Catástrofe à primeira vista: esta seria a definição ideal para o encontro inicial daquele moreno alto, careca, de porte atlético, distintas roupas escuras e expressão facial austera com a infante de pele clara, cabelos azulados e um tecido qualquer a lhe encobrir o diminuto corpo febril, que emitia um brilho enegrecido e sobrenatural devido ao envenenamento místico que as suas ex cuidadoras lhe impuseram antes de abandoná-la às margens de um lago agora congelado em uma distante floresta do Inferno.
Inicialmente e por muitos anos depois, Diablair não compreendeu o porquê daquele surto que a jovial Deusa que o acompanhava teve antes e durante a interação com aquela menininha. Contudo, ele próprio fora vítima de um quando subitamente a jovem de longos cabelos castanhos apanhou a infante do chão e com seu belo, intenso e profundo olhar, encarou o Líder Infernal enquanto caminhava lentamente em sua direção com os braços estendidos com a menina revolta nas mãos, seu singelo vestido branco parecendo pairar sobre seu corpo sutilmente delgado ao mover-se com uma certa urgência enquanto ela pronunciava frases que ele mal escutou.
Na medida em que recuava tal qual um endemoniado ao ser confrontado por um símbolo sacro empunhado por uma pessoa verdadeiramente devota, o homem de pele escura sentia gotas de suor gélido escorrendo do topo da cabeça, palavras como “Flávia", “Imperatriz do Massacre" e “cuidar" se perdendo no tumulto mental que se instaurava paralelamente no íntimo dele.
Havia outra voz tomando... Não, literalmente arrancando a sua atenção naquele momento: a sensação durante cada palavra dita por aquele timbre gutural e malevolente era como o esguichar de sangue e pus ao eclodir das bolhas de um leproso, mas dentro de sua cabeça, arrepiando dolorosamente sua pele. Um súbito mal estar tomou conta do Líder Infernal, como se alguém despejasse um balde de vômito e carniça na sua alma e usasse uma clava cheia de espinhos para agitar a pútrida mistura da forma mais tortuosa possível.
“Oh, Satã... Eis uma cena digna de minha atenção! Acaso isso não traz algumas memórias bem interessantes, monte de fezes?”
O homem olhava para a criança enferma e a imagem da Deusa com ela nos braços enquanto continuava a falar se misturava com uma outra cena de um passado distante, algo que definitivamente ele não queria recordar. Subitamente a floresta pareceu maior, mais sinistra e muito mais opressora, seu vento frio soprando como uma lamúria agourento entre ambos na medida em que a mulher avançava e o rapaz recuava passos após passo como que aterrorizado. A voz intrusa continuou em um tom acusatório, todavia malicioso, quase provocativo, apesar da maldade nem um pouco oculta:
“Já sei: está tendo uma crise de consciência... Ou seria de abstinência? Vamos lá, mostre para ela como você lida com crianças sendo oferecidas a você enquanto lhe clamam por algo, seu maldito Doente! E, como da outra vez, não poderá culpar a mim por isso! Vamos, faça! É o que você quer! É o que você gosta! FAÇA!”
O leve impacto de suas costas no tronco retorcido de uma árvore libertou um trêmulo Diablair de seu estupor. Àquela distância, podia ouvir nitidamente os grunhidos da menininha, que remexia o corpo sofridamente devido ao tormento venenoso que se seguia dentro dela, absolutamete alheia ao que ocorria ao seu redor. Em um ato de pura força de vontade e absoluta negação perante os pedidos e acusações de seu inquisidor mental, Diablair relutantemente apanhou a criança no colo, exclamando por fim um inaudível “não" enquanto segurava a enfeitiçada menina, que não aparentava ter mais de três anos.
Por um momento que pareceu durar dez anos encarou a pequenina, passado e presente se digladiando em seu íntimo juntamente com o vociferar infecto que sua cabeça até que, tão rápido quanto surgiu, aquela coisa miserável regressou para os cantos mais ocultos e sombrios do âmago do Líder Infernal.
O ambiente imediatamente pareceu voltar ao normal na medida em que o homem negro permanecia visivelmente incômodo com o fato de estar segurando aquela infante. Com o olhar estreitado e o cenho franzido, avaliava as condições físicas e espirituais dela, constatando que ela era bem mais forte do que aparentava, pois de algum modo os efeitos letais do veneno mágico não estava só sendo retardados, como também de algum modo combatidos. Não da maneira mais eficaz, evidentemente, todavia era surpreendente que ela ainda estivesse viva com aquela quantidade massiva de peçonha arcaha em suas veias. Havia poder naquela criança, algo bruto, intenso e caótico que desafiava o entendimento do homem que a segurava sem lá muito cuidado.
Ela de fato seria única em mais de um aspecto se vivesse o suficiente e com o cuidado e o treinamento adequados. Aquelas tais fadas foram tolas em confiar somente no envenenamento para ceifar-lhe a vida: se queriam a morte da menina elas deveriam ter... A simples menção de imaginar algo tão hediondo fez Diablair balançar a cabeça, tinha de afastar tais pensamentos (ou melhor, lembranças) e se concentrar no presente.
