“E as trevas, a decadência e a morte vermelha detinham domínio ilimitado sobre todos.”
— Edgar Allan Poe
Acordo sentindo o calor do sol matinal no meu rosto. Fecho as cortinas. Falo alto para que o equipamento eletrônico possa captar a minha voz. “Desligar alarme”.
Sento na cama e sinto os meus pés no tecido macio do tapete; as texturas me ajudam a localizar melhor os cômodos, principalmente por ser uma casa nova. Ando até o banheiro e lavo o rosto. Quando caminho em direção à porta, sinto algo tocar o meu ombro direito. Viro assustada para trás e estico os meus braços em todas as direções, mas não há nada ali. O toque estridente da campainha me faz voltar. Respiro fundo e vou em direção à escada o mais rápido que posso. Desço os degraus e caminho em direção à sala de estar. Abro a porta e espero alguém falar, mas não sinto a presença de ninguém no local. Dou um passo para frente e os meus pés esbarram em algo sólido. Desço a minha mão até o objeto e percebo que é uma caixa. Balanço e algo se move. Arranco as fitas ao redor da caixa e abro. Levo a minha mão até a caixa e puxo um objeto. Com as mãos consigo identificar uma máscara. Coloco novamente na caixa e deixo no canto da sala. Deve ter sido engano.
Dia 15
“Tempo chuvoso nos próximos 5 dias, não é recomendado sair de casa”, diz a voz masculina incrivelmente humana que chega aos meus ouvidos. Desço as escadas o mais rápido possível, caminho até a cozinha apertada e abro a grande geladeira para beber um copo de água. Escuto um trovão ressoar, um som tão forte que sinto o chão tremer sob os meus pés descalços.
— Ligar aquecedor — falo alto o suficiente para ser escutada. Mas, ao invés do calor, a casa começa a ficar mais fria. Como ainda não conheço o espaço suficiente, tateio até a sala de estar. Deito no sofá tentando me aquecer e fecho os olhos.
Caio assustada do sofá, o barulho da televisão me assusta. Apalpo ao meu redor em busca do controle remoto, mas não encontro. Ando por toda a sala. Enquanto isso, o que parece ser um filme continua a ser exibido em um volume totalmente incômodo.
"E onde você está?” uma voz feminina parece perguntar. “Na varanda da frente”, outra voz responde. Novamente me assusto, não com o volume da televisão, mas com batidas na porta da frente e toques frenéticos na campainha. Mas quem poderia ser? Está chovendo torrencialmente.
Começo a me mover em curtos passos até a porta. De repente, a campainha para de tocar, mas as batidas na porta se intensificam. Coloco a minha mão na maçaneta, mas antes que eu pense em girá-la, a voz ressoa pela casa: “A televisão será desligada em 5 segundos”.
5, 4, 3, 2, 1. A casa submerge no silêncio. Solto a maçaneta e, ao me afastar da entrada, tropeço, caindo de costas no chão de madeira.
Dia 15
Eu não liguei a televisão, eu não pedi para desligar, eu não liguei, eu não desliguei, 5, 4, 3, 2, 1. Repito mentalmente o que aconteceu há algumas horas. Eu não desliguei, eu não liguei. Sinto uma brisa fria no meu corpo. Vou em direção à janela do quarto e, ao invés de tocar no vidro frio, respingos de chuva caem no meu rosto.
"Fechar janela", digo o comando. “A janela será fechada em 5 segundos”. “Fechar janela agora”, falo gritando. 3, 2. “FECHAR JANELA AGORA”, grito, mas a voz quase humana fecha após os 5 segundos. “Janela fechada”.
Dia XX
Não dormi, na verdade, não durmo há dias, apenas fecho os olhos. Abro os olhos e permaneço deitada, mas sinto uma presença, algo perto de mim e parece estar chegando ainda mais próximo. Ainda imóvel, sinto uma respiração lenta e pesada perto da cama. Por instinto, jogo os meus braços ao redor, tentando afastar o que quer que seja, mas eu sei que é impossível ter mais alguém aqui.
