Cometa
Aaron Nicholas
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 25/06/24 12:33
Gênero(s): Drama Reflexivo
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 31min a 42min
Apreciadores: 0
Comentários: 0
Total de Visualizações: 142
Usuários que Visualizaram: 1
Palavras: 5062
Não recomendado para menores de dezesseis anos
Capítulo Único Cometa

Eu sei que deveria dormir mais. Mas não conseguia. Eu sei que deveria procurar fazer algo a respeito pois nem sempre se tem a oportunidade de descansar por aqui. Ainda mais com essa ofensiva em andamento. Nos estamos sempre tentando fazer o possível para não ficar à mercê dos aviões ingleses, mas, francamente, não acho que possamos fazer muita coisa no estado atual de coisas.

Estou assim faz uma semana. Desde que participei da última missão de bombardeio.

Nossas instruções eram simples: três Gothas deveriam voar até a retaguarda das linhas inimigas durante a noite e bombardear o estoque de munições e tanques a fim de enfraquecer a reação ao avanço que nossas tropas fariam na manhã seguinte. Esses três aviões seriam acompanhados por três caças: dois novos Fokkers D.VII pilotados por Hauser e Muntz e um Albatros D.V pilotado por Ackermann.

O Komet ainda estava na oficina e faltava um homem para completar a tripulação de um dos bombardeiros. Por isso, naquele dia, fui escolhido para ser um dos dorsalgunners. É bem verdade que tinha experiência com aquilo, mas fazia tanto tempo que participei de uma missão nessa posição que tinha incertezas quanto a minha efetividade como tal.

Nossas instruções eram simples, com efeito, mas quem não tivesse voado no nosso setor de operações não poderia imaginar o quão exasperador a execução de algo mesmo tão básico era.

Partimos por volta das 21h55. Era uma noite de primavera incomumente gelada. Lua cheia; ótimo para ver o chão lá de cima. Havia novatos nos outros dois Gothas, mas não me lembro de seus nomes.

Meus companheiros no avião eram Fischer, um “antigo” veterano, e Lehmann, que entrou para o esquadrão mais ou menos na mesma época que eu. Só via os dois quando virava de costa e não havia como conversar muito com eles por causa do barulho dos motores. Eram bem competentes em suas respectivas funções de piloto de nosegunner, confiava neles.

Subimos e voamos em formação ligeiramente a baixo das nuvens mais rasas. A ideia, postulada por Muntz, era que devíamos manter contato visual com a superfície para saber nossa localização o tempo todo sem nos afastar das nuvens, que nos dariam cobertura caso topássemos com alguma patrulha inimiga. Durante boa parte do trajeto tudo foi extremamente monótono. E admito que, enquanto devia estar de olho nos arredores, tive uma série de

devaneios. Pensei em casa, em como gostaria de tirar férias e na possibilidade de ganhar uma medalha algum dia, qualquer uma. Falta de prudência, eu sei. Mas a verdade é que a vida de um soldado geralmente só possui momentos de emoção pontuais e a vasta maioria de nós morre de tédio antes que algo de realmente abalador ocorra. Quantos dos meus conhecidos esperavam que suas mortes fossem ao menos gloriosas, apenas para morrer de uma forma grotesca e sem ter feito nada de significativo no esquema maior de coisas?

Estava em um espécie de transe quando ouvi uma exclamação de Fischer e o matraquear de algumas metralhadoras através do ruído dos aviões. Não registrei bem o momento, mas o que eu sei é que um avião, um vulto verde escuro, surgiu do nada acima de nós e alvejou o caça de Hauser. Ele tentou fugir, virando bruscamente para a esquerda, mas o outro piloto foi mais ágil e terminou de destroçar as asas do oponente com alguns tiros certeiros. Hauser mergulhou eternamente na noite para nunca mais ser visto.

Começou o combate. Outros aviões apareceram das nuvens. Era uma emboscada ou algo improvisado? Sabiam que estávamos vindo? Estavam nos observando?

