Caminhando em direção ao barbeiro, pensando em que corte eu faria dessa vez, mas já sabendo que seria o mesmo de sempre, uma ideia me arrebatou em meio aos passos ligeiros pela calçada cheia de imperfeições e lixo no meio-fio. Um menino surgiu na minha mente, garoto pequeno, novo, pele clara, cabelo enrolado, feito o meu. Aquele era Arthur, tinha nome e sobrenome, por mais que eu não soubesse ao certo qual seria esse ultimo item em seu caso.
Arthur era um menino saudavel, comia bem toda a comida da marmita de isopor que sua mãe trazia com orgulho, devorava o arroz e feijão não tão bem temperados, mas soltinhos e prontos para o abate, como gostava de parafrasear o homem da televisão. Mas ele também só comia depois da sua irmã, Yasmim, assim mesmo, com Y e M no final. Nome bonito, pensava sua mãe, Arthur e Yasmim, nomes bons, nomes de gente.
Arthur amava brincar e sempre vivia com o seu uniforme branco e azul porque sabia que esse podia sujar sem muitas preocupações. Corria pra lá e pra cá, uma mancha azul e branca, ou branco e azul. Arthur antes queria ser rápido feito o Flash, pra poder deixar um rastro de raios nas ruas de São Paulo por onde passava, não queria poder se preocupar feito seu pai vivia preocupado.
Preocupado com o gás, a luz, o chuveiro, preocupado em como iria pagar Dona Marta que, de muito bom grado, ele pensava, os deixava morar naquele sobrado. Preocupações assim é coisa de adulto, não é coisa de criança, Arthur era criança, não um adulto. Mas também tinha suas preocupações, tinha várias, na verdade, muito mais do que uma criança comum deveria ter.
Arthur se preocupava com os lapis bem apontados que Yasmim levaria para a escola, se preocupava em ter folhas brancas para Yasmim poder desenhar nelas, se preocupava com o homem de uniforme aparecer pra, de novo, dar um esculacho no pai, foi assim que ele ouviu, esculacho, não sabia como se escrevia essa palavra, mas tinha medo dela.
Ele sabia escrever outras palavras como: Arroz, ABECEDÁRIO, Amor, Carro, Lápis, João (seu pai), Yasmim (sua irmã), Márcia (sua mãe) e, claro, o motivo de maior orgulho para a sua mãe, Arthur.
Arthur sabia escrever Arthur, assim mesmo, desse jeito, com A, R, T, H e U, e outro R. Escrevia seu nome com carvão no chão de concreto quando o homem apareceu e gritou, bravo, nervoso e de uniforme cor do concreto que Arthur desenhava. Moleque não pode fazer isso, ele disse, seu pai apareceu e pediu desculpas, mesmo grande e forte, seu pai parecia pequeno perto do moço. Foi grito, foi tapa, foi esculacho.
Nesse dia Arthur decidiu que não queria mais ser forte como o Flash, mas sim ser forte como o Super-Homem, para quando o homem aparecesse de novo, o homem do esculacho, ele não pudesse mais fazer aquilo com teu pai. Queria ser forte e dar segurança para seu pai, sua mãe e Yasmim, talvez assim eles não tivessem que se preocupar com Dona Marta, talvez assim o arroz e o feijão pudessem ser mais saborosos, talvez assim Yasmim também soubesse escrever seu nome. Talvez assim o mundo pudesse ser um lugar mais divertido para Arthur correr.
Eu pensei nisso, mas esqueci assim que sentei na cadeira do barbeiro Renato, fiz o corte e papariquei feito maritaca. Foi quando, muito depois do corte e bem mais longe da barbearia, que meu amigo Pedro, depois de ouvir tudo aquilo que agora te narrei e finalizei dizendo “E nunca mais pensei em Arthur”, me olhou nos olhos, entre as tragadas de cigarro, e disse: “Acho que ninguém nunca mais pensou em Arthur”.