- Água sólida! – Ghier olhou para o irmão. Eles dividiam o corpo há séculos, mas não o entusiasmo – Lembra?!
Herig apanhou o cubo e o enfiou na boca. Esperei pelo berro de congelamento, e ele veio.
- Queima! – disse Herig, secretando fosfato ferroso. Ghier assoprava o irmão, e a temperatura subiu alguns graus.
Senti minha veste dilatar.
- Quando foi a última vez que tiveram contato com água? – perguntei.
- Oh... – as escamas no escalpo de Ghier se abriam, e o brilho prateado da epiderme desapareceu ao captar luz solar – Três mil e...
- Dois mil – Herig corrigiu, usando uma das mandíbulas para triturar uma pepita de cobalto – Dois mil oitocentos e vinte e dois. Octogésima-nona e última era glacial.
Levantou um pseudóculo para me encarar.
- Como não lembra? – levantou outro, que tocou minha veste. Senti a descarga elétrica – Ah, você não é daqui...
- Não ligue para ele – disse Ghier. – Memória ruim.
Observei o gelo recém transmatado sobre a gigantesca mesa mercuriana virar plasma.
- Sim, você avisou algumas vezes.
A veste materializou superfície quando me sentei. Vi as expressões de Ghier-Herig ficarem iguais.
- Quando os visitamos, pensaram que éramos...
- Dragões – sorri. – Lendas, mito. Percorremos um longo caminho desde então. E, agora...
- E agora, se “senta” em nossa casa para tomar café – disse Herig.
- Chá – brinquei, sugando o canudinho em meu visor.
- Mas não está realmente aqui.
Assenti: - Não.
Herig bufou hélio em brasa. Acompanhei a risada.
- Por que se tornaram um? – perguntei.
- Pensei que já tivesse ouvido essa história.
- Não seja grosso – Ghier retraiu as escamas e eriçou os pseudóculi. – Quando nos adaptamos, não havia mais por que ser um.
- Eram tantos... Escavamos muitas cidades aqui – mencionei.
Ghier dançava com os olhos, e a veste traduzia seu humor. Ele gostava de história.
- Ah, sim – disse. – Viemos de Laghon, com um dos últimos mares de sulfato e alumínio. Acredito que esteja vazia...
- ... há muito tempo – disse Herig.
Ajustei o termostato. Sentia frio.
Herig continuou.
- Quando chegamos na Terra...
- Apareceram – corrigi.
- ... queimamos. Ou congelamos. Devagar.
- E nós os contemos.
- E aparecemos na TV – Ghier lembrou.
- Sim – ampliei minha interface visual para eles. – Fizemos um alarde.
- Não sabiam nada.
- Não sabiam de nada – Ghier se eriçou. – Não há culpabilidade em ter medo.
Herig-Ghier arrastou-se até o topo de um vulcão. Eu acompanhava de longe, pensando em como dizer...
O mercuriano se banhou no óxido ferroso, meses depois emergindo.
- Estamos com um problema – eu disse, e Herig bufou, esticando pseudóculi e asas. Lava encobriu meu visor e escorreu.
- É aquele negócio dos terremotos?
- Não, Ghier. É nossa Lua.
- Nossa Luna... – disse Herig, recebendo um rosnado do parceiro.
- Mostre a nós – disse Ghier.
Estendi um braço.
O Campo Entrópico se formou sobre o vulcão, e a Terra e a Lua se fizeram de ferro, cobalto e platina sobre nós três. Tentei adicionar o que pude de verde e azul com cobre e chumbo, mas pouquíssimo alcançava o CEnt antes de se desfazer nos ventos solares.
- Sempre artistas – Herig grunhiu. Apontou para a Lua. – Adeus Luna...
- Adeus Luna. – repeti, acompanhando a linha que indicava a órbita do velho satélite a se expandir devagar.
- Oh... o que vocês fizeram agora? – Ghier lamentou, ao ver os mares de níquel retraírem a quase nada e continentes de ferro se abalarem em pedaços.
- Não sabemos – encarei o mercuriano duas vezes. – Ela simplesmente começou a acelerar.