Parte 01: Primeiro Encontro
— Quem é você?! Como entrou na minha casa?
— Calma, mocinha…
— Não me chame de mocinha!
— Perdoe minha invasão. Eu posso explicar! Mas antes, preciso fazer uma pergunta; dependendo da sua resposta, minha explicação será compreendida rapidamente. Por acaso… você sabe que está morta?
— Claro! Como eu poderia não saber?
— Ufa! Que ótima notícia! Tentei conversar com outros espíritos que ainda não aceitaram que estão mortos; você não faz ideia de como é difícil dialogar com eles; são tão histéricos!
— Pobres coitados. Você fala como se não tivesse surtado também quando descobriu que estava morto.
— Claro que surtei, mas, quando eu realmente entendi que eu estava morto, não tive outra opção a não ser aceitar a situação. Gritar não me faria levantar do caixão e ter minha vida de volta.
— Ok! Chega de papo furado e me diz como você entrou na minha casa!
— Ex-casa…
— Tanto faz! Se você conseguiu entrar, significa que eu posso sair, mas até hoje, e já faz dois anos, eu não consigo atravessar essas paredes. Eu não entendo como é que eu posso tocar o solo mas não posso tocar os objetos; posso atravessar as paredes de dentro da casa, mas por algum motivo, não posso atravessar as paredes que dão acesso ao lado de fora. O que significa tudo isso?
— Tudo bem! Tenha calma e preste muita atenção. Enquanto você estava viva, você era casada com Marlon, certo? Agora, me acompanhe até a janela e olhe lá fora. Está vendo aquela linda mulher ajudando Marlon a descarregar as malas do carro? Ela se chama Milena, e ela era minha esposa. Já faz alguns meses que Milena, minha ex-esposa, está namorando Marlon, seu ex-marido. Não é engraçado? Você e eu, mortos, transformados em espíritos, presos aos nossos antigos amores que continuam vivos. Minha esposa com o seu marido; que hilário… Ei! Você está bem? Perdoe o meu tom de sarcasmo.
— Quer dizer que a vida após a morte é assim? Serei uma eterna voyeur presa nessa casa observando meu ex-marido com outra? Eu não sabia que Marlon estava envolvido em um novo relacionamento.
— Está, e já faz alguns meses, e eu sofri muito quando descobri; nunca imaginei que Milena pudesse amar outro homem além de mim. Mas, é muito melhor vê-la assim, feliz, do que vê-la destruída, lamentando a minha morte.
— Não sei se posso suportar isso. Eu cogitei a morte de Marlon todos os dias, na esperança de que pudéssemos ficar juntos novamente, e entendo que é errado eu pensar assim. Foi tão difícil quando entendi que eu estava morta, e agora, preciso juntar forças novamente para encarar isso. Uma das piores coisas no pós-vida é que o nosso corpo morre, mas os sentimentos continuam conosco; o medo, a tristeza, a dor no peito que nos assola, exatamente igual a dor que sinto nesse exato momento; esses sentimentos poderiam desaparecer; não é justo sofrermos em vida para depois continuarmos sofrendo na morte. Sinto tanta falta do Marlon. Como você encara isso? Você não sente ciúme?
— Eu senti, sim, muito ciúme quando Marlon começou a frequentar nosso apartamento; eu tentava fugir daquele lugar, mas, assim como você, eu não podia; eu estava preso. Eu não suportava ouvir os suspiros de Milena enquanto eles se beijavam; eu não suportava ouvir sua encantadora gargalhada quando Marlon contava alguma piada, sabendo que ela poderia estar rindo das minhas piadas caso eu ainda estivesse vivo; o que dizer então das noites sem fim em que os seus gemidos ecoavam por todos os cômodos; eu desejava morrer, mesmo sabendo que eu já estava morto, mas, eu adoraria poder morrer novamente e desaparecer. Eu gritava o mais alto que eu podia, confiante de que Milena pudesse me ouvir; tentei fazer todo tipo de contato com ela; enlouqueci ao ponto de me inspirar no filme Ghost, e sei que pode parecer idiotice mas, por muito tempo, tentei mover objetos, como acontecia no filme, na esperança de que um dia eu pudesse fazer contato com Milena. Não custava nada tentar; meu sofrimento era tão… do que você está rindo?
— Perdão… Ah! Ah! Ah!... eu só não consigo parar de imaginar você tentando chutar latinhas igual ao Patrick Swayze!
— Muito engraçado! Estou me abrindo para você enquanto você ri da minha cara… Ah! Ah! Ah!... é, você tem razão, eu fui muito idiota… Ah! Ah! Ah!... agora eu estou envergonhado de ter contado isso.
— Eu agradeço por dividir isso comigo; faz muito tempo que não dou uma gargalhada. A propósito, prazer, me chamo…
— … Lygia! Eu já sei o seu nome. Eu sou o Edgar. Ouvi coisas boas a seu respeito. Marlon e Milena tinham longas conversas no início do namoro e falavam muito de nós; confesso que sempre tive curiosidade em conhecer você, claro, se por um acaso você também fosse um espírito como eu, e fico feliz em descobrir que você é.
