Gabriel estava transtornado. Virava e revirava na cama. Suava frio. Tinha os olhos fechados com força o suficiente para fazer doer os músculos da testa.
Jack não gostava de quando ele ficava assim. O namorado tinha muitos pesadelos e ele se sentia inútil e impotente sem poder fazer nada sobre isso. Mesmo assim, tentava uma vez ou outra tentar.
Tirou a máscara de dormir, sentou na cama e ligou a luz. Gabriel se arrepiou com o barulho do interruptor.
— Amor… — Encostou suavemente no tronco alheio e balançou de levinho. — Você quer conversar?
A pergunta era vaga, mas Gabriel entendia perfeitamente. A palavra pesadelo era proibida naquele quarto. Porém, daquela vez, era outra coisa. Sentiu faltar um pouco de ar no pulmão e um terrível aperto no peito. Depois de um tempo, que Jack sabia bem esperar, conseguiu murmurar:
— Não foi um… sonho.
A resposta não satisfez Jack, que ficou mais inquieto depois disso. Levantou-se da cama e calçou as pantufas, se dirigindo até à porta.
— Quer um copo d’água?
— Não… Não me deixa sozinho…
Gabriel cobriu a cabeça com o edredom. Jack franziu o cenho, o coração acelerando um pouco. Ele estava pior do que o normal. Se aquilo não havia sido um pesadelo, o que poderia ser?
— Gabe… — Sentou no pé da cama. — O que aconteceu?
Os olhos dele marejaram, mas ele não ousou abrir para deixar as lágrimas rolarem. Ele soltou um grunhido, tentando controlar a própria garganta para falar. Era muito difícil, ela já ardia dos gritos que ele sufocava.
— Não posso dizer.
Jack o encarou,
— Gabe… Você sabe que pode me contar tudo.
Ele não podia.
— Não quero dizer.
— Gabe, eu preciso saber para te ajudar…
Não obteve resposta, o namorado preferiu se esconder ainda mais dentro do edredom, se apertando mais em posição fetal.
— Gabriel…
— Você não pode me ajudar! — Gabriel se levantou de supetão, alterando totalmente o tom de voz e abrindo os olhos sem perceber, olhando fundo nos olhos de Jack.
No entanto, assim que percebeu que abriu os olhos, o desespero consumiu sua alma. Ali estava, novamente, no canto de sua visão, a máscara que lhe tirava a paz e o sono.
O coração acelerou, a cabeça rodou, a garganta ardeu com o grito que ele não deu. A figura ficou visível apenas pelos segundos que ele abriu os olhos, mas mesmo que ele tenha fechado imediatamente que percebeu seu erro, saber que ela ainda estava ali era o suficiente para comprovar sua ruína.
Enfiou-se de novo no edredom, fungando muito forte sem conseguir chorar. Nessa hora, Jack também estava desesperado.
— O que foi? O que aconteceu? Está tudo bem?
Doía profundamente no coração e nas costelas de Gabriel não poder falar nada. Se ele contasse também seria o fim de Jack.
Passaram-se alguns minutos onde Gabriel tentava controlar sua crise e Jack estava prestes a ter uma. Quando conseguia respirar com um pouco mais de facilidade, Gabe soltou:
— Não posso te dizer, senão irá atrás de você.
Isso foi o suficiente para Gabriel sentir que Jack já estava em perigo. No entanto, não faltava o detalhe principal. Desde que ele não soubesse sobre… aquilo, ele estaria seguro. Pelo menos assim esperava Gabriel.
— O que vai vir atrás de mim, Gabe?
Mordeu a língua. Quase falou por impulso. Talvez fosse parte da maldição.
— Nada.
Jack suspirou frustrado. Aquilo já estava o irritando. Pensou que poderia ser um episódio de paranoia, que Gabriel não devia estar dormindo direito e assistindo filmes de terror demais.
Aquele hábito, ah, aquele maldito hábito de Gabriel. Ele sempre dizia que era uma forma de limpar a cabeça dos pesadelos, que tudo o que ele sonhava era muito pior do que qualquer filme que havia visto. Jack sempre se preocupava, tinha medo que aquilo acabasse piorando seus sonhos, mas ele nunca o ouvia.
Talvez uma vez na vida Jack estivesse certo, de fato. Não, não havia sido um filme qualquer. Havia sido uma fita k7 estranha que ele achou jogada num armário assim que se mudaram para aquele apartamento. Uma fita crepe já muito envelhecida e que não se colava mais direito anunciava Máscara branca como título. Era um curta caseiro de terror, onde algum adulto vestido com um lençol e uma máscara branca sem muita feição, apenas dois buracos pequenos nos olhos e uma boca sem expressão, corria atrás de uma criança. Nos créditos, uma cartolina dizia que era uma encenação de uma antiga lenda. Nada demais, se ele não tivesse pesquisado sobre na internet.
Não achou quase nada, além de um vídeo meio obscuro. Um canal de terror contava sobre uma lenda de uma máscara branca, exatamente como aquela do vídeo, mas que brilhava, que começava a aparecer na visão da pessoa que ficava sabendo sobre a lenda. Segundo ele, ninguém escapava da maldição e uma das únicas maneiras de tentar se livrar da visão era contar sobre a lenda para mais alguém. Não era certo que você pararia de ver a máscara, mas ela passaria a assombrar também a outra pessoa e talvez deixaria você de lado.
