Eulógia Dos Ônibus Noturnos
Aaron Nicholas
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 20/10/24 19:38
Avaliação: Não avaliado
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Capítulo Único Eulógia Dos Ônibus Noturnos

Carlos subiu no ônibus 47 e se sentou num dos bancos dos fundos, à direita. Ficou esperando, sem muita paciência, para que saíssem do terminal. Estava se sentindo muito cansado; se sentia moderadamente exaurido fisica e mentalmente, e os dois fatores se assomavam para lhe dar uma falta de energia sem igual. Suas costas estavam suadas e a camisa lhe colava ao corpo, sorte o desodorante camuflar o cheiro. Bebeu muita água e se alimentou bem durante o dia, mas ainda assim sentia um prenuncia de dor de cabeça nas têmporas. A mochila estava entre suas pernas, com três livros didáticos grossos da biblioteca espremidos dentro do compartimento maior. Seu celular estava com meros oito por cento de bateria, o que significava que não escutaria música até pudesse carregá-lo. É evidente que ele considerou a tomada USB do ônibus, mas não confiava naquilo. Quem realmente garantia que ela só passaria energia e não um vírus ou malware de qualquer tipo?

Observou, com a cabeça recostada no vidro, os outros passageiros. Uma velhinha no meio do veículo, um moleque do SENAI na fileira em frente a dele, um senhor entre cinquenta e sessenta anos com uma valise antiquada perto da catraca. E, claro, lá na frente, no lado esquerdo, ele avistou a careca lustrosa do motorista. Ninguém mais fez menção de subir no ônibus, mas mesmo assim continuaram lá, esperando o horário exato para que o motorista desse a partida no motor e, destarte, pudessem todos dar aquele dia como finalizado.

Carlos nunca tinha andando na linha 47 em sua vida, mesmo morando na mesma cidade desde que nasceu. Na verdade, nunca precisou usar mais que duas linhas de ônibus até que entrou na faculdade. Depois disso, precisou ir para praticamente todo canto para fazer um monte de coisas. Trabalhos em equipe, visitas à biblioteca pública, excursões no museu, compras no centro… E tantas mais razões avulsas que ele já não se lembrava muito bem.

Ele havia passado quase o dia todo na universidade estudando ou acompanhando os amigos. Algo dentro dele irradiava uma irritação fogosa, mas ele estava cansado demais para destilar veneno e remoer o que tinha acontecido durante o dia. Carlos podia, perfeitamente, ter ido para casa bem mais cedo, lá pelas quatro da tarde, mas cedeu ao pedido dos amigos de fazer um bocado de coisas que ele não estava com vontade de fazer, e que, ainda assim, fez por pura educação e camaradagem. Ajudou a escrever um e-mail solicitando estágio, fez exercícios de uma disciplina que não dominava, subiu em uma árvore muito para pegar um boné que havia voado e andou para cima para baixo no shopping. E, de quebra, ainda acompanhou duas amigas até o terminal, onde ele não precisava passar. O que foi pior dessa última gentileza foi que elas acharam que ele estava fazendo aquilo porque estava a fim de uma delas, o que não era verdade. Tudo isso havia consumido parte da tarde e o começo da noite inteiros. Agora eram sete e meia, e demoraria, pelo menos, uma hora até chegar em casa, depois disso seria dormir, acordar e voltar de novo para a universidade. Apesar da exaustão, Carlos não podia deixar de contemplar se não estava sendo manso demais deixando que seus “amigos” abusassem de sua boa vontade desse jeito.

Finalmente, o motor ligou, as portas se fecharam e o ônibus saiu da vaga para ganhar a avenida cheia, porém não muito congestionada. Avançavam e passavam pelos vários pontos ao longo do caminho, mas ninguém embarcou nem desembarcou neles. Isso era de se esperar, pois aquela linha era, tipicamente, usada apenas pelos trabalhadores da cidade em horários de pico, e seria então uma frota de latas de sardinha. Porém, como essa escala já havia passado, tudo ficava deserto. Aquela viatura, em particular, parecia bem velha. Até suas luzes internas pareciam velhas, de alguma forma. Uma lata velha entre tantos prédios, tantos carros, tantas preocupações alheias; em meio a vida urbana.

