“Eu nunca fui realmente insano, exceto em ocasiões em que meu coração foi tocado”.
- Edgar Allan Poe
“Contrariando todas as expectativas, a apresentação teatral ‘A Mortis’ fará a sua segunda exibição nesse ano. Conhecidos por realizarem a apresentação apenas uma vez ao ano, com o rosto sempre coberto por máscaras similares aqueles usadas durante a peste bubônica, além da troca constante de atores, ‘A Mortis’ fará uma apresentação surpresa e gratuita às 22h00. O que podemos esperar dessa exibição? Chegue cedo e garanta o seu lugar próximo ao palco”.
Desligo o rádio e um sorriso satisfeito escapa dos meus lábios. O teatro surgiu na Grécia de forma inusitada, Téspis o criou através do “faz-de-conta”, mas é ainda mais interessante quando tudo pode se tornar real.
Shakespeare fez grandes peças teatrais. Contendo tragédias, mortes e romance, mas que ainda assim não passam de mera ficção. O grande erro dos escritores de teatros é esse: a fantasia. As emoções, os sentimentos se tornam mais reais se as pessoas realmente se sentem assim. E por que não revolucionar?
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Ao pisar no palco sinto o peso do meu corpo afundar a madeira gasta pelos sapatos que já pisaram ali, o ranger das tábuas, a iluminação fraca e a frieza do ambiente faz tudo ser propício para o que vai acontecer. Olho para os assentos da plateia e imagino as suas expressões: medo, estranheza, fascínio. As bocas abertas, os sustos, a gritaria e por fim os aplausos como deve ser.
A história da minha peça é simples, um homem mata a sua primeira vítima e ao se deleitar diante essa sensação decidi repeti-la, não apenas uma vez, mas várias. Não há ensaios, pois não existem diálogos. Além disso, a base do teatro deve ser o improviso.
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Coloco a minha máscara assim como os outros atores, todos estão ansiosos, afinal de contas essas pessoas foram escolhidas por mim quando foram rejeitadas pela sociedade, vieram de outros lugares para serem aplaudidas ao menos uma vez na vida, ainda que seja a última. E que se inicie o espetáculo.
A foice afiada em minha mão transpassa a primeira vítima, a sensação é de êxtase, mas não me satisfaço apenas com uma morte. Eu internalizo o personagem. No palco, os atores olham em choque um para o outro, tudo parece real, não havia sangue artificial embaixo de suas roupas, mas como não há roteiro eles apenas continuam. Após a sua quinta vítima resta apenas uma.
A plateia está frenética, no início estavam torcendo pelos corpos que estão agora no palco, imóveis e provavelmente sem vida, mas agora estão do lado do assassino. São ótimos atores, eu ouço alguém no mesmo instante que a lâmina da foice toca o pescoço da última vítima que engasgada como o sangue rasteja até a margem do palco e tenta gritar por ajuda. Ela estende a sua mão e alguém da plateia ri e fingi tentar segurá-la, mas o momento sublime é quando a foice atinge o corpo da mulher e a arrasta de volta para o centro do palco, criando um rastro de sangue.
E nesse momento a plateia levanta e ouço os aplausos e admiração do público chegar até a mim. Olho para os corpos no chão e reverencio o público, afinal de contas o espetáculo não pode parar. Mas e você? Quer ser a minha plateia ou o meu ator?