- Sente-se, fique à vontade. Quer um café? – o homem baixo de óculos fecha as persianas. Ele enche uma das xícaras e mantém a garrafa sobre a outra. Sempre inspirado para conversar, ansioso como um garotinho apaixonado.
O rapaz alto se acomoda na poltrona. Este é uma pintura renascentista: pura forma, cores e medida, destituído de expressão.
O rapaz ergue uma mão.
- Você sabe que não tomo café. É uma bebida impura. Preciso manter o meu corpo limpo.
- É claro, é claro...
O homem baixo se senta atrás da escrivaninha, seu sorriso como uma janela aberta para o sol. Mas não há sol diante dele. Não há vento, não há estrelas.
- Então, vamos começar...
- Eu fiz o que me pediu na sessão anterior. – o rapaz se adianta. Como de costume, seu olhar se prende no homem baixo e permanece imóvel.
- Você se olhou no espelhou e se avaliou.
- Sim. Foi o que pediu.
- Por quanto tempo?
- Um minuto e cinquenta e dois segundos. Foi o máximo que consegui.
- Por que apenas esse tempo?
- O espelho se quebrou.
O homem baixo ajeita os óculos e faz uma anotação em sua caderneta.
- O espelho se quebrou? Como?
- Ele... – o olhar do rapaz se vira por uma fração de segundo. – Ele tentou me dar um soco. O outro cara, do outro lado.
- Seu reflexo. Então, quebrou o espelho com um soco. – o homem baixo verificou as mãos do rapaz: sedosas como as de um pianista. – Não se machucou?
- Eu estava usando luvas.
Uma xícara subiu devagar até os lábios do homem baixo.
- Vamos voltar um pouco atrás. – deu um gole no café. – Um minuto e cinquenta segundos antes do soco. Quando você se olhava no espelho, como se sentiu?
Houve outro quase imperceptível desvio.
- Eu senti... injustiça. - os olhos voltam a se grudar quando o rapaz encontra a palavra. – Eu senti pena do outro cara. Uma desconfortável pena. E medo.
- Sentiu medo do seu reflexo?
- Não. Não, eu senti medo por ele. Por toda a bagunça onde teria de viver, pelo resto da vida. Então...
Mais anotações, e outro pequeno gole. – Então? Você se olhou nos olhos, como pedi?
- Sim. Doutor, já viu aquele olhar dos gatos, quando você vê um na rua e ele não vai com a sua cara, ou só quer que você vá embora para sempre?
O homem baixo lutou para não desviar seus olhos dos do rapaz. Aquelas esferas de vidro que ora nada causam, ora trazem bolhas no estômago.
- Eu conheço esse olhar dos gatos.
- Os gatos não são como os cães. Cães podem amar, e pouco mais que isso. No máximo serão violentos por amor ao dono ou ao território, mas não por ódio a algo.
O rapaz se levantou devagar. As esferas congeladas se aproximavam, e o homem baixo se segurava para não vacilar.
Não se pode vacilar ante um predador.
- Gatos sentem tanto amor intenso quanto ódio incontrolável. – o rapaz parou frente à janela e afastou ligeiramente a persiana. – Eles são muito humanos.
O homem baixo enfiou uma mão por baixo da escrivaninha, apalpando o botão de emergência.
- Sim, de certa forma o sistema de prazer sexual e instinto caçador dos felinos são como um único software com múltiplas funções...
Não era comum o sorriso vir à tona no rosto do rapaz alto. Ele sorria às vezes, o homem baixo havia notado em outras sessões. Porém, não era como quando seus pacientes com depressão sorriam, quando a terapia estava dando certo...
Quando o rapaz alto sorria, o significado era difícil de interpretar.
O rapaz alto soltou as persianas e voltou sua atenção ao homem baixo.
- Gostei. Gostei dessa analogia, “como um único software...” – deu dois passos em direção à escrivaninha. O sorriso não sumiu. – Você diria que o meu “software” está com defeito, doutor?
O homem baixo tomou uma pose profissional, ou pelo menos tentou.
- Eu não acho que você seja defeituoso. Na verdade, acredito que o que faz é exatamente o que o seu instinto demanda, dada as circunstâncias de sua infância.
A face do rapaz alto se transformou. A figura renascentista se distorceu, o nariz e testa formando relevos, afiando-se em uma expressão de fera.
- E o que eu faço, doutor?
- Eu não posso responder isso a você. - o homem baixo engoliu seco. Indicou a poltrona. - Por favor, sente-se.
O rosto da fera se desfez. O rapaz alto permaneceu impassível durante longos segundos. Então, voltou a se sentar.
- Quer saber o que eu vi no espelho, doutor?
As mãos do homem baixo estavam de volta à escrivaninha, fazendo anotações. Os olhos de vidro do rapaz também retornaram.
- Eu adoraria.
- Eu analisei o outro cara, mas ele era melhor do que eu. Ele me via mais do que eu o via. Eu vi as luvas ensanguentadas que vestia, mas ele viu o meu pecado. Eu vi seu avental impregnado de tripas e pele recém-esfolada, mas ele olhou dentro do vazio eterno em mim. Eu vi a mulher massacrada no chão atrás dele, e ele espreitou a morte em meu futuro. Eu vi o homem apavorado ao seu lado, amarrado, amordaçado e nu, empapado com o sangue da mulher...
O homem baixo bebericou o café.
- E o que o seu reflexo viu?
- Ele viu o machado na minha mão. Viu as gotas rubras que pingavam no chão... Então, deu um berro e me deu um soco.
O rapaz alto abria e fechava as mãos. Seus dentes rangiam, suas pálpebras tremiam. O homem baixo o via. O admirava.
- E o homem que estava amarrado? O que fez com ele?
Um novo sorriso se abre.
- Você é o psicólogo, doutor. Tente adivinhar.
O homem baixo fez as últimas anotações e bateu a ponta da caneta para pontuar o fim da sessão.
Não precisava pensar muito para adivinhar o destino do homem amarrado. Já fazia sessões com o rapaz há tempo suficiente para saber que mais um casal desaparecido seria manchete no jornal da cidade.
- Até mês que vem, Damien.
- Até a próxima, doutor.