O luto fez minha raiva voltar,
quente,
fervendo,
destruindo tudo ao meu redor,
soltando gritos de rancor
que me fazem tremer e ter dores de cabeça profanas,
chutando, socando, quebrando coisas preciosas,
fazendo o suor lavar minha face,
meus dentes trincarem,
minhas alergias emocionais voltarem,
as veias da testa saltarem,
e tudo doer,
pois não é justo, não é justo,
não é justo vó,
a senhora ter de trabalhar PESADO até os 65
pra ter o que comer,
o que vestir,
com o que pagar as contas
de coisas essenciais que deveriam ser gratuitas,
apenas pela sua origem humana de nascer na terra e pertencer.
A senhora trabalhou e batalhou, vó,
limpando casas e mansões,
limpando merda e polindo pratarias,
cuidando de idosos, de crianças, de bichos,
de irmãos, vizinhos, maridos, filhos, sobrinhos e netos,
fazendo panelões de comidas,
baciadas de roupa lavada,
catando tarrachinhas de ouro
perdidas pelas escadas,
pra ricos malditos e ingratos
que te abusaram e tentaram te passar a perna.
A vida é assim?
Nós nos FODEMOS pra outros rirem da nossa cara?
Pra sua patroa ir no seu velório,
sorrir pra senhora no caixão e não derrubar nenhuma lágrima?
Pra levar os filhos nojentos e podres dela,
que deixavam calcinha cagada em baixo da cama
e comida apodrecendo no guarda-roupa pra senhora limpar?
Isso faz ALGUM sentido?
Eles viverem e a senhora definhar?
Faz sentido, eu viver e a senhora embaixo da terra estar?
Não tem sentido.
Eu surto de raiva plena às 08h da manhã
no meu emprego home-office de merda,
é tudo que consigo, não faço nada importante,
não cuido de ninguém,
não esbanjo dons e inteligência
e relevâncias,
o que eu faço é medíocre,
e sei disso,
mas é com isso que também pago as contas,
com isso que também destruo minha alma,
com isso que meus ossos
e pensamentos se cansam.
E eu sou tão fraca,
tão burra,
tão sem força,
sem talento,
sem disposição,
sem alma,
sem perspectiva de futuro,
sem coisas reais pra me agarrar,
sem fôlego de vida,
que isso é o máximo que eu consigo: raiva.