Lacrimosa dies illa, dies iræ
qua resurget ex favilla
judicandus homo reus.
Se olhasse para o céu naquele momento, perceberia as arestas das nuvens. Às vezes, estavam escondidas atrás de outras igualmente pontiagudas, quadrangulares, com arestas longas e afiadas e vértices retos. Não sabia quando haviam se tornado retangulares. Um dia, ao olhar para cima, viu o primeiro ângulo obtuso atrás de uma mancha abstrata. Então, por um instante, o azul transformou-se em cor-de-rosa, e acima dos muros cinzas as tachas de metal reluziram, como se fossem incandescentes. Bruno perguntou a Hórus o que havia acontecido, porém nem ele tinha uma resposta. Começou a chover de repente, e ninguém mais podia ficar no pátio.
Nos dias depois daquele, resolveu falar com Maria. Não a santa na porta de entrada, porque Bruno não acreditava em Deus, tampouco numa mulher que pariu Deus. Talvez não acreditasse em nada, nem em Buda, nem em Tupã, nem em Preto velho, porque nenhum daqueles nomes nunca se lembrou do dele. O céu estava lá, cheio de arestas, como o fundo de seu quarto na casa de Piraquara, e todas as nuvens se moviam como um móbile acima do berço do primo Pipo. As noviças falavam em Jesus, passavam rezando debaixo da foto de seu coração exposto, pedindo-lhe para tirar a tempestade dali — porque, da última vez, aves atiraram-se contra as janelas e olhos desenharam-se pelas paredes. Hórus calou-se no mês anterior, quando alguém pichou um sol na porta da capela — era um olho, disse Eliel, mas Bruno não deu atenção. Não acreditava em nada daquilo; ia falar com Maria, a garota da casa verde por dentro e amarela por fora.
Ninguém o viu sair da ala, pisando leve, viajando no sopro de um segredo — quase flutuando — e crendo muito na menina da foto. A lágrima de cristal abaixo do rosto da santa do hall principal cintilou sob o toque tórrido da luz do pôr-do-sol, que escorreu pelas vestes caídas da virgem. Bruno viu o céu através dos vitrais. Estava seco e pálido e quadrado, e as nuvens tinham arestas. Algumas, mais difusas e mais pomposas, ainda se mexiam. Bruno cortou o corredor, pois precisava encontrar Maria antes que ela fosse conversar com o padre Jucelino sobre o crucifixo acima da porta — que despencou numa quarta-feira após a lição em que leram o primeiro capítulo do livro de Apocalipse.
Viu-a sem ninguém no quarto. Sentava-se com as pernas sobre a escrivaninha e os braços espalhados pela cadeira. Conversaram sobre como o padre Jucelino falava daquele versículo da Carta aos Romanos e os olhava com os olhos cheios quando terminava de recitá-lo — a boca, contudo, permanecia vazia, pois a voz dele se desfazia ao ver Maria, e, para que pudesse tê-la de volta, sugava o ar sofregamente. Jucelino falava. As noviças falavam. Maria lia. Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores. Bruno sentou-se na cama dela.
Conversaram sobre um tanto de tudo até que o sol se despedaçasse no horizonte. De seus frangalhos, nasceu a noite, que cantou atrás dos muros sua escuridão solitária. As meninas cochichavam na área comum, as noviças desciam pelas escadas, o padre Jucelino rezava na capela. O terço trêmulo tracejou acima do muro uma estrela solitária, brilhante, que se elevava até o topo reto feito teto de alvenaria.
— Quer pegar a lágrima da santa amanhã? — O toque da lâmpada do abajur bruxuleou por cima da cabeça de Maria uma sombra torta e disforme.
— Quero — A afirmativa de Bruno pôs um sorriso em seu rosto. — Mas e a Gisela? A Dona Carmina? As noviças?
Maria esticou as pernas para perto e, com as solas dos sapatos pretos, empurrou-o para trás, num chute firme e certeiro. Bruno caiu de costas no colchão; o corpo formigando, o sorriso ardendo, a cara queimando. Por um instante, o mundo ao redor reclamou, grunhiu, e a cama rangeu de volta.
— Que chorem no lugar da santa.
Nos pés da imagem no salão, não havia mais a serpente.
Dies illa, dies iræ, calamitatis et miseriæ
Em uma manhã, viraram a imagem de cabeça para baixo, e todos foram chamados para conversar com Dona Carmina. Bruno não tinha nada com aquilo, Josué nunca nem ouviu falar, Marcelo sequer estava na ala. Das meninas, Elizabeth disse que não sabia, Begônia também não. As demais rezavam na capela, contaram as noviças. O padre Jucelino quis falar com Maria.
Ela estava vendo a mãe, que lhe trouxe roupas, uma toalha, um par de sapato, um tubo de xampu, uma escova de cabelo. O padre deixou-a em paz e partiu para dentro da capela. Eco o saudou com o som dos próprios passos.
A imagem estava de cabeça para baixo no fundo da gruta, ninguém ousou movê-la. As noviças cochichavam entre si, murmurando entre um suspiro e um soluço uma prece à cruz suspensa acima do salão, pois os pássaros não cantaram quando amanheceu, e a floresta as fitava, com todos os seus mil olhos vidrados. Um homem entrou ali mais cedo, armado — portava um facão. Depois, ao fim do dia, saiu pelo caminho estreito. Era mata virgem, disse Gisela à Didi, e ele saiu cortando tudo. A mata não sabia bordar, e cortaram-lhe a língua fora, pensou Didi; a tapeçaria diante dela mostrava o anjo Gabriel em sua visita à Maria.
