Casebre dos Souza, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1864. Em uma noite de inverno.
Era outubro, o frio invadia as frestas da janela de madeira gasta, entravam por baixo da porta velha. Senti um calafrio percorrer minha espinha nua por baixo da camisola, sentindo a sensação ruim dos músculos se contraindo enquanto eu pegava meu cobertor puído na tentativa de me esconder, tentando dormir enquanto o resto da vela que me iluminava tentava me aquecer.
Naquele casebre abandonada do meu avô, eu estava morando há quase 10 anos, eu era a última descendente dele. Todos que vieram comigo, estão agora enterrados atrás da casa, cercados pela névoa de uma morte misteriosa, com as cruzes mostrando que foram enterrados de forma cristã.
Tudo começou com mamãe, que de repente, caiu da escada e quebrou o pescoço, depois papai, que morreu dormindo, e apareceu com marcas horrendas no pescoço, sem nem os médicos entenderem como aquilo poderia ter acontecido. E por último, meu noivo, que se enforcou, dois dias antes do nosso casamento.
Tentei racionalizar, pensei ser apenas azar, castigo por não me confessar... Pensei que não era boa o bastante, que era uma provação e que no fim, tudo ficaria bem se eu rezasse o suficiente.
Admito que tentei sair daqui, mas algo me prende, como se houvesse grilhões de ferro sobre meus pés, sobre minhas mãos... O que havia neste fim de mundo que me mantém? Sequer era uma casa bonita, não havia uma única boa lembrança.
Apenas cheiro de morte e mofo, ou então o cheiro de café colhido pelos escravos, que cheiravam a suor e sangue.
No meio da penumbra, de repente, ouvi um barulho, um estalar na madeira de assoalho.
_ Mucama? És tu?
As palavras foram para o vento, nada respondeu, fiz o sinal da cruz sem saber no que iria dar, nunca acreditei em fantasmas. Mesmo tremendo, ninguém me respondera. Deus está comigo, não está?
E então, uma batida na porta velha...
Toc, toc, toc..
O relógio bateu meia noite, como nunca havia acontecido. Mas como?
E então, a vela se apagou.
Me agarrei a cruz pendurada em meu peito.
_ Senhor... tenha piedade de mim. _ murmurei, sentindo o corpo gelar.
_ Se for escravo, se identifica, imediatamente! _ ameacei.
A porta se abriu num rangido, sabia que algo me encarava na soleira daquela porta. Me ergui, ficando sentada na cama, tremendo dos pés a cabeça, os cabelos todos em pé.
_ Não é ser humano que fala, menina! _ a voz rouca disse, baixo.
_ E então é a morte? Você veio me levar, coisa ruim?! _ gritei, morta de medo.
Ele apenas riu, alto e estridente, antes de caminhar até a minha cama, e acariciar meu cabelo com suas mãos frias. Me encolhi, já sentindo as lágrimas inundando os olhos.
_ Não, netinha. Vim te dar um aviso.
Agora eu ouvi bem, a voz... Era de vovô, mas não podia ser!
_ Qual o aviso? _ eu perguntava, me afastando daquele que dizia ser meu vovô querido.
Ele respirava fundo, seu hálito ainda cheirava tabaco e cachaça, como nos tempos em que aqui vivia.
_ Alguém precisa pagar pelo sangue que eu derramei... Há muito tempo atrás. Prometi ao diabo que se morresse em paz, ele podia levar minha filha, meu genro, e o filho deles, no caso, a filha. Afinal, você também faz parte disso.
Algo sussurrou em minha mente, era a voz dele que entrou em minha mente, e dizia:
Você viu e apreciou a crueldade com que tratei aqueles homens que no meu cafezal trabalharam...
_ Eles eram apenas escravos... _ murmurei, sentindo o gosto salgado do meu choro, e a boca trêmula. _ Deus não deixaria eu me ferir, o senhor sempre disse que Deus nos protegia!
_ Deus nos abandonou, como merecemos... _ ele disse, e então senti sua presença sumir.
Ouvi passos, 10, 20, 50 de uma vez.
O batuque, o bradar de mil trovões, o cheiro de sangue e suor, o barulho de mar de onde eles vieram contra a vontade...
E então, gritos de dor, de guerra, de ódio, promessas e vinganças em minha direção. Chamavam meu nome.
_ Sinhá Flor, Sinhá Flor! Peguem Sinhá Flor! _ as vozes reverberavam.
E então, de repente, como mágica, senti as mãos deles me tocarem. Senti toda a dor deles, a carne dilascerada, o fogo sobre as entranhas, as lágrimas com gosto de sangue, a violação, a humilhação, o desespero e a súplica, de uma só vez. Era como o inferno. Pior que o inferno! Deus, onde estás que não me respondes?
Deus me odiava, agora eu tinha certeza.
Gritei, até ficar rouca e sem voz, a camisola já ensopada de suor, e urina que veio com o medo e a dor excessiva que parecia tão real, eu me debatia, ao mesmo tempo que tudo acontecia, nada acontecia, os minutos pareciam horas!
Tudo doía, a alma, o corpo, os ossos e tudo.
_ Socorro! Socorro! _ eu dizia sufocada, enquanto as almas daqueles pobres diabos me cobravam o preço inevitável.
Eu não suportava mais. Eu vi aquilo por anos, como pude pensar que não sentiam dor? Eles eram gente, mesmo quando me ensinaram que não. E eles estavam tendo a sua vingança.
Era a cobrança que eu merecia, mamãe merecia, papai merecia, até meu noivo, teve sua vez.
Quase sem força nenhuma, tateei e peguei a arma no criado mudo, restava apenas uma bala, sem pensar atirei em meu peito. Onde estava a cruz de Deus.
Ele também sofria ao ver o povo sofrer, já que o povo dele, também fora escravizado...
A dor foi rápida, e o sofrimento finalmente acabou.
Não havia mais descendentes da família Souza. Flor Souza estava morta. Ensanguentada em sua cama, quem visse, acharia que eu, a pobre, se matou após perder toda a tristeza de estar só.
A promessa foi cumprida.
Eu entendia agora, sendo arrastada limbo abaixo, quando via os negros atiravam-se contra as pedras e contra os rios na tentativa de morrer.
A morte é melhor que a escravidão.
A morte é melhor que o sofrimento eterno de não ser livre.