Passar noites no meio da floresta definitivamente não estava entre minhas atividades favoritas. Por mais que os sons tranquilos me agradassem, o restante era demasiado trabalhoso e esquisito ao meu ver.
Mas todo o desconforto teria me sido suficiente se os acontecimentos de uma noite em específico não fossem parte de minha aventura. Eu estava já há dois dias vivendo a base de comidas prontas e repelentes de citronela, havia preparado a barraca que me abrigava da maneira mais aconchegante que podia com cobertores grossos e pequenos travesseiros, os grilos cantavam do lado de fora e não demorou muito para que eu dormisse profundamente para acordar com o zíper da barraca sendo aberto de maneira brusca, e a pequena porta de tecido ser abaixada, levando consigo todo o possível bom humor que eu poderia ter.
– Levante-se! Não vai querer perder isso! – disse meu irmão entusiasmado, ignorando minha feição raivosa e sonolenta.
Decidi então sair para ver o que era de tamanha importância, a noite estava em suas horas mais escuras e a fogueira que havíamos feito já estava apagada, crepitando lentamente como se desse seus últimos suspiros. A única luz que me restara foi a da lua, prateada e sombria, me colocando em uma paleta de cores azulada demais para meu gosto. Logo à minha frente estava o inimigo de meu sono, encarando as árvores altas que nos cercavam como se procurasse algo.
– O que foi? – perguntei me aproximando e encarando o vazio.
– Shh! Ouça! Não podemos atrapalhá-los! – me respondeu colocando o dedo indicador em minha boca.
Abracei o silêncio noturno novamente e, involuntariamente, senti que minha adrenalina começou a disparar em meu corpo. Longe, mas não tão longe, pude ouvir passos rápidos, como uma corrida que não soube identificar de onde vinha mas sabia que se aproximavam. Meu coração já batia alto o suficiente para ouvi-lo ressoar quando um vulto azulado passou por meu lado esquerdo, seguido por um grito agudo que surgiu em minha frente.
Agarrei o braço de meu irmão com medo do que a ameaça poderia ser e notei que os passos não haviam parado, seja lá o que fosse, estava em bando, em um grande bando. Me custou muita coragem para virar-me para onde o primeiro vulto havia surgido e, quando o fiz, minha mente passou a processar todos os acontecimentos em câmera lenta. Eu esperava uma alcateia de lobos famintos, cavaleiros de ossos, cães do inferno ou até mesmo faunos correndo atrás de mim naquela floresta, mas o que vi foi realmente uma surpresa. Pessoas diversas corriam pela floresta em direção ao norte, completamente nuas e azuladas pela luz do luar. Os olhos brilhantes passavam por nós mas não nos enxergavam, era como se seu objetivo já estivesse totalmente definido e nós fossemos apenas objetos no caminho.
– Demorou muito para que chegássemos aqui – ouvi meu irmão sussurrar, caminhando lentamente na mesma direção que as pessoas corriam. – Finalmente conseguimos!
– Conseguimos o que? – perguntei, o seguindo em direção às árvores. – O que está acontecendo
Quando cheguei no que parecia ser um pequeno barranco, franzi o cenho e tentei processar tudo o que estava vendo. Mais a frente não havia árvores, era um campo gramado vazio, banhado de prata com dezenas de pessoas indo em direção a uma específica, que corria com toda sua fúria mas não estava em seu melhor dia, pois logo foi alcançada. O homem teve suas pernas puxadas para baixo e, pouco tempo depois, estava deitado no chão com várias pessoas ao seu redor, tocando-o onde conseguiam.
– Não achei que chegaria a tempo – disse meu irmão com os olhos tão brilhantes quanto os dos estranhos.
– A tempo do que? – perguntei temendo o que viria como resposta.
– A caça.
Assim que terminou a última sílaba um grito agonizante surgiu no meio do campo. Minha cabeça, ainda em câmera lenta, virou em direção ao som e pude agradecer aos meus bons graus de miopia e astigmatismo por não estar enxergando tudo de maneira nítida. Mas ainda assim, podia assistir o homem ser dilacerado aos poucos pelas unhas e pelos dentes das pessoas famintas. O sangue vivo se destacava em meio ao prata e escorria com veemência por entre os dedos, descendo pelos antebraços, correndo da boca até o peito dos caçadores até que não sobrasse mais nada além da ossada do que naquele mesmo dia, havia sido um homem.