Dou um sobressalto quando ouço a voz do que deveria ser uma assistente virtual, a voz ecoa ao lado da cama. “Bom dia. A previsão para hoje é de -9,5°C”. Eu não lembro de ter perguntado sobre isso. “Notícias atualizadas: corpos são encontrados mutilados em córrego, alguns estão sem membros…” A voz soa tão baixa e fria que parece humana. “Desligar”, falo. “Todas as vítimas são mulheres, a polícia afirma que os olhos podem ter sido arrancados com elas ainda vivas”. “DESLIGAR”.
Dia XX
A minha cabeça se volta rapidamente para cima, estou ouvindo o que parecem passos, primeiro subindo os degraus. Agora, parecem ir em direção ao quarto à esquerda, pelo pequeno corredor. Ouço o clique que a porta faz ao abrir e, então, algo está no meu quarto. Os passos ficam mais leves, mas ainda consigo ouvir.
Faço algo que nunca precisei fazer: em passos largos, vou em direção à parede, deslizo as minhas mãos no concreto frio até encontrar o interruptor. Passo as mãos por cima e percebo que a luz está ligada.
Os passos voltam a soar nos meus ouvidos, a porta é aberta e os passos tornam-se rápidos em direção à escada. Tento correr até a mesa, mas escorrego no piso de madeira e caio de costas. Sinto que algo me observa e tento impulsionar meu corpo para levantar, mas as minhas pernas cedem. Devagar, apoio o meu cotovelo direito no chão e consigo firmar o meu corpo. Levanto e tento não virar a cabeça em direção à escada. Sento na cadeira com a sensação de algo atrás de mim e continuo a comer.
Dia XX
Em frente à janela de vidro, escuto o som da chuva lá fora. Apesar da cortina pesada e do vidro, é possível ouvir se eu ficar bem perto. Eu estou sozinha, pelo menos agora. O smartphone em minha mão parece diferente. É o mesmo modelo, mas eu sei que não é o meu. Jogo o aparelho no sofá e vou até a cozinha. Passo a mão no interruptor. As luzes continuam ligadas, eu não imaginei isso.
O barulho de algo caindo lá em cima me assusta, é a minha chance. Corro até a porta da entrada, levo a minha mão à maçaneta, mas não abre. Então, outro barulho interrompe a minha tentativa. Volto a correr em direção à escada, subo e entro no meu quarto. A adrenalina em meu corpo, a respiração rápida. Sem pensar, abro a gaveta da escrivaninha e tiro uma chave, mas outro barulho irrompe perto de mim, uma respiração pesada e gelada. Tudo silencia e fico parada por alguns segundos. Então, movo as minhas pernas e me lanço em direção à escada, meu corpo rola nos degraus de concreto e percebo alguém correndo atrás de mim. Levanto rápido e alcanço a porta, coloco a chave na fechadura e ela abre. Passo pela entrada e chego do lado de fora.
Sinto a calçada de concreto sob os meus pés descalços. Viro a cabeça para todos os lados, mas o único som que escuto é da chuva que cai em mim, nenhuma voz, nenhum som de carro. Meu corpo começa a tremer.
Dou mais um passo e não percebo que a calçada tinha terminado. Caio com o rosto no que parece ser o asfalto, sinto um gosto metálico na minha boca, começo a tossir e tento apoiar as duas mãos no chão enquanto levanto, mas elas cedem e deixo a minha cabeça cair novamente, uma dor lancinante surge, sinto o meu corpo adormecer, as gotículas continuam a cair e antes que eu possa fazer algo, sinto algo agarrar os meus calcanhares, sou puxada e novamente a minha cabeça bate, agora na calçada. Continuo a ser arrastada, sinto as elevações dos pequenos degraus perto da entrada da casa. Tento gritar, mas parece não sair nenhuma voz, ouço apenas um gorgolejar quando abro a boca e o gosto metálico se intensifica. Sangue.
Enquanto sou arrastada, ouço uma voz tão humana quanto antes: "Nas próximas 24 horas não saia de casa".
Agora o meu corpo está sob o piso de madeira, a porta é fechada em um baque surdo, não ouço nem sinto mais a chuva. Tento falar, gritar e dizer os comandos "DESLIGAR", mas a minha voz falha e antes de ficar tudo escuro, sinto dedos afundando em meu pescoço, estico as minhas mãos e toco em algo, parece um plástico rígido com dois buracos no que deveria ser os olhos.