da janela de frente da sala de estar, vejo um homem caído no chão nas escadas do quintal. o topo de seu crânio completamente esmagado, nada no lugar onde deveria estar seu cérebro. a tampa da cabeça perdida em algum lugar desconhecido. ao meu lado, observando a cena comigo e segurando minha mão com força, meu irmão mais novo. como foi que a gente entrou na casa sem ter que passar por aquela cena explícita? eu não lembro.
"provavelmente foi seu tio mais novo. logo ele vai voltar pra resolver isso", diz minha mãe, andando de um lado para o outro da casa que pertence ao seus pais, meus avós. meu tio mais novo. o irmão dela.
"você vai ficar no quarto maior com seu irmão do meio", ela diz. "eu fico com o menor quarto, que é do seu tio mais novo. e seu irmãozinho fica no meu quarto".
é uma disposição estranha, mas eu não protesto. é ela quem está no comando, afinal.
"tudo bem. eu posso usar meu computador na biblioteca, assim não me incomodo com os gritos enquanto ele estiver jogando. você vai usar a biblioteca?"
meu irmão mais novo passa por mim e se dirige ao quarto que foi resignado. minha mãe me olha, ponderando por um momento. "você fica no quarto maior com seu irmão do meio", e volta a andar pela casa atordoada.
mal tenho tempo de pensar sobre, quando volto meu olhar para a porta da frente tudo muda de lugar. janelas laterais se fazem presentes e de súbito eu me lembro. é mesmo, essa casa é uma casa incrível! é a única casa da cidade que também é um trem e faz viagens diárias. que sorte morar aqui.
sento no chão como uma criança feliz por finalmente ter uma distração e não precisar mais pensar na vida a volta e me ponho a observar a paisagem de casas nas janelas. quero poder olhar tudo, uma vez que terei apenas aquela oportunidade para fazê-lo naquele dia, mas quando tento mover os olhos tudo fica embaçado. não me assusta, no entanto, minha mãe está logo atrás tão admirada quanto eu.
nos sentamos eu, meus irmãos e ela numa sequência de bancos do trem. percebo que, de pé logo ao lado, tem uma pessoa me observando. olho brevemente para confirmar e, realmente, uma menina provavelmente da minha idade tem sua atenção sobre mim. olho novamente, a expressão neutra, e ela me sorri. de repente me sinto sonolento, então fecho meus olhos. escuto a voz da menina me chamando e, mesmo não vendo, sei que minha mãe a alerta para não me incomodar. cerro os olhos e vejo mãos em frente a meus rosto tentando chamar minha atenção.
"posso ter seu número?", ela pergunta quando volto a focar a visão em sua direção. pondero por meio momento e concordo com a cabeça. ela sorri.
"posso anotar no seu celular?" pergunto, uma vez que a garota não se mexeu desde a minha resposta.
"não trouxe", ela sorri calmamente. "pode me dizer, eu memorizo".
"tem certeza?", ela concorda. me bato um pouco para reproduzir o número, mas eventualmente consigo. a viagem continua e a garota brinca de implicar com meu irmão do meio, que é uma pessoa fechada na maior parte do tempo, então eu me preocupo se ela não vai incomodá-lo ou ofende-lo. ele fecha a cara para ela, mas logo sorri minimamente e eu agradeço mentalmente por não ter que defender ninguém. que bom que eles se deram bem mesmo sem minha intervenção, penso.
"o trem vai voltar para casa?" pergunto.
"sim", minha mãe responde.
quando o trem para, a garota se despede e eu repito meu número uma última vez para que ela não esqueça. "vamos descer agora, é muito difícil chegar em casa da última parada", ela comenta com sua amiga enquanto se afasta.
está escuro. nós descemos do trem e vamos para outro vagão que está parado. nos sentamos e eu foco minha atenção em tentar colocar o cinto de segurança de três partes, mas nenhuma encaixa. entra o maquinista e começa a explicar para nós e as outras pessoas presentes sobre uma "experiência incrível de realidade virtual". viro para ele e pergunto se aquele trem passa no meu bairro. ele diz "não, esse não vai sair do lugar", então eu e minha família descemos antes que as portas se fechem.
está escuro. tem um carro parado ao lado do vagão. nós começamos a andar na direção de onde viemos, que está agora cercada de árvores. o carro liga e começa a se aproximar. nem sinal do meu irmão do meio. minha mãe, desesperada, começa a correr do carro que se aproxima em alta velocidade. eu a acompanho com meu irmão mais novo de mãos dadas novamente.
"quem é?", grito enquanto corremos.
"não sei", minha mãe diz. "não reconheci".
de repente uma ideia passa pela minha cabeça. uma sensação, um conceito abstrato. paro de correr, solto a mão do meu irmão que, desesperado, tenta me agarrar de novo. o carro passa por nós e desaparece entre as árvores. ora, minha mãe tem borderline, então por quê exatamente ela está no comando?
tem um homem caído no chão das escadas do quintal... e eu acordo.