Escutei Lehmann gritar para Fischer: “É aqui!”. Olhei para baixo. Estávamos bem no nosso objetivo. Azar temos sido avistados tão perto do alvo, podíamos te-lo executado sem sermos vistos. Fui capaz de reconhecer as estradas que indicavam o local e vi quando as bombas se soltaram das barrigas dos Gothas enquanto Ackermann e Muntz lutavam desesperadamente para manter os ingleses longe de nós. Não sei qual foi nossa precisão, mas presenciei uma enorme bola de fogo surgir e se apagar, o que significava que conseguimos atingir o deposito de munição.

Depois disso, tudo foi muito rápido. Começamos a virar os bombardeiros para tentar voltar para o aeródromo. Os atiradores dos três Gothas riscavam os céus com suas rajadas e os pilotos ziguezagueavam suas maquinas. O avião de Muntz foi atingido por alguns tiros. A principio, não pareceu ser grave. Mas então ele começou a descrever um arco em direção ao chão. Um dos ingleses ainda tentou segui-ló sem perceber que um cadáver estava no controle.

Ackermann, indo até os limites que seu Albatros permitia, ainda conseguiu abater um dos ingleses antes que ele mesmo fosse atingido no motor. Ele fez uma descida controlada e vi as chamas se afastarem até ele atingir o chão. Não temos certeza se ele sobreviveu.

Pânico total. Mesmo nós, os mais veteranos, sentíamos o coração na boca. Não parecia provável que sobrevivêssemos sozinhos contra pelo menos cinco aviões consideravelmente mais ágeis que os nossos. Atiramos e atiramos. Mas eles pareciam simplesmente intangíveis. No céu negro víamos aquelas criaturas verdes e amarelas no circularem como tubarões, surgindo e desaparecendo nas nuvens. Seus olhos brilhavam em nossa direção e sentíamos as balas se espatifarem contra nossas fuselagens quase ao mesmo tempo. Não havia como escapar, não simplesmente voando para longe.

Foi então que um dos Gothas, tripulado por Weber, Kruse e um dos novatos, deu meia volta e voou no sentido oposto ao nosso. Foi uma surpresa e não ficou evidente até agora o porquê daquela manobra. Gosto de pensar que estavam se sacrificando, distraindo os ingleses que nós seguiam. Os ingleses, por sua vez, devem ter pensado que eles tentariam bombardear mais algum alvo ou coisa semelhante, porque eles se concentraram no retardatário e deixaram que o resto de nós se afastasse. Aquela foi a última vez que vi aqueles três: alvejando e sendo alvejados. Fiquei imensamente aliviado pelo pequeno milagre que eles nós proporcionaram, a custa de suas próprias vidas.

Aproveitando a oportunidade, o Gotha que voava a nossa frente mergulhou rapidamente para ganhar velocidade. Fischer o imitou e ganhamos mais distância enquanto descíamos. Eu não conseguia pensar direito, pois estava sem fôlego e completamente exasperado. Esses combates nunca duram mais que alguns minutos, mas parecem durar horas para nós. A vida de um aviador de guerra é curta e dilatada.

Meu coração quase parou quando senti a fuselagem vibrar; um dos aviões inimigos havia avistado nossa manobra e nos seguido. Voltamos a ziguezaguear e atirar. Para nosso alivio ele cometeu muitas imprudências e conseguimos força-ló a se afastar e voltar para seus companheiros. Um novato audacioso, provavelmente. Pena que a audácia nem sempre trás resultados.

Via agora que nosso bombardeiro estava em frangalhos. Eu segurava o metal gelado da minha metralhadora com um nervosismo doentio. Nossas asas rangiam e isso me dava medo, pois já havia escutado historias de aviões se desfazendo no ar como um castelo de cartas por causa de problemas estruturais. Estava tão chocado que percebi, bem depois, que o outro Gotha que estava na nossa frente havia sumido. E também que Lehmann estava inerte e debruçado sobre a lateral do avião. Pelo menos sua família recuperaria seu corpo; um luxo para os entes queridos de um soldado.

