Agora, olhando para as letras do teclado, Abo recupera o foco e finalmente começa a fazer o que ama. Abo está de volta, e desta vez não há nada capaz de distraí-lo. Contar histórias e imaginar situações interessantes, Abo nasceu para isso, e é o que ele vai fazer agora, e nada será capaz de… !
Passos… alguém se aproxima do escritório. A porta… A porta barulhenta! Por favor, por favor, nãaaaaa… !
“CLANC!” “iiieeeerrr” “TUM!” “PLAC!”
- Bom dia, Abo! Vim pegar só um negocinho aqui… aqui! Achei! Muito obrigado, desculpe o incômodo, qualquer coisa estou…”
“CLANC!” “iiiiieeeeeeerrrrrr” “TUM” “tuc tuc tuc tuc…”
O passos continuam, mais baixos, mais baixos, até o infinito… E a “inspiração” de Abo quase se cala diante do clamor de sucos gástricos, ativados pelos 350ml de cafeína a escoar pelos dutos esfolados de seu estômago.
Ele não desiste. Ele não tem o direito de desistir de sua paixão. Escrever foi tudo o que sobrou de sua última vida, daqueles anos, ah! Os anos que se via como um criador de coisas belas e valiosas.
“VRRR VRRR”
Tudo bem, é só o celular, que pode ser facilmente desligado.
“CLANC” “ieeerrr…”
Opa, parece que a porta barulhenta não foi propriamente fechada. Maravilha!
Abo se levanta, dá a volta em sua mesa e “iiiieeeerrrr…”, certificando-se de dar um empurrão extra para que o trinco engate com um “PLAC”. Ele aproveita e vira a chave uma vez, quem sabe isso impeça outros indivíduos de virem pegar objetos aleatórios e quebrar sua concentração.
De volta à sua cadeira, Abo se coloca a…
“toc… toc… toc toc… toc toc toc TOC TOC TOC” “CLANC!”
- Abo, ooooiii! Você está aí dentro? Esqueci um negocinho…
É claro… De pé outra vez, anda até a porta, destranca, pessoa pega o que precisa, sai… “CLANC, TUM, PLAC!” …
“PLUNCT PLACT ZUM”
“NÃO VAI A LUGAR NENHUM”
Mas ele vai. Abo vai a lugares agora, e não é uma porta barulhenta que vai impedi-lo de realizar o seu sonho. O que quer seja esse sonho! Há anos Abo almeja ser o maior de todos, e agora, finalmente, nada pode pará-lo!
- O maior de todos o quê?
Não interessa! Abo está sentado em sua cadeira, olhando para a sua ferramenta de trabalho, e neste momento ele se põe a escrever…
- O diálogo… o diálogo entre B e C sobre o que D acha de E. Mas onde está o A?
Havia um personagem faltando! Não! Não pode ser!
- Peraí, não era um diálogo, era uma descrição sobre…
“PPPPPPPPPPPPING!”
- … UMA ABERTURA para uma situação, que levaria ao diálogo descrevendo a relação entre C e D. Mas quem é quem, e mais importante ainda, por quê?
O que era isso? O que causaria tal confusão em alguém que não tem mais nenhuma distração?
- … Cigarro. Preciso de um cigarro.
“CLANC, ieerrr, TUM, PLAC” na ida e na volta de fumar, e desta vez sim ele está preparado para passar horas escrevendo sem interrupções. Era isso que Abo faria. Não havia obstáculo entre ele e a mais pura fluidez narrativa.
Exceto a fluidez de sua azia. Cafeína e nicotina são uma ótima combinação para a concentração e para a gastrite, e é por isso que Abo precisou caminhar até a farmácia e comprar mais sais de fruta. Não fazia sentido pedir entrega, a drogaria ficava logo ali, há uns cinco quarteirões.
Assim que voltasse, estaria com a cabeça e barriga frias, sem dores excruciantes ou confusões paralisantes. Finalmente, poderia escrever.
Ele se sentou. Alongou os pulsos, estalou os dedos, posicionando-os sobre o teclado. Digitou “Agora”. E lembrou-se que era hora do almoço.
Ah, sim! A fome de Abo era tanta quanto sua inspiração e seu foco na arte da escrita. Comeu como um troglodita sua única banana e bolachinha de água e sal. Se a vovó pudesse vê-lo agora, comendo desse jeito!
Cinco minutos depois, e já estava pronto para começar a escrever de vez.
Portanto, foi tirar uma pestana de cinquenta e cinco minutos, já que estava tudo preparado. Com uma soneca revigorante como essa, estaria escrevendo dez páginas por dia, todos os dias, como nos bons tempos. Ele sabia que havia um escritor dentro de si, ele só precisava descansar um pouco.
