A primeira – ou a última – coisa que me lembro, é de um deslizamento de neve colossal, que foi engolindo árvores, animais, colinas e consequentemente eu. Me recordo também de uma queda violenta, de uma dor excruciante e do escuro.
E do silêncio.
Dos borrões que consumiram meus pensamentos.
Talvez algo a ver com fogo e lágrimas – um sonho pesaroso.
No meio tempo entre a queda escura e o despertar da minha consciência, meus olhos foram perfurados pela luz do Sol, que queimava meu rosto. Logo acima de mim, um pequeno cervo pequeno pendia empalado por um grande galho pontudo.
Urrei de dor e de medo ao me deparar com a visão sangrenta.
Suas entranhas saíam para fora e o pobre animal ainda parecia se mexer.
Infelizmente, eu não estava na posição de ajudá-lo. Eu estava com uma sensação importante de que precisava sair dali o mais rápido possível, isso martelava minha mente.
Tentei me mexer de prontidão, mas estava colada ao chão.
Então percebi que havia caído perfeitamente de costas, como uma estrela do mar o que me fez lembrar de uma vez em que... Bom... Não me lembro onde ou quando, mas me recordo de uma criança caindo do telhado, colando a coluna no chão duro com a queda e depois disso... Suas pernas nunca mais funcionaram.
Essa memória me pareceu tão confusa que tive arrepios na nuca.
Mas parecia real, decidi confiar nela e na possibilidade de eu estar prestes a descobrir que meu fim fatídico era morrer ali, aleijada e bem embaixo de um cervo.
Olhei para frente e percebi que havia apenas um pouco de neve em cima de mim, eu não estava presa, afinal, então confiante eu respirei fundo.
Tentei me levantar, mas meus membros estavam dormentes e pesados, como se estivessem presos em blocos de gelo, foi quando o pânico tomou conta de mim e comecei a lutar para respirar em meio à imensidão branca e gélida que me cercava, com um frio que penetrava em meus ossos.
Desisti de tentar me levantar, respirei fundo mais uma vez.
Olhei para cima, para o pequeno cervo que lentamente ia desistindo de sobreviver - ele estava pior do que eu, mas eu não podia perder mais tempo.
“Estamos encurralados, amigo.” – pensei.
Mas não desisti de tentar.
A cada movimento que eu fazia, a dor aguda em minhas costelas me lembrava do impacto violento com a superfície gelada. Meus olhos foram tentando se ajustar à branquitude enevoada e aos poucos fui conseguindo distinguir as sombras e os contornos dos pinheiros ao meu redor.
“Respira, força, tenta de novo.” – uma voz surgiu dentro de meus pensamentos.
Obedeci.
Com muto esforço, empurrei a neve que me cobria e tentei me apoiar no chão. No entanto, meu corpo trêmulo e machucado recusou-se a se mover, então precisei continuar lutando contra a dor e a fraqueza.
Eu sentia cada movimento como se uma lâmina fina estivesse cortando minha pele, atravessando os músculos, roendo os ossos.
Respirei, inalei, exalei e mordi meus lábios que já estavam duros como pedra, eu não seria um cervo empalado.
Não hoje.
Com um pouco mais de esforço, finalmente, consegui me sentar e olhei para meu tornozelo esquerdo que parecia estar quebrado. Notei ainda que um sangue carmesim escorria de uma ferida aberta em minha testa.
Para piorar, meus cabelos enxarcados e emaranhados de neve, haviam congelado por sobre a ferida. Se tornaram um só.
Fiquei ansiosa pela dor futura que eu teria ao tratar esse ferimento, mas eu estava ali, sentada no meio da neve. Nada podia ser feito agora.
Testei meus membros, todos funcionando apesar da dor abissal - pelo menos isso.
Então fechei meus olhos por um momento, me concentrando na dor e no frio que me cercavam.
Respirando fundo mais uma vez, tentei me levantar novamente, foi aí que alcancei um galho e fui usando-o como apoio.
Arfei e urrei de dor tentando me levantar, contudo meus pés finalmente firmaram e consegui sair de minha cova.
Olhei pra cima de novo... Toda aquela neve... Impressionante e quase fatal!
Estimei ao menos vinte metros de queda, e por estar viva, me senti muito mais forte do que antes, quando estava imóvel embaixo do cobertor de gelo.