Carlos olhou para o chão e viu cinco baratas pequenas vagando por aí. Ficou a encará-las, enojado, mas quando uma delas se aproximou de seu pé decidiu não matá-la. Pensou que, afinal, aquele reino era delas e ele era apenas um estrangeiro de passagem. Que direito tinha ele de se incomodar com elas? Podia ter pego o 58, que fazia uma rota mais curta até sua casa. Mas estava tão cansado que preferiu subir naquele ônibus só porque ele já estava perto de partir. Sim, não devia fazer aquilo. As baratas eram as verdadeiras habitantes daquele mundo opíparo que era o 47 noturno. Se bem que o 47 não era o único lugar daquele mundo. Carlos bem o sabia, pois todos os ônibus noturnos que pegara nos últimos tempos tinham aquela mesma atmosfera…

O sinal de parada soou de repente, com um apitinho estridente e envelhecido. O garoto do SENAI está de pé, com a mochila apoiada em somente um dos ombros. Chegou em casa, provavelmente. O motorista ainda demora um pouco para retomar a viagem. Carlos fica a observar enquanto o menino adentra uma rua deserta e iluminada por poucos postes. Por causa da penumbra, ela parecia infinita e infinito parecia o caminho do moleque.

Com efeito, Carlos pensou, tudo parece isso parece acontecer em outra realidade. Ele olhou pela janela e observou a paisagem do bairro. Ali havia um parquinho semiabandonado, onde provavelmente jovens se juntavam para cheirar loló. Mais adiante, um barzinho de periferia, com uma televisão passando o jogo do Palmeiras, cerveja e cigarros baratos e uma churrasqueirinha rústica, de ferro fundido, que exalava um cheiro de carne queimada que chegava até dentro do ônibus. Seguindo em frente, uma porção de casinhas com luzes acesas. Viravam aqui e ali; ruas e mais ruas que todos ignoravam o nome. Ter o costume de pegar uma linha durante a noite não é tão diferente de quando se pega pela manhã. Mas quando se pega uma linha diferente toda a atmosfera parece mudar. Há algo de diferente, irreal e mesmo sinistro em tudo aquilo. Passar por essas ruas desconhecidas e com pouca iluminação… Isso faz com que a mente tente encaixar as peças que faltam no cenário. A cidade vira uma aparição fantasmagórica, algo visto dentro de um sonho; quando se chega em casa e dorme, não é possível lembrar de tudo que se viu e aconteceu no trajeto, nem mesmo o rosto das pessoas. Exatamente como em um sonho estranho que se tem em uma noite de indigestão. Andar de carro é comum e a linha do metro é bem conhecida, mas pegar uma linha de ônibus inexplorada é simplesmente algo que não se consegue descrever em poucas palavras. Claro que a ideia de alguma pessoa – ou coisa – maliciosa embarcar também contribui para se sentir apreensão. Poucos são os que nunca tiveram medo de um possível assaltante de ônibus; o “homem do saco” dos proletas.

A analogia do sonho era algo que Carlos achava ser muito verdadeiro. Quantas vezes, desde que entrara para a faculdade, não teve sonhos com ônibus noturnos? Não se lembrava de todos, mas havia alguns que ainda estavam bastante frescos na memória dele, apesar de todo o tempo transcorrido desde que os tivera.

Por exemplo: em certo sonho, ele estava num ponto de ônibus particularmente lotado, no meio de madrugada sem estrelas e lua. O ponto ficava em frente a uma espécie de shopping bastante popular, mas tudo ao redor parecia desértico. Esses veículos iam e vinham, mas não se sabia para onde. Ele sabia que precisava chegar em casa e que estava tarde, por isso ficou desamparado e soturno no sonho. E então ele embarcou em um e finalmente acordou.

Outra vez, sonhou que pegou uma linha que não existia – a 01 – para ir para a faculdade. De novo, em plena madrugada. O ônibus parecia uma ilha de luz num universo de trevas e prédios acinzentados e vagos, como cenários de peças: bidimensionais e sem vida. Nenhuma pessoa na rua, mas o ônibus estava cheio e parecia muito longo, como um trem. Estava com colegas, amigos e pessoas que ele não conhecia, mas que eram amigáveis. Todos estavam indo para o mesmo lugar que ele e todos partiram de uma avenida cheia de luzes para as ruas escuras e desconhecidas.

Mas talvez, o sonho mais bizarro e memorável de Carlos fosse o que envolvia o 148, o ônibus que ele sempre pegava para ir e voltar da universidade em situações comuns. É possível que o fato de usar tanto aquela linha tenha influenciado na quantidade de iterações do sonho. Pois a verdade é que sonhara pelo menos seis vezes com o mesmo sonho. Nele, Carlos ficava, naturalmente, até de madrugada na faculdade. Tudo parecia hostil, como se ele não fosse bem-vindo. Então ele e outras pessoas precisavam caminhar até os fundos do campus para chegar na única estação que ainda tinha alguma operação naquela hora; somente o 148 ainda rodava. Era quase como uma daquelas cenas de refugiados de guerra andando em uma fila muito longa para longe dos escombros de uma cidade. No ponto em si, havia uma sensação agourenta que algo estava errado. Porque todos tinham ficado até tarde na universidade? Carlos pensava nisso com um peso estranho no peito, e havia a sensação que alguém observava o seu grupo. Até que, finalmente, o 148 chegava. Mas a sua aparição causava pouco alivio, porque todos sabiam que ainda havia um longo caminho até em casa… E o sonho acabava por aí. Foram muitos os sonhos estranhos que ele tivera, alguns eram bons e outros ruins. Em alguns havia, mesmo, um senso de aventura em pegar uma linha desconhecida.

