"Um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível."
- Edgar Allan Poe
XX/10
02:30
Acordo ofegante e passo a mão sobre o meu rosto que está molhado e frio. Estico o meu braço direito para apalpar o outro lado da cama, mas não há nada nem ninguém lá.
Levanto e abro a porta do quarto, caminho sem fazer ruídos até a escada, consigo ver uma luz azulada no andar inferior, a televisão deve estar ligada. Desço silenciosamente os degraus da escada e antes de pisar no último o vejo sentado no sofá com as costas viradas na minha direção, a televisão exibe o noticiário da madrugada que emite mais uma atualização sobre o serial killer, ou como o apelidaram, Xujo. Eu ouvi alguém falar na fila do supermercado na semana passada que isso significa “quebra-cabeça” em algum idioma que eu não conheço.
Ainda não o encontraram. Olho novamente para a figura que mantém seus olhos fixos na tela e subo as escadas ainda com o corpo voltado para frente. O meu coração dispara, alcanço a porta do quarto e entro, deito na cama e fecho os meus olhos. Mas essa noite eu não irei dormir.
DOCES OU MORTES? XUJO, O ASSASSINO DO HALLOWEEN
"No início de outubro, mortes começaram a assolar a pequena e pacata cidade do Condado. O assassino do Halloween ronda as ruas escuras em buscar da sua próxima vítima. Já contabilizaram mais de oito mortes de autoria do serial killer. Testemunhas afirmam que se trata de um homem, com estatura mediana e que usa uma máscara branca de porcelana que cobre todo o rosto e um capuz preto, dificultando assim uma identificação mais precisa.
Os investigadores da delegacia de homicídios afirmam que estão averiguando se há câmeras que tenham captado imagens do assassino, mas até o momento a população padece com a ausência de informações.
O que aterroriza a população é o modo brutal e frio como as mortes ocorreram. Todos os corpos são desmembrados e ao lado é encontrada uma mensagem feita com colagens de revistas com a seguinte frase: junte as peças. Os membros dos corpos de três vítimas ainda não foram encontrados.
A polícia recomenda toque de recolher após 19h00. Parece que para esse Halloween teremos apenas travessuras.”.
XX/10
Desde a repercussão dos assassinatos ele acompanha cada notícia, cada nota que emitem sobre o assunto. O estranho é que eu me sinto cada dia mais nervosa. No pequeno armário amadeirado do banheiro pego a caixa com as pílulas que a minha médica receitou, ela disse que eu me sentirei menos agitada tomando uma diariamente ao acordar. Engulo quatro de uma só vez e as sinto rasgando a minha garganta.
No andar inferior, mais uma vez o vejo lendo notícia no tablet, na pequena mesa de centro da sala de estar, um quebra-cabeça inacabado foi deixado de lado, ele me olha de soslaio e sorri de canto, desliga a tela e se move até a cozinha, abre o armário de forma vagarosa e pega uma faca grande, caminha na minha direção e me abraça por trás, o meu corpo fica rígido, tento parecer impassível enquanto ele coloca a faca na minha mão e aponta para a bancada, vejo algumas frutas e lembro que as prometi cortar.
O meu corpo de move até lá e enquanto estou inclinada sobre a bancada cortando as frutas, ele coloca um prato de porcelana azul ao lado para que eu organize os pedaços. Os meus olhos se fecham involuntariamente e quando abro, os seus lábios se movem, mas eu não consigo ouvir nada. Parece que tudo está silencioso.
01:00
Um barulho estridente me faz saltar da cama. A madeira gelada sob meus pés me faz estremecer, olho para a cama e ela está estranhamente vazia. Isso faz o meu coração acelerar novamente, sinto a minha boca seca. A minha mente emite um alerta pedindo para eu voltar para cama e fechar os olhos. Mas eu não posso.
A minha mão esquerda vai instintivamente até a maçaneta, abro lentamente e aquele barulho que me fez acordar parece estar mais alto. Ele está vindo do sótão, volto a minha cabeça para cima, consigo ouvir os passos acima da minha cabeça, porém por alguns segundos tudo fica silencioso. Levo as minhas mãos até a boca e prendo a minha respiração, ando o mais rápido possível até o quarto e vou direto para a cama. Tento me acalmar, antes que ele descubra que estou desconfiando de algo. Eu preciso fazer algo. Talvez ele venha atrás de mim.
31/10
08:00
A casa está metodicamente silenciosa, sinto um braço em cima do meu corpo quando tento sair da cama. Consigo me desvencilhar e vou ao banheiro. As pílulas acabaram, mas hoje eu comprarei mais. Sinto-me mais lúcida, talvez eu estivesse apenas imaginando.
Desço até a cozinha e preparo o melhor café da manhã, enquanto ouço o noticiário na televisão, ao que parece o até então serial killer, Xujo, não foi mencionado, um suspiro de alívio invade o meu pulmão. Sorrio e desligo o aparelho.
Em uma bandeja de metal coloco o café da manhã e uma rosa quase seca que encontrei na janela da cozinha. Subo as escadas e antes de entrar no quarto olho para a entrada do sótão, até então era um escritório de um jornalista investigativo em ascensão.
Entro no quarto e coloco a bandeja no canto da cama. Eu o toco, as partes do corpo separadas, porém as coloquei juntas como um quebra-cabeça finalizado, mas a pele permanece inerte e fria, os olhos estão voltados para mim, ainda abertos. Caminho até o armário do banheiro e por trás do fundo falso, eu retiro a máscara de porcelana, gelada e rígida, parece combinar com o corpo. Antes de sair do banheiro olho para o meu reflexo, o meu corpo e a minha roupa antes branca está completamente vermelha, levo a ponta do meu dedo polegar até os lábios e tento sugar um pouco, mas já se formou uma crosta, apenas o cheiro metálico emana de mim.
Com a máscara em mãos, coloco-a sobre o rosto dele e penso que talvez eu devesse dar uma pausa. Esse é o momento perfeito para um bom recomeço. Parece que o meu Halloween será doce.
Três horas antes
Desço a escada e arrasto os meus passos até a cozinha, abro a geladeira e a luz da máquina preenche o cômodo escuro. Pego uma garrafa com água e bebo todo o conteúdo.
Antes de subir verifico todas as portas e janelas. Xujo ainda não foi capturado. Como jornalista, eu preciso encontrar o assassino, mas não temo a minha vida, mas sim a dela. Após verificar tudo retorno ao quarto, sinto o meu corpo pesado e uma letargia crescente. Os meus olhos logo se fecham quando deito ao lado dela.
A minha cabeça dói. Olho para o lado, mas ela não está, tento chamá-la, mas a minha boca não abre e agora percebo que os meus braços e pernas estão amarradas. A porta do banheiro se abre e uma figura mediana aparece com um capuz e uma máscara de porcelana. Eu preciso de ajuda! Tento gritar, forço a minha boca a abrir, mas percebo que ela foi costurada, uma dor lancinante percorre cada parte do meu corpo.
Xujo está me observando. Ele se abaixa e apanha um machado, levanta-o sobre a cabeça e abaixa, duas vezes. Quando ele retorna para me olhar vejo na sua mão uma das minhas pernas, o meu corpo entra em choque, a adrenalina diminui e começo a tremer. Ele retorna com o machado, levanta-o e agora mira no meu pescoço.