Como acabei dormindo? Você imaginaria que, depois de algo assim, eu ficaria em estado de total alerta até voltar para a base. Mas não foi isso que

aconteceu. Talvez não tivesse descansado bem antes da missão, talvez tenha ficado esgotado com a fuga, talvez os dois. Não sei. Mas o fato é esse: eu dormi durante o trajeto de volta. Não contei isso para ninguém. Meu Deus. O que iriam pensar? Camaradagem não se aplica nesse caso. Ninguém que eu conheça iria confiar em mim se soubesse disso. Ninguém.

Acordei sentindo meu corpo sendo arremessado para cima. Em seguida, antes de processar o que estava acontecendo, senti um choque violento seguindo por um barulho ensurdecedor de madeira quebrando. Nesse ínterim bati a testa na coronha da metralhadora e fiquei zonzo. Com os olhos turvos vi três pontinhos no horizonte. Pisquei. Eles se aproximaram. Pisquei de novo. Estavam mais perto. Pisquei mais uma vez. Os pontinhos se transformaram em homens esbaforidos correndo em minha direção.

Um deles- via agora que os três eram soldados- pôs a mão em meu ombro.

-Tudo bem camarada? Está ferido? - o primeiro perguntou.

Com a pergunta, fui obrigado a voltar para a realidade. Respondi, com a voz pastosa:

-Estou bem. Só bati a cabeça.

Ele me ajudou a levantar e me pôs no chão, encostado a uma parede.

-Tome - disse o segundo soldado, que mal devia ter seus dezoito anos, me estendendo uma garrafa. Cheirei o aguardente e o bebi. Meu corpo queimou e, aos poucos, minha mente ficou desperta.

Quando a bebida terminou de fazer efeito observei ao meu redor. Estava em um campo bem amplo, uma velha fazenda, e meu Gotha havia se destroçado contra a parede de um celeiro. Não entendi como aquilo era possível até ver que Fischer estava inerte, com o primeiro soldado o inspecionando.

-Heinrich, me ajude aqui - disse o soldado mais alto. Estava prestes a perguntar se Fischer estava bem, mas permaneci em silêncio quando ele e Heinrich começaram a ergue-ló e sangue esguichou de seu abdómen. Puseram o cadáver no chão e pude ver que suas calças estavam empapadas de sangue e que ele estava muito pálido. Ele parecia ter morrido há algum tempo. Novamente, não entendi como aquilo era possível. O pouso estava longe de ter sido controlado, mas não fazia sentido como “pousamos” ao invés de simplesmente mergulhar de nariz e virar geleia. No entanto, reparei nos braços estendidos de meu camarada e me dei conta do que aconteceu.

Não tenho como comprovar isso, claro, mas aí está o que ocorreu: Fischer fora atingido durante o combate, muito provavelmente quando aquele inglês nos seguiu, mas continuou pilotando sem falar nada. - Na verdade, eu prefiro

pensar que ele não disse nada para não me alarmar. Meu Deus. E se ele tentou me dizer isso quando eu estava dormindo? Por que não me disse quando ainda estava acordado? - Então, ele morreu. Mas por algum capricho do acaso seus braços enrijeceram de tal modo que eles mantiveram o manche do Gotha em posição neutra. Assim, o avião voou em linha reta até que os motores pararam por falta de combustível e planássemos até o chão, vindo a colidir, por acaso, com o celeiro.

Existem muitas variáveis que fazem essa explicação parecer implausível e mesmo ridícula. Perdi muito sono pensando nisso, mas nada mais consegue explicar aquilo.