— Legal! Confesso que estou gostando da ideia de ter companhia. Mas, ainda estou curiosa; como é que você saiu do seu apartamento e veio parar aqui na minha casa?
— Existe uma teoria. Conheci o espírito de um velho que vivia no apartamento ao lado do nosso. Nunca nos vimos, mas, da parede da cozinha, eu podia conversar com ele, aos berros. Ele faleceu há muito tempo e era muito apegado a sua coleção de livros. O velho acreditava que o seu espírito permaneceria preso naquela sala até o dia em que ele pudesse desapegar de tudo aquilo, e assim, deixaria de vez esse mundo e descobriria o que realmente nos espera após a morte. Sua teoria era essa; se em vida fomos muito apegados a algo ou alguém, no pós-vida, nosso espírito permanecerá preso a isso. Ele amava sua coleção, e graças ao seu neto, que herdou seu apartamento com todos aqueles livros, o velhinho, mesmo após a morte, continua apreciando a leitura junto do neto que senta na antiga poltrona do avô e lê por horas. No meu caso, o fato do meu amor por Milena ser tão intenso, ficarei preso a ela, e para onde ela for, meu espírito a acompanhará. O lar de Milena se torna o meu lar também, enquanto eu continuar alimentando meu amor por ela. E, já que a partir de hoje Milena se muda para esta casa, tá explicado o motivo de eu estar aqui.
— Então, se a teoria estiver correta, significa que estou presa ao Marlon, pois o meu amor por ele continua firme e forte, é isso? Bom, nesse caso, seja bem-vindo ao seu novo lar.
Parte 02: Beijos Paralelos (9 Meses Depois)
— Edgar? Edgar? Finalmente encontrei você. Depressa! Venha ver o que o Marlon esqueceu no corredor!
— Estou indo, estou indo. Por que toda essa pressa?
— Veja!
— Uma lata de cerveja? O que tem de tão especial para você estar tão eufórica?
— Por favor, recrie aquela cena do filme Ghost? Aquela em que o Patrick Swayze tenta chutar a lata e cai de bunda no chão? Por favor?
— Ah! Ah! Você e suas ideias malucas… você está falando sério? … Ok, Ok; eu vou realizar seu desejo (é cada uma em que eu me meto).
— Posso ouvir você resmungar daqui!
— Lá vou eu; fique de olho! É um, é dois, e é três…
— Maravilhoso! Ficou idêntico! Ah! Ah! Ah!
— O que eu não faço por você?
— Além do filme Ghost, você conhece outro que a gente possa recriar alguma cena?
— Bem, eu acho interessante uma cena de um filme do Gaspar Noé.
— Noé, quem?
— Sério que você não viu nenhum filme dele? Então, a cena é assim; o protagonista morre, e a sua alma, assim como a nossa, fica vagando por aí. Tem uma parte que a alma do protagonista observa um casal transando no mundo dos vivos; então, ele ajusta sua alma ao corpo do homem que está em cima da mulher, e assim, observa as expressões dela durante o ato, como se ele estivesse envolvido com ela, e recorda como era ter relações sexuais quando era vivo.
— Isso é meio doentio, não? Tá explicado o porquê de eu não conhecer esse diretor.
— Sim, é estranho, mas, eu estava pensando; você não sente saudade de olhar nos olhos do Marlon e imaginar que ele está olhando para os seus? Eu sinto falta do jeito que Milena me olhava e pensei que poderíamos usar a ideia do filme, não a do sexo, mas aproveitar um momento em que Marlon e Milena estivessem juntos, se acariciando, olhando um nos olhos do outro, sorrindo, e assim, poderíamos nos conectar a eles, ajustando nosso espirito em seus corpos, eu no de Marlon e você no de Milena. Podemos sentir novamente como é estar com eles, frente a frente.
— Apesar de esquisito, soa interessante. Você tocaria em mim enquanto Marlon toca Milena; seria como se Marlon estivesse me tocando, certo?
— E você faria o mesmo. Podemos nos abraçar enquanto eles se abraçam; na real eu estaria abraçando você, mas se eu usar bem a imaginação, vou sentir que estou abraçando Milena.
(Horas Mais Tarde)
— Edgar! Eles estão deitados no tapete da sala. Vamos, depressa; não sabemos quanto tempo eles vão ficar ali.
***
— Certo, Edgar; vamos começar?
— Sim. Coloque sua cabeça só um pouco mais para trás, seu rosto está ofuscando o de Milena. Isso! Agora está perfeito.
— Uau! Que experiência incrível; o modo como Marlon olha para Milena é como se estivesse olhando nos meus olhos. Bem, acho que agora você pode tocar em meu rosto; veja como Marlon acaricia o rosto de Milena; você pode fazer igual? Isso! Assim! Nossa! Como é bom sentir isso de novo! Posso imitar Milena e tocar em você também?
— Sim, por favor. Que mão macia; como é possível mantê-la assim mesmo após a morte?
