te ver triste. Você não tem que pedir desculpas – Não consegui encará-la por muito tempo, vê-la nesse estado estava me matando – Julian, venha mais perto de mim – Apenas quando ele se aproximou e segurou a mão que estava com o soro na veia é que percebi que o mesmo também chorava.
– Julian, meu filho, haverá momentos onde Katie perderá o controle total de suas emoções, e colocará em jogo o amor de vocês. Quando esse dia acontecer, esteja ao lado dela, pois esse será o momento que ela mais precisará de você. Perdoe-a, pois é melhor do que conviver com o arrependimento. Você é a melhor pessoa que poderia aparecer na vida da minha Katie, por isso me prometa que sempre estará apoiando-a e a lembrando da mulher maravilhosa que ela se tornou. Prometa que cuidará bem dela.
– Eu prometo Lilian. Com todo o meu amor, eu prometo.
– Não faça isso mãe, por favor... – Solucei alto. Eu estava a perdendo.
– Eu preciso dizer adeus, meu anjo. Mas por favor, não pense que estou a abandonando. Estarei sempre ao seu lado, mesmo que não consiga me ver, por isso não tenha vergonha de conversar comigo quando achar que tudo estará perdido; quando estiver com vontade de chorar, olhe para o céu e desabafe comigo, tenha a certeza de que sempre a escutarei e farei o possível para ajudá-la. Por mais de dez anos, eu e o seu pai tentamos ter um filho, mas nunca conseguimos, a probabilidade de isso acontecer era desanimador. No entanto, quando já não tínhamos mais nenhuma esperança e estávamos a ponto de desistir, um milagre aconteceu, o nosso milagre veio para mostrar que nenhum esforço é em vão.
– Mãe... – Murmurei.
– Katie, me escute, você é a melhor benção que eu poderia ter pedido a Deus. Seu nascimento foi a melhor coisa que aconteceu a nós, você trouxe a felicidade que há muito havia desaparecido da nossa família; me fez sorrir novamente, e principalmente, me deu um motivo para dizer que a minha vida valeu à pena. Você é o meu maior orgulho, tanto pela pessoa que se tornou quanto pela pessoa que sei que irá se tornar. E é justamente por isso que quero que conceda a essa velha a promessa que nunca irá desistir de seus sonhos, que independente do que venha a acontecer, você seguirá firme e forte. Katie, prometa a sua mãe que irá viver intensamente a sua vida, para que quando estiver perto de encontrar a paz, possa alegar que tudo valeu à pena, e que não haverá nenhum arrependimento como eu não a tenho.
– Ah, mãe... E-eu a amo tanto!
– Eu também te amo, minha filha, e você sabe que esse não é um adeus. Nós nos veremos em breve, nos seus sonhos, nas suas orações. Talvez eu volte como uma flor para dar mais harmonia em sua casa, ou como um cachorro para te proteger e zelar pela sua segurança, ou até mesmo como o filho de vocês, para ter a oportunidade de trazer mais alegrias em suas vidas. Mas não importa como ou quando, sempre estarei ao seu lado para te proteger e te confortar. Sempre estarei presente no seu coração...
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No final das contas, tudo que amamos partem quando menos esperamos, e o mais irônico é que a única coisa que almejo todo dia é exatamente aquilo que nunca mais voltará para mim, deixando um vazio no coração que nada e nem ninguém poderá preencher, exceto pela presença dela.
– Eu sinto sua falta, mãe... – Sussurrei, ao mesmo tempo em que coloquei o buquê de rosas ante a sua lápide – Nunca imaginei como seria difícil acordar e não ter nenhuma ligação perdida sua, ou uma mensagem de bom dia; ligar para você e saber que nunca atenderá, e que não ouvirei mais a sua voz. É insuportável chegar em casa e saber que não receberei mais nenhuma visita sua, que não a encontrarei mais em minha cozinha, preparando um almoço surpresa. É insuportável o fato de você não estar mais em minha vida.
– Tenho certeza de que ela também deve sentir, meu amor. – Olhei para o lado e observei meu marido colocando outro buquê em sua lápide, voltando em seguida para me abraçar e acariciar levemente minha barriga.
Talvez eu volte como uma flor para dar mais harmonia em sua casa, ou como um cachorro para te proteger e zelar pela sua segurança, ou até mesmo como o filho de vocês, para ter a oportunidade de trazer mais alegrias em suas vidas.
– Você acha que ela sabia? Digo, sobre a gravidez... Será que a minha mãe escolheu voltar como nosso filho e cumprir com o que ela disse?
– Quem sabe. Meu pai sempre me disse que quando cumprimos todas as nossas missões na Terra, voltamos ao céu para descansar. Mas há aqueles que veem a necessidade de voltar, seja em espírito, seja reencarnado. Talvez a sua mãe tenha escolhido voltar para amenizar a dor de sua deixa.
Não pude deixar de sorrir com essa hipótese. Enquanto acariciava ternamente minha barriga, tive a impressão de vê-la perto de uma árvore, sorrindo, o mesmo sorriso de quando ela dizia que tudo ficaria bem. E eu acreditei, acreditei que tudo ficaria bem a partir de hoje.
– Vamos, meu amor. – Peguei sua mão e comecei a caminhar para a saída do cemitério, quando me lembrei de algo. – Ah, mãe, mais uma coisa: eu prometo que não desistirei e sempre seguirei em frente. Por você, pelo meu marido e por essa criança que está a caminho, eu continuarei firme e forte, e viverei intensamente como a senhora viveu. Eu prometo, mãe.
E como se ela estivesse respondendo, senti os primeiros raios solares abrindo passagem por entre as densas nuvens, e iluminando-nos. Sorri, sentindo as lágrimas acompanharem novamente o contorno do meu rosto, enquanto segurava a mão do meu marido e caminhava de volta para a minha casa, porque a partir de hoje, a nossa vida havia recomeçado com uma certeza: estávamos todos juntos novamente.