Quando a hipótese se formulou na minha mente, naquele momento, senti vontade de chorar. Não de alegria. Não de tristeza. Mas de pura exasperação. Precisei me controlar. Eu sobrevivi por acaso. Os fatos eram esses: eu dormi em serviço e fui salvo da morte pelos braços fracos, frios e sem vida de meu compatriota. Suponho que muitas pessoas considerariam isso uma bênção; uma segunda chance de Deus. Mas eu não acredito nisso. Não pode ser uma bênção. Bênçãos são para mártires, heróis; pessoas de boa índole. E eu não sou nada disso. Sou um aviador medíocre que dormiu em serviço. Nada mais, nada menos. Muitas vezes, na guerra, ficamos a mercê de acontecimentos fora do nosso controle e todo soldado sabe disso. No entanto, essa situação é completamente diferente. Eu estava sob o controle da Morte. Minha vida podia ter sido ceifada com uma facilidade imensa. Outro avião inimigo, uma corrente de vento enviesada, um rio ou lago no lugar desse celeiro... E a lista continua. Contar isso, que sobrevivi desse jeito, parece uma lenda que veteranos contariam para novatos ou uma piada de bar de muito mau gosto. Minha morte era certa, mas não morri. Esses pensamentos nunca teriam fluido por minha mente, mas eles estão aqui e agora. Sou horrível, dormi em serviço e mesmo assim sobrevivi. Não mereço estar aqui agora.

Francamente, isso é uma punição pelo que sou. Percebo isso agora.

Os soldados não tentaram tirar Lehmann do assento porque não havia mais assento. O nariz do avião se esmigalhara. Seu corpo estava no chão, dilacerado durante o impacto e com uma das costelas exposta. O velório dele será de caixão fechado, mas ainda assim: um luxo.

O soldado mais novo fora incumbido de avisar um oficial sobre o acidente. O primeiro me perguntou o que tinha acontecido. Falei a verdade sobre a missão, mas menti sobre a volta. Aleguei que Fischer não me dissera que estava ferido e só percebera que algo estava errado quando começamos a descer.

-Estranho, com esses ferimentos ele não deveria ter aguentado tanto tempo - comentou Heinrich. As palavras dele me fizeram gelar o sangue momentaneamente porque eu não tinha como explicar aquilo, mas os dois não insistiram no assunto.

Eventualmente, o mais novo voltou com dois médicos e cinco soldados. Fui examinado brevemente enquanto os recém chegados observavam o avião.

-Ele está bem - disse o mais velho dos médicos - leve ele até Immermann, vou tratar dos cadáveres.

Enquanto o médico mais novo me escoltava, um dos soldados apontou para mim discretamente e perguntou a Heinrich:

-Ele é o piloto?

-Não, esse aqui com sangue nas calças era o piloto. Ele ali estava na cauda.

-Minha nossa...

Me senti incomodado, mas logo nos afastamos.

Depois de caminhar até um vilarejo em ruínas, desci um lance de escadas que levava ao porão de uma casa demolida pela artilharia. Lá embaixo havia mapas, papeis e todo tipo de parafernália que os oficiais e seus subordinados trazem consigo. Havia apenas um homem no ambiente, ele estava sentado atrás de uma escrivaninha de madeira barata. O médico fez uma continência e deixou o recinto.

Leutnant Immermann foi bastante amável, me ofereceu café e me perguntou sobre o acidente, a fim de relatar a seus superiores. Sua personalidade contrasta com sua fisionomia taciturna. Ele constantemente me falou sobre como nós, aviadores, somos essenciais para a vitória do Kaiser e do povo. Ele falava com muito entusiasmo, mas algo me diz que ele não acreditava no que dizia, e, para ser franco, eu também não acreditava. O tenente, ao final da conversa, me comunicou que, infelizmente, devido a um ataque que a divisão faria no dia seguinte, ele não poderia alocar um recurso sequer para me transportar de volta à minha base e que qualquer tentativa de fazê-lo resultaria em burocracia. Contudo, ele me ofereceu um lugar nos alojamentos enquanto esperava por qualquer resolução. Agradeci e segui com o resto do meu dia.

Immermann foi gentil, mas as horas que se seguiram foram absolutamente insuportáveis. Não conseguir ter paz nem no sono. Não conseguia tirar

Fischer da cabeça. Fiquei paranoico e ansioso. Comecei a temer que, de alguma forma, alguém deduzisse o que realmente tivesse acontecido durante o regresso. O que fariam comigo? A imaginação acelerada tinha certeza que levaria a corte marcial, no mínimo. Ou pior, talvez me amarrassem numa árvore e me fuzilassem aqui mesmo. Cheguei a ter um pesadelo em que furavam meu pescoço com um lápis e me deixavam sangrando pendurado de cabeça para baixo, como um porco.