- Boa tarde, Abo! Sonequinha?
- Hmmmff hmmmff ‘tarde. - Disse, com a cara engessada no braço do sofá. Já haviam se passado cinquenta e cinco minutos? - Hmff ‘tarde.
Chegara a hora. Abo se levanta rápido para não ser puxado de volta ao sono, e aproveita o embalo da pouca oxigenação do cérebro para chegar ao banheiro sem perder tempo. Não havia espaço para a dúvida, cansaço, fome ou vontade de fumar. Era lavar o rosto e escrever, escrever, escrever!
No caminho, ele abastece a tigela do gatinho, que agradece com um “obrigado” preguiçoso como sempre.
- Hmmmmmm. De nada, Gato.
Abo entra no escritório e decide deixar a porta barulhenta aberta. Se não pode vencê-la, deixe estar! Não é como se existisse uma substância de fácil aquisição que poderia resolver o problema de dobradiças rangendo.
- Quer saber? Vou é passar um oleozinho.
Abo se lembra de ter visto uma lata de óleo lubrificante em alguma dispensa, em algum momento de sua vida, e torceu para que fosse a atual. Então, lembrou-se que não tinha dispensa, muito menos uma lata de óleo.
Mas não havia problema, a mercearia estava a menos de oito quarteirões de distância, e bem que estava precisando dar uma caminhada e uma fumada após tal refeição e soneca satisfatórias.
De volta ao escritório, porta barulhenta recém-calada por um produto milagroso, era só sentar a bunda na cadeira e escrever. Mesmo que entrassem quinhentas pessoas para pegar o que fosse, não seria incomodado.
- Ei, Abo. Você colocou comida demais e agora estou passando mal.
Abo olhou pro Gato com aquele ar de quem não estava nem aí, pois sua carreira de escritor estava só começando.
- Você não é obrigado a comer tudo.
- Não é assim que funciona, Abinho. Eu sou um animal. Eu vou comer o que diabos você colocar no meu prato, até acabar. Se eu engordar, a culpa é sua. Obesidade felina é um problema sério, Abo. Sabia, Abo? É um problema sério e sistêmico, Abo, causado pelos padrões inalcançáveis de imagem corporal felina, Abo. Sabia disso, Abo?
Desde quando o Gato era tão politicamente consciente?, pensou.
- Certo. Na próxima vez terei mais cuidado.
- Então, na próxima vez, prometo não vomitar no armário de sapatos. - Disse o Gato, e saiu rebolando felinamente com o rabicó empinado.
E agora, ele tinha que limpar o vômito. É isso o que ganhava por querer se concentrar em escrever.
Pazinha, pano e desinfetante em mãos, Abo foi fazer o que tinha de ser feito, e só após certificar-se da limpeza total de todos os sapatos, retornou ao que deveras faria até estar terminado: escrever uma história. A história que mudaria a sua vida.
A história que mudaria o universo.
“TREC” “zuuuiiip” “GLENP” “PLOMP”
- Ei, Abitozito! Vim pegar um negocinho aqui, já tô saindo, hein!
“zzzzuuup” “flompflompflomp” “PLOMP”
Abo respirou fundo.
Não era o fato de alguém ter ignorado a porta que ele deixou aberta especialmente para os casos de “negocinho esquecido”. Isso é compreensível.
Também não era o fato de que alguém tinha descido de rapel do sótão para pegar o negocinho. Afinal, acontece.
Nem era o fato de que a parede branca agora tinha a marca de um sapato a dois metros de altura. Na verdade, isso incomodava um pouco.
Mas era o fato de, na volta, não terem encaixado a fechadura da portinhola direito, até fazer um “TREC”.
E era o fato de terem lhe chamado de “Abitozito”. Diminutivo DUPLO? Ah, não.
Não, não.
- Não, não, não, não…
Abo precisava de um cigarro, e foi o que fumou.
Na volta, subiu em uma escadinha e engatou a fechadura da portinhola do sótão corretamente, mas não antes de dar um espiada para dentro do sótão e ver uma dispensa inteira de latas de óleo lubrificante. Mas tudo bem! Depois de tanta coisa acontecendo, o momento chegou em que ele se afogaria em um conto fluido, e as palavras finalmente viriam ininterruptas.
Olhando para a página com uma única palavra digitada, Abo apagou o “Agora” e digitou “C esperava em seu local habitual pela chegada de D, e viu o amigo atravessar a rua, vindo em sua direção com um sorriso.”
Abo digitou isso, mas o que apareceu na tela não fazia sentido algum.