Prossegui, pouco a pouco.
Cada micro movimento era um esforço doloroso, mas eu sabia que precisava sair dali. Com os passos lentos e vacilantes, fui me afastando do local da avalanche e comecei a andar pela neve profunda.
Percebi que o caminho que eu precisava tomar - por ser o único - era íngreme e perigoso, com muitas rochas escorregadias e pedras soltas. A cada passo, a neve cedia sob meus pés, me fazendo escorregar.
Me forcei a continuar, enquanto isso, a lembrança do que aconteceu antes da avalanche foi começando a voltar para minha mente. No entanto, eu não podia me dar ao luxo de parar agora, precisava encontrar ajuda e descobrir o que havia acontecido.
A cada metro percorrido, sentia meus músculos e ossos implorando por descanso, mas me recusei a parar.
E continuei até escurecer, persisti até os uivos infestarem a floresta, prossegui vacilante, mas obstinada - até as estrelas desaparecerem do céu e a manhã viesse para me salvar da solidão.
Foi assim que alcancei os pés da montanha. Viva.
Eu estava ofegante, exausta, dolorida e congelada, mas aliviada por ter sobrevivido.
Olhei para trás e reparei meus passos na neve.
Algo me disse que deixar rastros era perigoso, aliás, o medo de estar em perigo me tomava desde que havia acordado, mas eu não sabia exatamente especificar qual era o meu medo.
Tentei me lembrar de como tudo aconteceu.
Mas nada veio, só a queda.
Eu estava fugindo ou tentando encontrar?
Talvez os dois.
Andei mais um pouco e a neve começou a ficar mais rala, fui caminhando lentamente até uma estrada de pedras, que me levaram a mais uma estrada íngreme, com montanhas altas ao redor.
Foi quando notei uma faixa azul brilhante ao longe...
Não sabia o que era, mas tive uma sensação estranha e emocionante dentro do peito.
Continuei caminhando e quanto mais me aproximava, mais a faixa azul se transformava em um vasto mar de água azul profunda e caudalosa.
“O mar negro esconde perigos e além dele, reina a morte...” – sussurrei para mim mesma, sem saber o porquê.
Flashs de cenas inexplicáveis começaram a aparecer no canto de meus pensamentos. Ignorei.
A este ponto, eu havia parado de andar.
Me deixei ficar maravilhada com a vista.
Nunca havia visto o mar aberto antes e... Pela primeira vez em minha vida, senti a beleza e a grandeza do oceano.
Percebi que não podia simplesmente ficar ali parada e decidi caminhar em direção à costa.
“O mar negro esconde perigos e além dele, reina a morte...” – veio de novo em minha língua, como se fosse inevitável.
“O que é isso?” – pensei enquanto minha cabeça começava a doer.
Não tinha tempo para alucinações, balancei a cabeça e foquei em descer a encosta rochosa, minhas pernas estavam tremendo de emoção, até que finalmente, cheguei à praia.
Fria, cinzenta, eterna.
Quilômetros e quilômetros de muitas águas se estendiam para além da minha visão.
Me aproximei da beira do mar e ondas tocaram minhas botas suavemente. O vento salgado soprou meus cabelos para o lado, deixando o cheiro curioso do oceano invadiu minhas narinas e consequentemente, restaurar meus pulmões.
Eu estava tão maravilhada, que neste momento me permiti caminhar pela praia por algum tempo, examinando as rochas e conchas espalhadas pela areia fina.
Foi quando notei, mais a frente, uma pequena balsa ancorada na costa e fiquei intrigada, pois notei que havia alguém ali.
Ajuda ou perigo?
Me dispus a descobrir e fui caminhando em direção à balsa.
- Bom dia madame. – um homem esguio, de testa vermelha disse logo que cheguei na balsa.
Me assustei e tremi, olhei para meus pés imediatamente. Por que fiz isso?
- Que frio está fazendo, não é? – ele se levantou de seu banco de metal e veio andando em minha direção, com suas botas que esguichavam.
Ele vestia calças e agasalhos pesados, tantos cachecóis que metade de seu rosto estava tampado.
- Você entende minha língua? – disse ele pausadamente.
Pela insistência, assenti com a cabeça.
Ele continuou se aproximando.