O vídeo era longo e Gabriel sentiu um sono profundo enquanto assistia. Não terminou de ver, porque os detalhes de supostas vítimas, a paranoia, os relatos, haviam o deixado mal. Foi fazer outra coisa qualquer, sem tentar ligar muito para aquilo e afastar aquelas coisas da cabeça.
Quando percebeu, porém, a máscara oval, branca e brilhante, não nítida, mas também não muito embaçada, estava em sua visão, como as luzes brilhantes de quando se encara algo muito claro por algum tempo. Não importava a direção em que olhasse, o quanto limpasse os olhos ou se ficasse com eles fechados por um tempo, ela sempre voltava quando ele abria os olhos.
Pensou que podia ser coisa de sua cabeça e tentou seguir a rotina normalmente, mas não conseguia focar em nada. Em algum momento, sua cabeça voltava a perceber a anomalia presente na visão. O coração voltava a disparar, o pânico voltava a lhe tomar. Desde então, estava deitado do jeito que Jack o encontrou quando voltou para casa.
— Olha, Gabe, eu preciso saber o que está acontecendo para ajudar você e…
— Você não pode me ajudar. Ninguém escapa da maldição.
Jack piscou, incrédulo.
— Que maldição?
— A Máscara branca.
Gabriel mordeu a língua depois de dizer. Não devia ter dito. Não devia ter falado nada. Devia ter ficado quieto e não respondido nada do que Jack perguntou. Agora, havia o condenado a… sabe deus o quê — ele não havia terminado o vídeo para saber como aquilo terminava.
— Hã? Nunca ouvi falar disso.
O tom de Jack era confuso, mas parecia calmo. Gabriel se levantou devagar, sentando na cama e cruzando as pernas. Mantinha os olhos fechados. Agora, ele já havia estragado tudo. O vídeo dizia que apenas o nome e o fato de ela ir atrás do próximo já era o suficiente para ela perseguir mais alguém. Se Jack soubesse mais, talvez pudesse ser mais corajoso que ele e achar alguma saída.
— A Máscara branca persegue aqueles que conhecem sua lenda. Basta saber que ela existe, que ela vai atrás de quem conhece, e em algum momento ela passa a aparecer em sua visão. Ela vem dos cantos, aparece em sua visão periférica. É branca e brilhante como uma estrela no céu escuro e limpo. Ela aparece toda vez que você abre os olhos. A única chance de parar de vê-la é contar para outra pessoa, mas ela pode escolher ficar.
Gabriel queria chorar de novo, mas segurou.
— Você não devia ter me perguntado, Jack. Eu estava tentando te proteger e…
Jack tomou as mãos dele com calma, o abraçou por longos segundos e depois beijou sua testa.
— Está tudo bem, Gabe. Se você me contou, ela deve ter ido embora, não?
Gabriel engoliu em seco. E se ela ainda estivesse lá?
Com medo e tremendo, ele ousou abrir um olho. E nada. Limpo. Nada branco além da lâmpada do quarto.
Abriu o outro. Olhou para um canto, para o outro. Respirava fundo, o coração batia feito tambor. Jack segurou seus ombros, o fazendo focar a visão em seus olhos e acalmar a respiração.
— Ela se foi.
— Se foi?
— Sim.
Jack sorriu, doce.
— Então está tudo bem. Vamos dormir.
Esgueirou-se para sua parte da cama e deitou.
— Mas… Jack, agora você…
— Eu estou bem, Gabe. Acho que você deve estar paranoico. Talvez estivesse vendo a máscara porque anda tendo muitos sonhos e dormindo pouco, então estava vendo coisas.
Gabriel levou a mão até a cabeça. A testa latejava. Ele suspirou, tentando pensar com calma pela primeira vez em muitas horas.
Desde a semana passada estava dormindo picado, acordando de tempos em tempos e tendo pesadelos terríveis, um pior que o outro. Talvez o medo de dormir o tivesse deixado meio… paranoico. Talvez fosse coisa de sua cabeça. Mas isso era um talvez.
— Mas e se não for? E se… e se você também ver?
— Vamos saber disso amanhã de manhã. — Virou-se para ele. — Agora que você não está vendo mais nada, vai conseguir dormir mais tranquilo sabendo que não era nada disso. Você vai ver, posso até apostar, porque sei que eu vou ganhar.
Gabriel soltou um riso fraco. Jack era de fato seu anjo da guarda.
Fechou os olhos, finalmente de maneira leve e não forçada, caindo em sono profundo logo em seguida. Gabriel não teve sonhos aquela noite. Jack teve, muitos; mas não lembrou de nenhum.
Ao sentir o fiozinho de luz do sol burlando a cortina iluminar seu rosto, Jack sentou na cama, bocejou com força, abriu os braços se espreguiçando com todo o conforto. Tirou a máscara de dormir enquanto sorria vitorioso, pronto para encarar o namorado que o olhava preocupado, já desperto e segurando uma xícara de café ao lado da cama.
Antes que a língua afiada pudesse dizer qualquer palavra se referindo a uma suposta “vitória”, ele viu, com o canto do olho, o resquício esbranquiçado oval. O coração pareceu parar por um segundo. Ele piscou forte. Abriu os olhos de novo. Ali estava ela, ainda apenas uma ameaça branco-leite e forte como a luz de uma estrela.
Gabriel engoliu em seco, não sabendo como reagir além de travar no lugar prestes a entrar em estado de choque. Ninguém escapa da maldição.