— Não sei, são tantos mistérios, só sei que eu ficaria aqui o dia todo. Edgar… acho que eles vão se beijar.
— Oh! Então eu acho que é melhor pararmos.
— Não! Espera.
— Você não acha melhor… Lygia? O que você está Fazen…
— Me perdoe, venho resistindo a isso há muito tempo, e sei que você também evita me beijar. Escuta bem, lá no fundo, eu ainda sinto algo por Marlon, mas aos poucos meu sentimento por ele diminui e penso cada vez mais em você; e sei que você sente o mesmo por mim. Eu observo o modo como você me olha, o interesse que você tem em saber do meu passado e de quais seriam meus planos para o futuro caso eu ainda estivesse viva. Meses atrás, quando eu ainda era obcecada por Marlon e não parava de observá-lo, eu notava que você sentia ciúme. Sei que você também sente algo por mim, mas por algum motivo, não demonstra.
— Você está certa. Meu amor por Milena diminuiu muito depois que te conheci. Esses meses foram muito especiais; nos conectamos de uma forma que não sei explicar; rimos, choramos, enlouquecemos, desabafamos. Apreciei cada momento ao seu lado. É como se… tivéssemos morrido um pro outro. Mas, infelizmente, não podemos nos envolver. Como eu poderia te explicar melhor? O único jeito de ficarmos juntos é não se amando.
— Como assim?
— Devemos continuar alimentando nosso amor por nossos ex. Se a teoria do velho estiver correta, tenho que amar Milena, assim como você deve amar o Marlon. Se nos desapegarmos deles, nosso espírito finalmente descansará em paz; deixaremos de vez esse mundo. Por isso, devo continuar amando Milena para poder continuar aqui com você.
— Mas, e se o velho estiver errado? Veja! Olhe para eles! É assim que você quer estar ao meu lado? Como um casal voyeur, telespectador do sexo alheio? Enquanto nossos ex vivem um romance, nós dois ficamos aqui negando nossos desejos lascivos. Você não quer estar comigo de verdade? Eu quero te tocar, te sentir, e sei que você também quer, mas para isso, devemos esquecer nossos antigos amores e apostar tudo no que estamos sentindo agora, mesmo sabendo que o futuro é incerto; se iremos continuar juntos, ou se vamos desaparecer para sempre, só saberemos após tentar. Vamos, Edgar; nem que essa seja a primeira e a última vez que ficamos realmente juntos; prefiro passar um único momento verdadeiro com você do que uma eternidade reprimindo meus verdadeiros sentimentos. Isso! Venha! Fique comigo.
(Semanas Depois)
— Chegou a hora, Edgar. Vamos atravessar essa parede e descobrir o que nos espera do lado de fora.
— Lygia, você não acha melhor ficarmos na casa? E se um de nós não conseguir atravessar?
— Vamos conseguir. Não vê que a teoria do velho estava errada? Estamos nos relacionando há algumas semanas e ainda continuamos aqui, juntos. Agora eu tenho certeza de que não amo mais o Marlon, e acredito que você também não ama Milena; sinto que agora podemos atravessar essa parede juntos. Não quero mais dividir esse espaço com eles; vamos descobrir de vez o que nos espera lá fora. Vamos! Segure bem firme minha mão e vamos correr em direção à parede. Preparado?... Agora!
— Lygia? Lygia? Onde você está? Está me ouvindo? Finalmente, ela conseguiu atravessar para o lado de fora, mas eu continuarei aqui nesta casa.
— Edgar? Onde estou? Que lugar é esse? Não enxergo nada! Edgar? Alguém pode me ouvir? Será que fui enganada? Será que ele não atravessou a parede junto comigo porque ainda ama Milena? Acho que ele me usou; conseguiu fazer com que eu me apaixonasse por ele e me fez esquecer do Marlon, tudo isso para me tirar da casa e ficar a sós observando Milena. Se for isso, a teoria do velho está correta e eu finalmente me livrei do Marlon, mas, Edgar continua na casa porque ainda ama Milena.
(Um Ano Mais Tarde)
— Hey! Você aí! O que está fazendo nesta casa?
— Edgar?
— Como sabe meu nome? Vamos, cara, me diga logo quem é você!
— Não nos conhecemos diretamente, mas sei que você está morto há mais tempo que eu; sabe como é, cidade pequena, ficamos sabendo de tudo. O motivo de eu estar aqui é que eu era o amante do Marlon, o cara que mora nessa casa…
— Como assim, você era amante do Marlon? Há quanto tempo Marlon se relaciona com você às escondidas?
— Já faz mais de cinco anos…
— Desgraçado! Como ele pôde fazer isso? Você sabia que enquanto ele se relacionava com você ele era casado com uma mulher chamada Lygia?
— Sim, eu sabia; ele já tinha me dito. Mas ainda não entendo porque você está tão nervoso. Ela era sua amiga? Você também conhecia o Marlon?
— Digamos que, sim, agora eu o conheço de verdade.
— Então me diga, o que você era do Marlon; um amigo? Um primo distante?
— Nada disso; assim como você, acabei de descobrir que eu não era o único amante do Marlon!