A noite foi longa, mas pela manhã, enquanto os soldados se preparavam para a batalha, Immermann me chamou e dissera que o pessoal da minha base viria me buscar em poucas horas. Meu coração apertou, mas dissimulei a apreensão. Lá por volta da 10h, o ataque começou e pude escutar os disparos e explosões ecoando na retaguarda. Vez ou outra uma montanha de terra subia para depois desaparecer. Já havia escutado e visto essas coisas lá de cima, mas aqui em baixo a figura, obviamente, mudava. Me perguntei o que aconteceria se os britânicos conseguissem não só repelir o ataque, mas avançassem para cá. Me sinto horrível por pensar nisso, mas eu preferiria ser feito prisioneiro a ser descoberto. Eu sei que sou culpado, mas Meu Deus, eu não queria sofrer.

Para minha surpresa, quem veio me buscar foi Becker, meu comandante, junto com dois soldados subordinados. Queria agradecer Immermann mais uma vez, porém ele estava nas trincheiras organizando a próxima onda de ataque. Subi na carroça e fomos de volta à base.

Durante o trajeto, Becker me fez muitas perguntas. Na hora ele parecia um policial interrogando um suspeito e eu estava tendo problemas para controlar meu nervosismo. Me pergunto o que ele pensava da minha tremedeira. Mas agora percebo que ele simplesmente queria saber o que tinha acontecido e não tinha suspeita de nada. Quando terminei de contar tudo ele tomou a postura de um homem derrotado.

-Perder Hauser, Ackermann e Muntz já é muito ruim. Mas perder três aviões novos tão facilmente piora a situação.

-Os aviões são de menos, senhor.

-Não, não são. Não quero dizer que nossos camaradas valham menos que maquinas, mas nós simplesmente estamos encurralados. - fez uma pausa e retomou a fala parecendo um garotinho envergonhado - Desculpe. Não quero parecer pessimista, mas eu não acho que vamos muito longe sem eles. O inimigo tem a superioridade tecnológica, podemos ter bons pilotos, mas arriscamos perdê-los sem aviões melhores. Está cada vez mais difícil substituir o equipamento que perdemos e os últimos modelos não são que prometeram ser. O que temos agora de moderno? Dois Fokker D.VII, um

Pfalz D. XII e um punhado de triplanos. O resto é ultrapassado demais, e ainda por cima perdemos nossos Gothas!

-Isso lá é verdade.

-É a pura verdade, Lange. - Fez outra pausa antes de mudar de assunto - Terminaram de consertar seu caça hoje mais cedo.

-Ah! Ótimo...

O resto do trajeto foi silencioso, salvo pela conversa ocasional dos dois soldados que nos acompanhavam.

Droga. Quer dizer, Becker tem feito tudo o que pode para melhorar o nosso desempenho nos últimos meses, mas nada funciona. Estamos perdendo embate atrás de embate. Nossos ases estão sendo substituídos dia a dia por pirralhos com pouco treinamento. Entendo os pensamentos dele quanto ao assunto, mas se até ele não vê esperança, então...

E eu dormi durante uma missão. Me perdooe, Becker.

Chegamos a base. Almocei pouco, junto com Becker, e antes que me retirasse da cantina para averiguar meu caça, o telegrafista do aeródromo entrou e se dirigiu a Becker:

-Senhor, temos noticias do Gotha desaparecido. Eles se perderam e pousaram a cerca de cinquenta quilometros de Ham.

-Meu Deus! Como foram parar tão longe? Como eles estão?

-Bem. Mas Kramer quebrou o pulso e Vogel está muito abalado.

-Ou seja, dois homens temporariamente fora de serviço - Becker proferiu a frase em um tom de voz decrescente.

Fez-se silêncio por um momento antes do comandante perguntar:

-E o avião?

-Os motores estão praticamente destruídos e o leme não responde ao manche. Além disso não sei de mais.

-Certo. Pode ir.

O telegrafista se retirou. Becker permanceu sentado fumando. Perguntei a ele:

-Dois?