Foi só então que se dera conta que a sua mais nova aliada havia desaparecido da floresta como se nunca tivera existido antes, deixando o surpreendido e colérico homem negro literalmente com uma bomba nas mãos. Amaldiçoando veementemente seiscentas e sessenta e seis vezes o nome da Deusa, seu primeiro impulso foi deixar a pequenina exatamente onde a encontraram. Mas, se fizesse isso, estaria provando que aquela coisa abominável dentro de si tinha razão e que no fundo, ele continuava sendo sua velha e odiosa versão.
Contudo, ele não podia ou sequer queria cuidar de uma menina com a qual não tinha absolutamente nenhum Vínculo ou obrigação. Por toda a penúria do Inferno, quem a Divina Brina pensava que era para pedir algo tão súbito e insano justo para ele e ainda mais em um momento tão crítico quanto o regresso daquela monstruosidade dentro de si?!
A criança visivelmente ainda sofria mal amparada pelo Líder Infernal conforme uma saída para tal impasse repentinamente surgia na mente de seu improvável benfeitor; conforme Diablair rumava velozmente floresta adentro carregando seu mais novo fardo em um dos braços enquanto com a mão livre fazia uma sequência de sinais, seu sombrio poder místico fazendo com que cada gesto deixasse rastros ígneos no ar até que se completasse a magia. Então, com uma voz dotada de autoridade e visualizando uma certa pessoa em sua mente, Diablair exclamou:
- Ek roep jou. Kom sonder versiun na mae toe.*
Tão logo o feitiço se completou com um estalo similar ao de vidro quebrando, Diablair sentiu um dos instintos assassinos mais intensos de toda a sua existência até então, cerca de um segundo antes de sua face morena ser alvo da brutalmente célere investida de duas diminutas hastes metálicas, cada qual prestes a golpear uma de suas têmporas!
Se não fosse por seu mais que extenso histórico de batalhas, certamente ele não teria adquirido a rapidez e discernimento necessários para mover o pescoço para trás de modo a evitar a dupla perfuração a tempo. O golpe foi tão colérico e sincronizado que a ponta de ambas as lâminas se chocaram, resultando em um silvo breve e agudo que ecoou mata adentro ao parcialmente trincarem. Só então o Líder Infernal percebeu que quem lhe atacou foi a garotinha em seu colo, que prontamente foi largada enquanto tornava a atacar o homem, desta vez tentando lacerar verticalmente o tronco daquele misterioso alvo agora marginalmente fora do alcance das suas armas brancas.
A pequena Flávia caiu com sobre um dos joelhos sobre o manto que a encobria, empunhando duas facas com afiadíssimas lâminas, ambas um pouco maiores do que o tamanho considerado adequado para alguém de sua estatura. Com as íris tomadas por uma luminescência carmesim e sua cabeleira que agora adquiria um tom azulado bem mais escurecido encobrindo boa parte de seu rosto enfurecido, a criança de olhos frenéticos fitava o olhar surpreso do Líder Infernal com um misto de delírio e psicopatia conforme uma baba densa, espumosa e enegrecida vazava em profusão pelo canto de seus lábios.
Enquanto se erguia em meio a espasmos musculares violentos, a menina nua ajeitava como podia sua postura, girando as facas entre os dedos como se aquilo fosse mais que natural para ela. Diablair observava incrédulo como a dita Imperatriz do Massacre manejava aquelas coisas ao prosseguir se pondo o mais pronta que podia para retomar o ataque.
- Matar... Você também... Magia... Machuca! – exclamou a infante com um timbre revoltado, confuso e perturbador, se esforçando para manter-se de pé. – Facas... Você! MORRE! - Flávia bradou a plenos pulmões.
O que seria o princípio de uma emanação de energia começou a fluir da menina para as facas, mas parece que aquilo causou alguma espécie de reação adversa em sua musculatura graças ao veneno feérico, o que fez a menina soltar um grito medonho e colapsar com as suas armas ainda em punho, cortando-se enquanto convulsionava.
Sem entender nada, o homem negro saltou sobre a menina e lhe imobilizou como podia, segurando seus pulsos e sentando sobre suas pernas. A infante gritava em uma linguagem feroz e desordenada, seu pequeno corpo lutando sem controle algum tanto contra o veneno quanto contra o estranho que lhe limitava tenazmente os movimentos. Por fim, as facas se desintegraram e ela desfaleceu de vez. Ainda respirava com extrema dificuldade quando Diablair a libertou e, certificando-se de que ela estava inconsciente, recobriu de imediato o corpo desnudo da criança e tornou a apanhá-la para depois correr novamente rumo ao interior da floresta.
Conforme avançava pela densa vegetação e ambos desapareciam no interior dela rumo a um local mais adequado para a sequência de seus imediatos intentos, tudo o que Diablair conseguiu dizer foi um sonoro “Em nome de tudo o que é mais profano... Mas que PORRA foi essa?!”.
“...”
A partir daquele inusitado evento, as insidiosas engrenagens da devastação e da tragédia que uniria o destino daquelas duas peculiares figuras nunca mais pararia de girar até que tudo se consumasse da maneira mais terrível possível...