Poderia dizer que era uma noite monótona como qualquer outra, naquela cidadezinha do interior, mas, para ser uma noite monótona como qualquer outra, ainda deveria haver algum sinal de vida, algum barulho pelas ruas, algum telhado assobiando com a passagem do vento, algum caminhão passando na rodovia, mas não.
Tudo estava estranhamente quieto.
Foi quando, por volta das 20h45, o telefone rouco e descascado do departamento de crimes da delegacia local, ressoou alto e claro pela primeira vez em muito tempo.
Todos os agentes, com suas barrigas caindo por sobre seus cinturões, deram um uníssono pulo de suas cadeiras, foi como se tivessem despertado de um encanto do sono.
A novata atendeu ao telefone, pelo fato da secretária já ter ido embora, foi gaguejando um “D-delegacia, boa noite?”, e tudo o que ouviu foi um suspiro longo... Grosseiro, ecoando uma sonoridade cáustica.
Stefanie, a escrivã novata esbanjou sua expressão de mais puro asco, pigarreou e falou com firmeza “Alô! Você ligou para a delegacia, aqui é a Stefanie, posso ajudar?”, a mulher disse grosseiramente, tentando controlar seu medo, no entanto, acabou por soar infantil e despreparada ao revelar seu primeiro nome.
Agora o suspiro se tornará bruto, pigarrento, seguido de fungadas e um barulho que parecia um ronronar adoecido. “Alô?!”, gritou perdendo a paciência, para em seguida cravar o telefone no gancho.
Ela não tinha mais paciência para esses trotes, logo passou a seu superior, Anônimo(a) - que ocupava o cargo de Chefe do Departamento de Investigação - o ocorrido. O rastreador indicava que a ligação havia sido feita próxima à Rodovia M-768, no KM 180, talvez, no sentido leste...
Anônimo(a) desacreditou, não costumava haver movimento ou sinal por aquelas bandas, apesar de ser uma rodovia, era como se fosse um caminho abandonado, não havia câmeras, antenas, comércio e nada do tipo por perto, apenas matagal.
Se não fosse por este fato sutil, teria deixado esta passar, mas percebia no rosto da novata, que havia bem mais que um barulho estranho do outro lado da linha.
O investigador Mori, e o Perito Santos estavam cobrindo aquele horário, junto com Anônimo(a) e a Escrivã novata, Stefanie Torres, então, decidiram ir juntos averiguar este ocorrido, já que nada mais interessante estava acontecendo, de qualquer forma. Era sempre bom fazer algo novo, nem que fosse conferir se a ligação era um trote.
Chegando próximo ao local, tudo que eles podiam ver era a neblina, sem mais delongas, desceram de suas viaturas e começaram a sondar o local.
O barulho de suas botas de couro e o zumbido frenético e magnético de suas lanternas gigantes, bem como o tilintar de suas armas carregadas em seus cinturões, pareciam ser o único tipo de barulho no local. Com suas posturas de panteras, decidiram se separar para investigar melhor.
Cada qual foi andando ao longo da rodovia solitária, só era possível notar de longe a luz clara de suas lanternas, o que os fazia parecer com vagalumes. Torres ia andando mais a frente, pois era de fato – ou fingia muito bem ser – uma mulher com sangue no olho.
Foi quando seus pés esbarraram em algo.
Ela se assustou e deu um pulo, seguido de um gritinho constrangedor e feminino, mas logo se recompôs... Iluminou melhor o asfalto e quis chorar quando viu.
Um gato morto, estirado bem no meio da rua.
Mas este não era um gato atropelado, ou morto de cansaço... O bicho era grande, com uma pelagem longa e mesclada de preto e caramelo, ela se abaixou próximo ao corpo para observar melhor os detalhes, já fazendo anotações:
1º - O felino aparenta estar morto há pelo menos três horas;
2º - Há um corte profundo do rabo até o pescoço, fechado logo em seguida com pontos grosseiros;
3º Os pontos ainda sangram.
Santos logo se aproximou da cena e fotografou o que encontrou, cobriu o felino com um plástico transparente, deixou ao seu lado uma placa sinalizando e pensou que talvez tivesse ligado para avisar do gato. Mas não, não faria sentido. Santos notou que mais a frente havia um rastro de sangue que saía do matagal e vinha até o corpo do gato. Com certeza, ele foi arrastado... Mas pelo o quê?
Iluminou a estrada, nada. Iluminou o gato, nada. Iluminou o mato, nada. Não havia sinal de pegadas, nem do gato, nem de humanos, muito menos, rastros de pneu.
Mori, se juntou a seus companheiros, da mesma forma que Anônimo(a), estavam os quatro juntos agora e, foram caminhando até o mato, logo encontraram uma faca com sangue, que estava cravada à um pedaço de papel antigo, porém grosso.
O papel estava empapado de sangue, Santos fotografou de todos os ângulos, enquanto Mori retirava a faca lentamente e com cuidado. Logo todos puderam ver o que estava escrito:
E o que isso significa? Mori, Torres e Santos pensaram.
“Eu não quero viver minha vida de novo”, traduziu Anônimo(a), todos ficaram em silêncio, este silêncio queimava como brasa ardente, todos queriam gritar e sair correndo, mas tinham de manter suas poses de guarda-roupa e continuar investigando até o final.