Sem olhar para mim, ele simplesmente disse:

-Você tem prestado atenção no Vogel? Pedir para ele pilotar depois de algo assim é o mesmo que pedir que enfiasse uma bala na própria cabeça.

Ainda permaneci por um tempo, talvez em respeito a Becker, antes de me dirigir aos hangares. Ham? Que diabos, Vogel sempre foi o mais sangue frio

de nós. Ele já passou por muita coisa, se ele não está mais aguentando o que será de nós?

E lá estava. O Komet. O motor parou de funcionar a algumas semanas atrás e, desde então, estive esperando ele sair do concerto. Um Albatros D.III azul bebe, com o nariz e a ponta da cauda pintados de branco e um ómega negro ao lado da cruz de ferro. Sempre gostei dele, como uma criança gosta de um brinquedo caro que sempre quis. Mas a verdade é que não é algo bom que ele ainda seja meu caça. Supostamente, eu deveria ter recebido um Pfalz D.XII a alguns dias, mas ninguém sabe informar mais nada a respeito. Está ficando bem claro para todos por aqui o que está acontecendo. Nosso futuro é incerto e sombrio, independente do resultado da ofensiva. Quem será a próxima vitima dos novos aviões inimigos? Nossos modelos do ano passado não vão nos salvar.

Após uma breve inspeção, decolei com o Komet para testar os reparos no motor. Tudo funcionava bem. Zanzei pelo céu azul da primavera e por alguns momentos senti a mesma sensação de êxtase que tive quando voei pela primeira vez, no inicio do ano passado. Um ano são como dez em minha percepção de tempo; me sinto um velho quando, em realidade, não envelheci absolutamente nada. Porém, a sensação não durou muito. De novo, me vi no assento dorsal do Gotha. De novo lembrei que dormi. De novo senti vergonha. Que desgraça. Como isso pôde ter acontecido? Em breve toda realidade etérea do céu límpido foi substituída pela angustia; uma espécie de aperto no peito acompanhado de um sentimento auto-depreciativo. Quero viver e seguir em frente com minha vida, mas sinto que não sou merecedor disso. Minha mente oscila entre culpada e não culpada. Já passou. Ninguém vai me punir... Talvez, exceto, Deus. Talvez não seja merecedor de estar aqui, mas quais as provas concretas disso? Me sinto culpado, mas tento provar que não sou culpado. Um raciocínio contradiz sempre o outro.

Para onde estou voando? Está vendo, Lange? Por isso não sou merecedor. Se estivesse do outro lado das trincheiras teriam me abatido com facilidade enquanto refletia tudo isso.

Os dias seguiram um atrás do outro, patrulha atrás de patrulha, pesadelo após pesadelo. E eu ainda pensava na missão. Seguia a formação, mas não pensava, apenas seguia meus companheiros mecanicamente, então me sentia culpado por isso, o que me levava a pensar mais a respeito e me distrair mais. Um ciclo vicioso que era incapaz de quebrar.

Mas agora tínhamos recebido mais uma missão.

Nessa altura a ofensiva já havia perdido a força, nossos avanços estancavam e estamos voltando ao status quo vigente desde 1915, com a diferença que agora não haveria segundas chances; era nosso ultimo lance. Os jornais dissimulavam e engrandeciam nossos feitos e conquistas ao passo que omitia as derrotas e contratempos. Todo mundo com uma gota de realismo na mente sabe que não podemos ganhar. Mas isso, claro, não impediu que comandantes continuassem elaborando planos que não permitissem nossa derrota completa, e um desses planos nos envolvia.

Becker conseguira recuperar um dos Gothas nesse ínterim. O que ele fizera foi reciclar os destroços dos dois pousos daquela missão para “construir” um avião remendado. Parecia funcionar bem, mas ninguém realmente confiava naquela maquina. E, quando esse improviso ficou pronto, não demorou até que recebêssemos ordens para um novo bombardeio.

De novo não.

