Feito um Cérbero, o monstro baba, cospe, ruge; tenta de todas as maneiras quebrar as correntes que lhe prendem as patas. Tenta intimidar toda a gente que passa em volta, acuado, instintivo, suspenso de qualquer razão. O monstro chora, se machuca e se contorce na imensidão vazia. Os urros gelados formam lâminas no vento; autoflagelo invisível que lhe faz sagrar figurações.
No metafísico, no abstrato, na ilogicidade do que não se compreende. No passado, no presente, no futuro. Na descarga de emoções entorpecentes, delirantes, que distraem os sentidos do sono e o fazem passar toda uma vida em claro. Como se existisse claridade nas trevas.
Ali, aqui, agora, muito perto. Essa dor, essa cor, essa flor que não brotou. Os pelos ouriçados, os olhos de pecados, abortivos, destrutivos. O monstro é solidão pura e está terrivelmente faminto. Inexplicavelmente, ele recolhe e rasga almas numa só dentada, aguada, solitária, profunda em baba.
E só quando ele morde; e só quando ele digere é que encontra abrigo e para de gritar. Porque, com toda a perfeição, eu acabei de te descrever, doutor, o retrato do meu coração. E o monstro da culpa só parou de gritar porque agora quem grita sou eu.