"Mas nosso amor, imenso, era mais forte
do que o tempo e que a morte,
do que a própria esperança em que o envolvi."
– Edgar Allan Poe
– Eu estou curado – digo enquanto o psiquiatra à minha frente me observa atentamente, analisando cada detalhe das minhas expressões com olhos perscrutadores.
Lanço um olhar ao redor do consultório: o papel de parede marrom com linhas brancas, o piso e os móveis de madeira, tudo meticulosamente organizado. Atrás de mim, uma estante imponente abriga uma coleção variada de livros, de Freud a Perls. Atrás do psiquiatra, uma mesa de carvalho ocupa o centro, acompanhada por uma cadeira confortável que ele raramente usa durante as sessões. Estamos, como sempre, sentados em poltronas, frente a frente.
Ele se inclina levemente, franzindo os olhos:
– Como assim? – pergunta, com um tom desconfiado.
– Estou apaixonado – respondo, enquanto sinto o suor escorrer pelas minhas costas, grudando a camisa de algodão no corpo. Olho para cima e percebo que o ar-condicionado está ligado, mas ajustado para uma temperatura absurdamente alta.
– Ela está viva? – pergunta, sua voz carregada de cautela.
Gargalho, demorando um momento antes de responder.
– É de se supor que sim – digo, sentindo uma onda de alívio interior. Finalmente estou livre. Estou curado, repito para mim mesmo, enquanto o psiquiatra à minha frente suspira, satisfeito com o progresso que, segundo ele, fizemos ao longo desses seis anos.
Estou curado.
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E junto a ela eu passo, assim, a noite inteira,
junto àquela que adoro, a esposa, a companheira,
na tumba, à beira-mar, do reino em que vivi,
junto ao mar que por ti
soluça eternamente, Annabel Lee.
Meus olhos se fecham enquanto contemplo o poema de Edgar Allan Poe. Sorrio por alguns segundos, imaginando nós dois. Quando volto a abri-los, lá está ela, parada perto das estantes de madeira abarrotadas de livros. No braço esquerdo, uma prancheta com folhas amarelas; com a mão direita, faz anotações rápidas.
Aproximo-me devagar, passando rente às suas costas. O aroma que emana de seus cabelos e de sua pele é inebriante, e ficará ainda melhor quando seus olhos estiverem fechados. Um sorriso escapa de mim enquanto a imagino.
Ela mal nota minha presença, mesmo com a biblioteca quase vazia. Alguns estudantes vagueiam por ali, buscando refúgio das aulas. Sou um deles, mas meu motivo é justificável.
Recoloco o livro de capa de couro na estante, na seção de poesia. Meus dedos deslizam por outros exemplares, mas nada me atrai mais do que os poemas macabros de Poe – e ela. Minha Annabel Lee. Talvez seja assim que eu deva chamá-la a partir de hoje. Estou apaixonado.
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Retiro os olhos das densas explicações do manual de necropsia. Coço os olhos e, ainda sentado à escrivaninha, alongo os braços, tentando relaxar. Dou um gole na água que sempre mantenho por perto e olho a hora no smartphone ao lado do livro.
Levanto-me rápido e vou até a janela. Minha vista é privilegiada. Daqui, posso vê-la chegar em casa todos os dias. Sua pele bronzeada, o andar tranquilo, os olhos atentos que percorrem o entorno. Ela está viva.
Annabel Lee sobe a ladeira devagar. Observo o contorno de seu corpo enquanto ela para por um momento – talvez para recuperar o fôlego. Olha ao redor, como se pudesse sentir que está sendo observada. Mas o vidro fumê não me denuncia.
Ela continua. Coloco o dedo no vidro, alinhando-o à sua figura, como se a tocasse. Meus olhos traçam cada detalhe de seu corpo esguio e pequeno.
Ao chegar em casa, ela se detém na entrada. Segundos depois, um homem alto e corpulento aparece. Eles se beijam. A ânsia toma conta de mim ao presenciar aquela cena, mas sei que isso é passageiro. Vou até a última gaveta da minha comoda antes de voltar para janela, trago na mão uma blusa rendada rosa, inspiro lentamente o aroma frutado. A porta se fecha atrás deles, enquanto fecho os olhos, pensando que, em breve, ela será minha.
Há muitos e muitos anos,
Num reino junto ao mar,
Viveu uma donzela que talvez conheçam,
Pelo nome de Annabel Lee;
E esta donzela vivia apenas com um sonho:
De amar e ser amada por mim.
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– Você já tentou falar com ela? – pergunta o psiquiatra, enquanto alisa a barba espessa. Seu tom revela curiosidade quanto ao meu progresso. – Qual é o nome dela mesmo?
– Annabel Lee – respondo, enquanto ele meneia a cabeça, anotando algo no bloco.
– Certo. Já conseguiu conversar com Annabel? Talvez convidá-la para sair?
Respiro fundo, ponderando minha resposta. Háduas semanas falamos sobre Annabel Lee, e claro que já considerei abordá-la, mas prefiro manter isso oculto.
– Talvez – respondo, evasivo.
– Certo – diz ele, acostumado ao meu estilo monossilábico. – Annabel tem namorado?
– Não – respondo. Não minto. Ela é casada.
– Ótimo, então o caminho está livre para você – ele sorri, genuinamente satisfeito. – Fico feliz. É a primeira vez que você se...
Ele para antes de terminar. Não precisa dizer mais nada. Sei exatamente o que ele quer dizer. Ambos sabemos.
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Eu sei o verdadeiro nome dela. Sei que é casada há menos de um ano e que se mudou para esta casa no subúrbio há três meses. Desde o primeiro dia em que meus olhos pousaram nela, tive certeza: é ela. Quando a vi na biblioteca da única universidade do condado, soube que era o destino entrelaçando nossos caminhos. Annabel Lee é exatamente como imaginei – ou quase. Falta algo.
Empurro o corpo alto e corpulento escada abaixo, em direção ao porão. Manchas de sangue ficam incrustadas nos degraus de madeira. Fecho a porta e tranco. Olho o relógio no pulso: apenas uma hora até Annabel Lee chegar. Foi fácil entrar – a porta dos fundos sempre fica aberta. Não é a primeira vez. Foi assim que consegui entrar no quarto dela semanas atrás e pegar a blusa rendada, ainda com o perfume que senti ao passar por ela na biblioteca. Um líquido de cor lavanda, em um frasco arredondado, que ela guarda sobre a penteadeira branca cercada por luzes de LED.
Ele não estava esperando. Foi fácil – bastou um machado. Subo para o quarto, preparando o ambiente. Esvazio a mochila, ligo o aparelho de som portátil que trouxe, acendo algumas velas e apago a luz, deixando tudo numa penumbra acolhedora. Tudo pela minha Annabel Lee.
Ouço a campainha. Corro para o andar inferior. Ao abrir a porta, seus olhos castanhos se arregalam. Ela sabe que algo está errado. Talvez seja o líquido vermelho e espesso em minha roupa. Esqueci de limpar.
Ela não reage quando estico o braço e a puxo com força para dentro. Seu corpo treme, está paralisado. Sinto nojo ao tocá-la. A temperatura quente de sua pele, as reações involuntárias – tudo nela denuncia que está viva.
Mas não por muito tempo. Logo ela será minha Annabel Lee.