A missão era fútil, aquele único Gotha não seria capaz de causar qualquer diferença significativa no nosso setor, ainda que todas as bombas acertassem, miraculosamente, um alvo importante. Mas eram nossas ordens, que podíamos fazer? Alias, nós nem sequer tínhamos grandes chances de sucesso. Havíamos sido reduzidos a dez pilotos, sendo os únicos três veteranos eu, Becker e Vogel; todos os outros foram mortos ou transferidos.

Fora decidido. Eu iria no Komet e escoltaria o Gotha junto com Vogel. Nenhum novato iria pilotar um avião, julgamos arriscado demais.

-Bem, nesse caso -Becker disse, ao tomarmos a decisão, com um sorriso que me pareceu triste e histérico - eu vou pilotar o Gotha.

Ele nunca havia pilotado um, mas teria que servir.

O clima no aeródromo, nessa noite, estava consideravelmente mais estranho. Como num sonho ruim. Nos últimos tempos tive tantos desses que precisei verificar se não estava sonhando naquele momento e se aquela missão era real.

Vogel estava diferente. O filho adoecera há algum tempo e ele afirmara, apesar de implicitamente, que não tinha certeza se ele sobreviveria se ele mesmo não voltasse da missão. O homem agora tinha cabelos brancos e olheiras, quem não nos conhecesse poderia acreditar que ele fosse nosso oficial comandante ao invés de Becker. Esse, por sua vez, não falava nada. Era simultaneamente o mais e o menos interessado em participar daquilo. Que pensava ele, exatamente? Que fracassara? E eu? O que sentia? Sabia que não

podia cometer o mesmo erro dessa vez, precisava ficar alerta o tempo todo, pouco importava se a missão fosse significativa ou não. Só tinha aquilo em mente, no momento.

Que sensação horrível. Não se sentir capaz de nada e, no entanto, precisar agir. Ir fazer um teste sabendo que não vai se sair bem, mas também sabendo que qualquer esforço é melhor que um zero redondo no boletim. Achei que me livraria desse tipo de sentimento depois que terminei a escola, mas parece que o pequeno Lange ainda tem muito o que sofrer e aprender.

Não há mais tempo para esse tipo de reflexão. Nos decolamos e ninguém vai sentir minha falta.

Estava tudo tão calmo e eu tão nervoso! Tinha a impressão que meu caça tremia também. O ceú estava vazio e a noite idêntica a do ultimo bombardeio. Se acalme, Lange. Não existem ingleses invisíveis. Se acalme pois você precisa ajudar seu país. O tempo passou rápido. Olhe! Não é ali? Você está quase lá!

Tiros.

Meus olhos vislumbraram pássaros verdes vindo em nossa direção. Meu coração batia lentamente, com cada iteração sendo mais dolorosa e forte que a ultima. Não tinha mais força para segurar o manche.

É isso. Acabou.

Vogel manobrou seu caça para enfrenta-los e eu, praticamente chacoalhando de tão tremulo, o imitei com muita hesitação. Seguia um inglês, mas então ele fugia de meu alcance com sua velocidade maior e eu era forçado a retroceder para perto do Gotha, para então ir atrás de outro alvo quando ele se aproximasse. Rodávamos e girávamos. Não conseguia respirar e me sentia tonto. Me sentia doente. Ia morrer a qualquer momento. Mamãe, me tire daqui por favor!

Subitamente, escutei um barulho metálico e um estampido alto. Meus olhos foram atacados por uma ardência e claridade horríveis. Meu motor está pegando fogo e o calor é insuportável. É isso, estou fora do combate. Vou descer o mais rápido que puder e...

Não!

Britânicos malditos! Me atingiram mas não me mataram! Que se dane! Vou matar todos vocês seus desgraçados! Se meteram nessa guerra porque o Albião Pérfido não queria perder sua posição de dono do mundo, não é?!

Nada importa mais, não vou deixar meu país perder a guerra fácil e vocês vão pagar muito caro. Meu motor está em chamas, mas tudo bem! Só preciso de mais uns minutos de vida. E não vou deixar vocês pegarem meus companheiros! Vogel vai voltar para seu menino! Becker vai ter algo para se orgulhar!