Enquanto lembrava de tudo isso, a velhinha havia se levantado e chegado perto da catraca:

-Meu filho, tem como você me deixar na rua Vereador Pedro Dantas? Estou com serias dores no joelho e a calçada é muito ruim.

-Opa!

E assim, casualmente, o motorista virou o volante e entrou em uma rua que não fazia parte de sua rota. Estreita demais, diga-se de passagem. Carlos conteve sua indignação. Por causa do joelho de uma idosa, ele demoraria dez, vinte minutos a mais até chegar em casa! Esse cara deve ter sido motorista de topique até pouco tempo atrás. Enquanto isso, a velhinha ficava divagando sobre seus problemas de saúde como quem fala de conquistas passadas, como se precisasse se justificar o desvio para alguma entidade invisível. O motorista apenas concordava com o que ela dizia. Que chateação!

O ônibus raspou o para-choque em uma lombada e quase atropelou um cachorro de rua, mas finalmente ele havia chegado bem em frente a casa da velhinha. Ela desceu se trepando no corrimão e acenou para o motorista depois de entrar, e só então ele seguiu em frente. Foi um zigue-zague infernal pelas ruas e Carlos achou estava prestes a concluir que o motorista tinha se perdido, até que inesperadamente desembocaram de volta na avenida onde estavam.

O cansaço se abateu sobre Carlos inesperadamente. Não gostava de dormir em transportes públicos, mas o dia tinha sido demais para ele. Não ligava para a trepidação que o vidro da janela incidia em sua cabeça e sua mandíbula ficou mole. Seus olhos ficavam apenas levemente abertos quando escutou:

-Vida de estudante dá uma canseira, né rapaz?

Se sobressaltou, olhou para o lado e viu que o senhor da valise havia se sentado ao seu lado.

-Te assustei? Desculpe!

Carlos ficou envergonhado.

-Não, tudo bem. Não foi nada.

-Pois é rapaz… Faz o que?

Disse a ele seu curso.

-Hum! Eu também sou um.

-É mesmo?

-É sim. Viajei por todo o país em uma porção de projetos. Já me aposentei faz uns três anos. Hoje trabalho só com consultoria aqui e ali. Gosto de ser freelancer.

-Ah…

Carlos estava desconfortável. Por que aquele cara tinha decidido puxar assunto com ele? E o que ele responderia?

Como se o senhor advinhasse a incerteza dele, recomeçou:

-Eu já peguei muito ônibus também. Da escola até meus primeiros anos de trabalho, num escritório. Sei bem como você deve estar se sentindo agora. Irritado, impotente e incrivelmente cansado. Quando eu tinha a sua idade o ônibus era toda uma fonte de simbolismos para mim. Representava o caminho de casa. Onde eu via pessoas novas. Eu interpretava como sendo o que dava movimento a minha vida, mesmo quando tirava notas baixas e me sentia no fundo do poço. Mas veja, tudo isso é transitório. Esses momentos vão todos passar e se tornar memórias. Talvez você tenha dias bons e ruins, mas tente enxergar o que há de curioso nisso tudo!

O que Carlos podia dizer? Não é como se tudo isso fosse uma alegria para ele. Esse ônibus podia, perfeitamente, ser a barca de Caronte rumo ao Tártaro. Mas porque ele diria isso ao homem?

-Obrigado…

Foi tudo o que disse.

Acordou assustado com a buzina do ônibus. Um carro cortara seu caminho e os dois veículos quase colidiram. Carlos ficou surpreso ao ver que não estava mais em alguma avenida lúgubre e desconhecida, mas sim na avenida perto de sua casa. Com a sua parada sendo a próxima do caminho. O senhor da valise não estava mais lá. Tudo parecia renovado. As baratas sumiram. Através da janela, as luzes tão familiares o saudavam. Essa sensação deve ser semelhante a que os marinheiros tem ao avistar as luzes da costa de onde partiram..

Carlos se levantou, deu o sinal e desceu para a rua. Ainda se deteve um pouco para observar o 47 se afastar e singrar entre o mar de luzes e faróis, até se tornar insistindo na distância luminosa. Ele entrou ajustou a mochila as costas e começou a caminhar até em casa. Ainda pensava em viagens de ônibus…

Ônibus, ônibus, ônibus! Carlos limpou a mente. Que importava pensar em tudo aquilo? Não ia se lembrar daquela noite e ela se tornaria apenas uma sensação estranha. Tudo aquilo ia acabar eventualmente. Como todos os sonhos e pesadelos acabam ao se acordar.

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