Jucelino uniu as mãos em preces, afinal a imagem ainda estava ali, virada. A noite seguiu longa. As noviças foram dormir, os garotos foram dormir, Bruno foi ao pátio, mas Dona Carmina o levou de volta para dentro. Da janela, ele enxergou a nuvem — oval — e as estrelas — esticadas. Acima da capela, havia uma nuvem quadrada.
O Pai-Nosso soluçava pelas paredes em mármore, pela abóbada em ouro fino. Tentava escapar para cima, em direção aos vitrais coloridos da cena da mensagem do anjo mensageiro, mas os dedos do padre o traziam de volta. Prendiam-no ao crucifixo, amarravam-no contra a batina, sufocavam-no contra o peito: precisava tê-lo junto, a tempestade estava prestes a desabar! O céu acima da capela pulsava, e entre as arestas das nuvens repousavam tons de vermelho — vermelho carmesim, vermelho escarlate, vermelho morango. Morango, vermelho como um morango. Sem dúvidas, vermelho.
Bruno rolou a lágrima entre os dedos e pôs os olhos para Maria, em cujas mãos dormia o quarto vermelho. O padre tornou a rezar. Apanhou outro terço mais comprido, dedilhou-o como fazia com as contas de seu colar furtacor — a única cor ali, na capela, era, entretanto, o vermelho. Jucelino abriu os olhos ao sentir o fio de ar sair fugido — a galope — da ponta de seus lábios. As cem mil asas de trovão ruflaram pelos ares e sopraram para longe os borrões cinza e branco, que em certo dia e em certa hora foram as últimas nuvens bordadas na toalha em cima do altar.
O estalo trincou o seminário, mas não o rachou ao meio. Fugiu para dentro da mata, de cujos buracos negros sangrava o presságio na parede do banheiro. Estava lá, atrás dos azulejos, entre as árvores, dentro dos troncos, acima das copas. O homem com o facão balançou a língua diante dos olhos dos cães, que no Bosque das Sete Tumbas chamavam pelo apocalipse.
Confutatis maledictis
flammis acribus addictis
voca me cum benedictis.
Denso, grosso e sufocante, como disse Sérgio. Ele não estava mais lá, havia partido para o interior de Minas em janeiro, no auge do verão. O dia de estio trouxe as aves, que se atiraram contra os vidros do convento como que sopradas por um furacão. Perto do rio que cortava o bosque, caiu uma cabeça d'água. Sobre o mato alto, repousou até que a encontrassem, vazia, de olhos arregalados, gritando obscenidades. Dona Carmina botou-lhe um pano sobre a boca, mas sua voz varou o céu reto e retumbou por todas as arestas das nuvens; procurava pelos deuses: queria ser ouvida! Mas não havia ninguém acima da Terra.
— É um busto velho — disse o padre. — Pode colocar no porão.
As noviças tremeram como cordeiros medrosos.
— Na Garganta, só podemos ir em sete — disse uma delas.
O padre apontou para a janela, e todas as noviças acompanharam o indicador branco e longo do homem sob a luz escarlate.
— A tempestade vem — sussurrou ele. Foi o suficiente para dispersá-las, em sete, em direção à porta marrom ao final do corredor.
Bruno as ouvia pelos cantos do bosque, zumbindo e cantarolando por cima do silêncio da cabeça. Também as ouvia abaixo do assoalho, sussurrando e murmurando os cânticos de todos os domingos em frente ao altar. Penduravam-se no teto, balançavam-se pelas vigas, trepavam-se nas árvores. Acima delas, formou-se o turbilhão — vermelho —, e as nuvens — cor-de-rosa — afastaram-se do meio do vórtice. O céu reto pariu de uma só vez a grande tempestade, que se desenhava no teto feito pintura, cada vez maior, cada vez mais vermelha.
Na Garganta, as sete noviças jogaram a cabeça, que desapareceu na inescrutável escuridão. O buraco no chão abria-se, redondo, feito boca escancarada em espanto, que no solo da floresta deixava enorme cicatriz. O que havia entrado ali ninguém sabia o que era; chamavam-no apenas de Garganta, nome do local que, de tanto em tanto, virou o de seu habitante. As noviças olharam-no, mas não o viram. Correram para longe antes que o chão tremesse e que suas pernas bambeassem diante do estouro da tempestade.
O convento estava encharcado de vermelho, assim como estava o seminário. Todos ali eram vermelhos. Maria, Bruno, Eliel, as noviças, Marcelo, o padre, Dona Carmina. Tudo era vermelho e o seria para todo o sempre.
O próximo trovão trouxe a chuva. Os edifícios banharam-se no sangue que caiu do céu. Denso, grosso e sufocante, como disse Sérgio. No bolso do homem, a língua se agitou; nas correntes dos cães, os latidos bramiram.
As arestas das nuvens nunca se desfizeram, embora o profeta cego as tenha visto mais redondas no dia seguinte. A lâmpada torcida acendeu de repente — ainda estava fora do lugar. O vórtice minguou, o turbilhão — bocejando — diminuiu, e a chuva cessou. Aquele era o começo novamente.
Bruno estava em Piraquara, Maria na casa das amigas, Eliel no seminário, o padre na capela, as noviças no bosque, a escuridão na Garganta. Comecemos, então, do começo — pois o coração na parede ainda bate, e todos que irão morrer ainda estão vivos.
Requiem æternam dona eis, domine:
Et lux perpetua luceat eis.