“J emergiu de seu túmulo, satisfeito por mais um milênio de descanso nos sonhos incompreensíveis de seu patrono cósmico, Ryslatha. Kvac Hu’Tula Abberath, em nome dos seres que habitam o…”. - Abo sussurrou o que estava escrito. - Eu… Eu não escrevi isso.
- E você provavelmente não deveria ter dito os nomes desses antigos deuses esquecidos em voz alta.
- Fica quieto, Gato, ninguém pediu sua opinião. E gatos não falam.
- Miau. - Disse o Gato, que se esfregou na tela do notebook, pulou da escrivaninha e foi dormir.
Abo bufou, irritado, e disse: - F'AI THAGN! CTHULHU R'LYEH WGAH'NAGL FHTAGN!
Já era o bastante. Primeiro o vem e vai incessante de pessoas pegando seus negocinhos. Depois, ácidos estomacais e dores internas devido aos desgastes de seu estilo de vida duvidoso. Sem contar o gato que começou a falar, e aparentemente tem conhecimento proibido de verdades incompreensíveis e horríveis do cosmo.
Mas quando seu computador o desobedecia, Abo não tolerava.
Ele começou a digitar. Ah, ele digitou e digitou e digitou freneticamente, até seus dedos começaram a pegar fogo. Aproveitou para acender outro cigarro.
Abo escrevia sobre a abertura para uma situação, que levaria ao diálogo entre dois personagens, que discutiriam a relação entre dois outros personagens, para que a trama pudesse seguir em frente e fazer sentido.
E em frente ela seguiu, com ou sem sentido.
E as pessoas começaram a vir, mas agora elas não iam mais embora. Não havia mais negocinhos a serem pegos ou esquecidos. Elas entravam pelas janelas, pelo vitrô, desciam de rapel pelo sótão, chegavam cavalgando estranhas montarias. Grandes aves coloridas e répteis em chamas, agora ocupavam o escritório, o corredor e provavelmente o resto da casa.
O solo se abriu, e na cadeira oposta a Abo sentou-se o próprio conceito de uma quinta estação do ano (aquela que ficava entre o inverno e a primavera, há muito tempo esquecida), e ao lado prostrou-se de pé, em carne e osso, o sentimento de “estar com tanta fome que perdemos a fome”.
Todos estavam atentos. Todos esperavam por aquela história magnífica que, cedo ou tarde, sairia da cabeça de Abo, e finalmente decepcionaria ou marcaria uma nova era mundial de escrita criativa.
Um novo tempo, um novo conceito de prosa para levá-lo ao êxtase que só, apenas e MAIS NADA além do reconhecimento e adoração de um público poderiam prover.
Ele digitava, e os gatos falavam. Ele terminava um novo parágrafo, e as ondas gravitacionais reverberavam sistema solar afora, atingindo mentes e percepções dos confins da galáxia, espaços, tempos e espaços-tempo jamais vistos.
“Era muito poderoso. A fábrica da realidade começava a se partir”, ele escrevia.
- É muito poderoso! A fábrica da realidade está se partindo! - Disse o rei Ludwig I da Baviera, que reinou de 1825 até 1848.
- Eu acabei de escrever isso! - Disse Abo, em desespero.
“Mas era tarde demais!”, escreveu.
- É tarde demais! - Disse o Gato.
- Parem com isso! - Abo se irritava, sem parar de escrever. - Calem a boca todos vocês!
As luzes explodiram e o alarme de incêndio disparou em um discurso dialético sobre os impostos federais. O fim estava próximo.
- Estou quase acabando. - Abo percebia a tensão no escritório. Ele mordia a ponta da língua: concentração total! Abo tinha apenas uma chance de atingir o seu público-alvo, e não poderia errar. - Quase lá…
Os espíritos estavam em agonia, e a própria agonia de suas lamentações alimentava o quarto fio dimensional do mundo entre os mundos.
- Você precisa acabar com isso, Abo! MIAU!
- Quase… lá… Gato… aguente… firme…
“BOOM!”
Silêncio. Escuridão. Vazio. Nada.
A chave de energia havia caído. Maldito disjuntor velho, pensou Abo.
Mas não importava. O notebook funcionava à bateria, e bastou acionar a energia outra vez para tudo voltar ao normal.
Tudo normal. Tão quieto… tão deliciosamente terminado. Era esse o sentimento de escrever uma história incrível. Agora, Abo sabia exatamente o que fazer, e desta vez, de fato (DE FATO), não haveria nada capaz de distraí-lo.
Postou sua história no Wattpad e, um mês depois, já tinha 3 likes.
Sucesso!