- Ah sim... Pelo jeito você machucou o tornozelo? – ele apontou para meus pés – Eu posso te ajudar, essa balsa leva para a cidade.
Eu havia passado por tanta coisa, que não tinha forças para falar ou olhar para o rosto dele diretamente, eu estava em posição de defesa, apenas observando.
Ele parou de falar e começou a me sondar.
- Você não parece bem... Sofreu um acidente? – ele disse com seriedade, se ajoelhando na minha frente e olhando bem dentro de meus olhos.
Fiz que sim com a cabeça.
- Uau... Você sabe falar? Me diz de onde veio... Posso pedir ajuda.
Me diz de onde veio...
Me diz de onde veio...
De onde veio.
De onde eu vim?
Um zumbido golpeou meus ouvidos e perdi o equilíbrio, caindo sentada.
- Cuidado! – ele agarrou meu braço esquerdo, como se isso fosse diminuir o impacto da queda e o impacto de não saber quem ao certo eu era... Ou... O que tinha acontecido antes.
Antes...
- Eu vou buscar uma bebida quente pra você! – ele se levantou num pulo e foi saltando até uma pequena casinha que ficava acoplada à balsa.
- Só um minuto! – ele gritou.
Era como se minha mente estivesse derretendo.
De onde?
De onde eu vim?
Olhei para trás... Apenas montanhas.
Comecei a me sentir tonta e cada vez mais confusa em meio a uma enxurrada de pensamentos luminescentes que pareciam vir de todos os lados, como um turbilhão caótico.
Árvores altas, fogueiras gigantes, casas antigas, cerca de madeira, carroças quebradas, cheiro de pão, rostos sem olhos e bocas – de quem eram? Rostos com olhos e bocas e expressões, que apavoram. Tudo ao mesmo tempo.
Fechei meus olhos, tentando me concentrar, mas a visão continuava a piscar em minha mente, como faísca de pedras.
Rápidas, brilhantes e perigosas.
Tudo parecia tão distante, como se tivesse acontecido com outra pessoa... Como se fosse um sonho.
Abri finalmente meus olhos e olhei ao redor, tentando me orientar.
O homem vinha correndo com uma caneca flamejante em mãos. Senti uma onda de pânico começar a tomar conta de todo o meu ser.
Tigelas de barro quentes, mesas fartas, poças de lama, risos altos e então silêncio e então fogo, por fim a queda de novo e de novo e de novo.
O homem à minha frente mexia a boca, mas eu não escutava nenhum som, ele colocou a caneca quente em minhas mãos e me queimei, mas a agarrei como se fosse meu próprio coração.
Olhei dentro.
Um caldo marrom e grosso com pedaços grandes de alguma coisa, carne talvez. Carne, gordura, nervos, fibras, ossos...
Celeiros, cavalos, ovelhas, galinhas, vacas mortas, a floresta de novo, uma grande construção vermelha, a queda, o cervo, uma silhueta escura que pendia, minha boca encostando em outra e olhos penetrantes...
O que será?
O zumbido começou a sumir...
Tentei me lembrar de onde estava e para onde estava indo, mas tudo o que conseguiu pensar foram pequenos flashes de meu passado – será que era meu?
Será que não era um pesadelo?
A sensação de desespero ia crescendo dentro de meu peito cada vez mais, como se eu estivesse perdendo uma identidade que eu nem sequer conhecia... E com isso, minha conexão com o mundo.
Senti novamente o vento salgado beijar minhas bochechas frias e acordei.
Muitas águas... Inspire, expire...
Me apoiei nos braços do homem, que me ajudou a levantar e respiramos fundo - os dois, tentando acalmar nossas mentes.
Eu sabia que precisava encontrar respostas urgentemente. Por isso, perdi o medo de falar.
Foi quando tive a sensação que foi a primeira vez na vida estava conhecendo esse sentimento...
Falar.
- Eu estou perdida. – foi o que consegui dizer com a voz trêmula e falha.
Então lentamente, a caneca quente caiu de minha mão, senti minha visão ficando turva e cada vez mais escura.
Embaixo das escadas, desfiles pomposos, correria noturna, fogo.
E tive a visão do céu.
Cortes profundos nas coxas, sangue pingando no chão, alguém batendo na porta, a queda de novo, e de novo e uma sombra lá em cima, acenando...
Minhas próximas sensações, eram de estar sendo levada... Para além.