“Parece um trote...” – Torres sussurrou.
“Não, parece bem real...” – Anônimo(a) estremeceu.
Os quatro continuaram andando pelo matagal, iluminando tudo e mais a frente, encontraram uma rocha redonda e polida, embaixo da rocha, havia outro pedaço de papel com a mesma grafia horrorosa e o sangue melequento:
“Eu não quero ser enterrado no cemitério de animais", traduziu novamente, já passando a pista para Santos reservar.
“Parece aquela música...” – Mori notou – “Aquela música dos Ramones... E tem o filme também, com o mesmo título.”
Torres concordou e anotou.
Foi então que Anônimo(a) se lembrou de um caso parecido em Outubro passado. Deveria ter se acostumado ao fato de que é só Outubro começar, que os trotes bizarros começavam, os adolescentes daquela região só sabiam tirar notas baixas e fazer a polícia perder tempo.
Daquela vez, no ano passado, encontraram uma “obra de arte” atrás de um frigorífico, se tratava de uma cabeça de javali costurada a um espantalho, só que dentro da boca do javali, havia um papel com uma mensagem que dizia: “Só temos certeza do fim absoluto”.
Por fim, nem descobriram quem havia sido, como sempre, parecia que nenhum lugar naquele fim de mundo possuía câmera de segurança, com o tempo, deixaram para lá, apesar do vídeo ter vazado e ganhado certa fama na internet, no final, a Polícia Ambiental cuidou do caso.
Mas algo fervilhava na cabeça de Anônimo(a), dizendo que este caso de agora, tinha algo a ver com o de antes.
De repente, o celular de Anônimo(a) começa a tocar.
Era Amaral, um dos agentes que ficou na delegacia. Ele estava preocupado, pois disse que só naquele curto espaço de tempo, receberam exatas 67 ligações da mesma localidade, Rodovia M-768, no KM 180.
“Como assim?” – Anônimo(a) colocou a ligação no viva-voz para que os outros pudessem ouvir também.
“A maioria se tratava de barulhos de bicho, outras eram apenas respiração, outras apenas silêncio, mas em algumas delas, pudemos perceber um som estranho ao fundo... Vou colocar para vocês ouvirem”.
Os quatro se prepararam.
A gravação começou: “I don’t want to live my life again, I don’t want to be buried, in a pet sematery”, era a música, que ficou famosa há muitos anos atrás, essas duas frases tocavam bem baixo na ligação, em looping.
“Certo, encontramos um animal que provavelmente foi assassinado, de uma forma estranha, e encontramos uma arma branca e dois pedaços de papel que continham esta mesma frase, Amaral, pode ser um equívoco, mas vamos precisar de mais pessoal, mande duas viaturas”.
“Certo, boa sorte!”
Eles não se lembravam de haver um cemitério de animais por perto, muito menos de já terem visto algum na vida real, geralmente as pessoas só descartavam os corpinhos no lixo ou enterravam no quintal.
Os pensamentos de Anônimo(a) começaram a fervilhar, tentava de todos os ângulos encaixar tudo aquilo, parecia ser mesmo um trote selvagem, de uma molecada com a cabeça bem estragada, que assistiu o filme e ouviu a música, então fez a maldade com o gato de uma vizinha chata e agora estavam fazendo a polícia perder tempo.
Era só o que faltava.
Mas, era a resposta que mais fazia sentido, e por um momento se sentiu irresponsável por ter colocado três agentes importantes assim nas ruas, para nada.
Foi quando Anônimo(a) percebeu que estava sozinho, então olhou para frente e percebeu três luzes piscando no meio do matagal.
“Anônimo(a)! Corre aqui!” – Mori gritou.
Anônimo(a) saiu correndo como um soldadinho de chumbo, atravessou a rua, pulou por sobre o gato, seguiu o rastro de sangue até se encontrar com seus companheiros, e quando os encontrou, ficou boquiaberto com o que viu.
Era a mesma obra de arte do Outubro passado, ele não estava tão surpreso.
Entre as pernas do espantalho, havia uma vitrola riscada que tocava freneticamente apenas duas frases “I don’t want to live my life again. I don’t wanna be buried, in a pet sematery”, mas bem baixinho, quase imperceptível, como se fosse um sussurrar.
De repente, a gravação parou de tocar, como se o espantalho tivesse tomado um susto, um zunido across repercutiu com extrema força por toda a rodovia, de forma ensurdecedora.
E então, parou.
Após a voz horrenda ressoar pela rodovia, a cabeça de Javali simplesmente caiu do corpo do espantalho e saiu rolando pela grama, foi então que se revelou a verdade:
“Meu Deus do Céu!” – Santos gritou.
“É UM CORPO HUMANO!” – Mori surtou.
“SEM CABEÇA!” – Torres caiu para trás.
Prontamente Anônimo(a) telefonou para a delegacia, pedindo todos os reforços possíveis, eles estavam presenciando o começo de um mês macabro, mas eles não sabiam disso ainda.
De acordo com o plano deste grande artista macabro, aquela delegacia de polícia e todo o país estavam prestes a descobrir que só existe uma certeza: A certeza de que nada precisa fazer total sentido, para ser assombrosamente real.
Algumas perguntas agora ressoavam entre o caos: onde a cabeça humana foi parar?