"A minha única diferença em relação a um homem louco é que eu não sou louco!"
- Salvador Dalí
Eu sou uma hiena. Eu sei que é estranho e talvez você até ache engraçado, mas essa é a verdade. Eu não apenas sou uma hiena no aqui-e-agora, mas no passado eu também fui uma hiena, embora antes não percebesse, mas agora tudo faz sentido. Aqui está a minha história.
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Em um dia, abri os olhos e me vi deitado em uma superfície dura, fria e lisa. A princípio, pensei que estivesse na minha cama, mas não estava. Desviei o olhar para cima e vi uma luz, porém escura, em um cômodo pequeno, sem janela, apenas uma porta. Pisquei algumas vezes, pois poderia jurar que vi olhos e dentes nas paredes.
A porta rangeu e, aos poucos, se transformou em uma massa disforme e humanoide. Movia-se vagarosamente em minha direção, parando tão próxima que eu podia ouvir um chiado que ecoava como uma respiração forçada. Na área onde deveria estar a cabeça, um buraco escuro pairava, parecendo me observar. Um calafrio percorreu meu braço quando senti uma dor se intensificar, e aquele buraco se aproximou, envolvendo-me na escuridão.
Quando meus olhos se fecharam, vi-me sentado no chão, diante de um espelho, ao lado um bilhete:
"Esse lugar tem suas próprias regras:
1- Sempre esteja sorrindo;
2- Não se mate;
3- Não tente fugir."
Acredite, eu não sou muito adepto de seguir certos tipos de regras. Amasso e jogo o pedaço de papel fora, enquanto observo minha imagem refletida no espelho. Movo minha boca para formar um sorriso, o mais largo que consigo, mas não é o suficiente. Fecho a minha mão com força, lançando-a em direção ao espelho tão rápido que o objeto racha, mas não completamente, apenas o suficiente para um pedaço do artefato cair sobre as minhas pernas.
Pego o vidro pontudo do pedaço do espelho, as laterais não uniformes rasgam a pele, ainda assim, levo o vidro até o meu rosto, olho para o espelho e novamente esboço um sorriso, começo a passar o objeto pontiagudo no canto dos meus lábios. Rasgando, alargando o sorriso, sangue começa a verter da minha face, continuo a rasgar, passo para o outro lado, a minha pele ao lado da boca começa a despencar, deixando os meus dentes a mostra.
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Vejo uma linha de costura e uma agulha grande, seguro-as entre os meus dedos e insiro a linha na lateral da minha boca rasgada, costurando. Início pelo lado esquerdo. Continuo sorrindo. Lado direito, mais sangue. Termino e vejo novamente o meu reflexo com sangue no rosto e dentes, e a boca escancarada em um perfeito sorriso.
Ao meu lado, algo se arrasta pelo chão, as mãos estendidas em minha direção. Uma figura com a boca costurada em um sorriso igual ao meu, com o rosto virado para mim. Seus olhos são órbitas escuras, buracos vazios perdidos na imensidão e quase saltavam, mas eu sabia que não me viam.
Aproximo-me, esticando minha mão, quando aqueles olhos começam a sair das órbitas, saltando. Recuo e observo horrorizado quando da boca da figura surge uma cobra, sua língua começa a se enrolar em torno do meu corpo, apertando, enquanto aquele som atroz penetra meus ouvidos, ecoando como uma canção macabra: 'Seja feliz, seja feliz, seja feliz.' Os arrepios percorrem minha espinha, e eu anseio desesperadamente por ser feliz. Uma risada sinistra de hiena escapa dos meus lábios.
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Enquanto a língua da cobra se enrola ao meu redor, o meu reflexo no espelho adquiri um novo contorno. Meus olhos ficam pretos, e meus poros se transformaram em orifícios semelhantes a bocas. A linha de costura move-se sozinha, executando sua tarefa nas outras bocas, o pedaço de espelho retalha cada parte do meu rosto. Movendo-se para cima e para baixo em perfeita sincronia, como um violinista executando a Sonata ao Luar de Beethoven. Em cada orifício, um sorriso surgia. Olhos-boca com dentes.
Viro a cabeça e no teto vejo um quadro. Nele, um homem repousa em uma cama com a boca aberta, a sua língua em forma de cobra envolve uma hiena, enquanto o animal exibe seus dentes afiados. As paredes ao meu redor começam a desmoronar, desfazendo-se como água. O chão sob meus pés desaparece, mas não caio; permaneço na mesma posição. O espelho, ainda fixo, reflete minha imagem distorcida.
No espelho, observo a hiena e seus olhos-bocas. Meus poros se alargam, jorrando sangue à medida que os pelos emergem, transformando-se em uma mescla de marrom-alaranjado, semelhante ao sol ao definhar todos os dias, formando listras pretas. Minhas orelhas crescem, tornam-se pontiagudas e, à medida que meu rosto se distorce, elas se fixam na parte superior da cabeça. Meu nariz se achata, a mandíbula torna-se proeminente e dentes afiados despontam para fora da cavidade bucal, adquirindo um tom amarelado. A superfície lisa do espelho reflete um rosto contorcido pela dor; no entanto, não sinto nada. Apenas uma sensação de deslumbramento, como quando a lua emerge no quadro negro. Renasci, no infinito, no impossível, dos olhos que emergem na escuridão, pairando no ar, e das bocas esfarrapadas que voam.
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Lá fora, apenas a escuridão ecoava, como se eu estivesse em um abismo. Agora, sem paredes a me confinar, eu conseguia vislumbrar o infinito, meu corpo flutuava livremente. Não havia agonia, angústia ou frustração, apenas um profundo sentimento de êxtase. Uma lua solitária, com um único olho, parecia observar-me, julgando-me, enquanto da minha boca jorrava sangue. Felicidade.
Levo minha mão até a superfície espelhada, esperando o toque gelado do vidro, mas, ao invés disso, uma textura viscosa começou a me aspirar, a me sugar. Não ofereço resistência. Sou consumido por completo, enquanto a escuridão engolia tudo aos poucos, minha carne fundindo-se com a superfície.
Depois disso, eu vi através do espelho, em um quarto escuro, uma figura melancólica contemplando seu reflexo, tentando, em vão, esboçar um sorriso.
Finalmente, eu sei quem sou; eu já disse a vocês: sou uma hiena. Mas não uma hiena qualquer; sou a hiena mais feliz, com um sorriso costurado na boca e buracos no lugar dos olhos.