Ataquei. Tenho certeza que surpreendi os desgraçados quando desisti de descer e voei a toda velocidade em rota de colisão com um deles. Atirei e senti uma corrente elétrica passar por minha espinha quando vi as balas se desfazerem em explosões de farpas de madeira e meu alvo mergulhar. Uma vitoria! Quero mais. Venham me enfrentar seus filhos da puta!

Um SPAD tentou vingar seu amigo. Ele me seguiu antes que eu girasse por cima dele e atingisse o piloto, mas não o matei. Que pena! Contudo ele ficou ferido e começou a descer.

Eles tentaram me cercar. Não faço a menor ideia de quantos estava enfrentado. Podia ser entre cinco e cem. Não tinha importância, mataria todos eles. Devo ter abatido pelo menos mais um, o que, junto com os dois outros aviões de reconhecimento que abati há alguns meses, me faz um ás! Obrigado, idiotas! Me sinto invencível!

Suava muito, minha pele parecia cera derretida e ardia demais, minha boca estava terrivelmente seca, meus braços doíam, meus olhos lutavam contra uma enchente de suor e lágrimas e o nariz do meu caça estava ficando progressivamente mais carbonizado. Quanto tempo isso ia durar? Como meu motor ainda funcionava? Que importava? Ia até o final. Até o final. Até o final. Quando a munição acabasse usaria minha pistola. E depois disso jogaria meu avião contra um deles.

Girava. Guinava. Rodopiava. Atirava. Recarregava e jogava o cartucho usado para fora. E repetia tudo isso. Eles tentavam me matar e não conseguiam. Era invencível. Será por isso que sobrevivi? Deus precisava que ficasse vivo para impedir que a missão fracassasse? Só pode ser! Só pode ser...

Um susto. Um dos ingleses surge do nada acima de mim. Mergulho e mesmo assim ele me atinge. Ora! Tudo parece bem. Ha!

Espere. Tem alguma coisa errada. Por que não consigo subir? Olho para cima e o desespero toma conta de mim quando percebo que estou me afastando do Gotha e Vogel está agora sozinho lutando contra três aviões. Tento puxar o manche com toda a força. Nada acontece. Sinto que estou quase quebrando o eixo e nada acontece ainda assim.

- Merda. SUBA SUBA SUBA! -Berro enquanto soco o painel do avião.

Olho à frente, uma massa escura cresce e toma o horizonte. Prendo a respiração. Estou muito rápido.

E não há tempo de desligar o motor.

Meu avião quicou como uma bola de gude no chão e sinto meu corpo inteiro vibrar dolorosamente como um sino. As asas batem em algumas árvores ao longo do caminho antes que uma batida brusca me faça bater a testa na coronha da metralhadora de novo. De novo estava em uma missão de bombardeio. De novo estava no chão. De novo havia falhado.

Zonzo e com um rio de sangue fluindo pela testa, olhei para o céu e flagrei o momento em que abateram Vogel. Comecei a berrar desesperado e sair do avião apesar da tontura. Via agora que meu caça estava sem asas, o motor ainda pegando fogo e esmagado contra uma pedra e que o que fora há poucos segundos meu leme e profundores eram agora farpas desconjuntadas de madeira. Meu corpo não respondia direito a meus comandos, mas mesmo assim tentei correr para acompanhar o Gotha que fugia lá em cima. Eu cambaleava e gemia como um bêbado e tropecei varias vezes porque estava com os olhos focados para além dos galhos das árvores. Até que finalmente cheguei a uma clareira, saquei minha pistola, mirei e disparei três tiros antes de perceber a futilidade do que estava fazendo. Só me restava observar e rezar. Estava lá, sozinho e olhando o céu, rígido como uma estátua de um deus esquecido.

O Gotha mergulhou. Prendi a respiração enquanto acompanhava sua queda. Não podia ser verdade.

Eles sumiram no horizonte. Acabou.

Cai no chão e comecei a chorar.

❖❖❖
Apreciadores (0) Nenhum usuário apreciou este texto ainda.
Comentários (0) Ninguém comentou este texto ainda. Seja o primeiro a deixar um comentário!