Acordei de um pesadelo sem a certeza do que é real… daquilo que vivi. É que posso jurar que ontem à noite eu faleci. Minha respiração ofegante, o cobertor molhado de suor me diz que foi um sonho, mas parte de mim sabe que morri.
"Feitiço do tempo"
Lembro do filme estrelado por Bill Murray, mas meu nome... qual é o meu nome? Miguel Pacheco! Eu levanto apressado, saindo em busca de meu celular e após encontrar posso constatar no calendário que hoje é dia 29 de outubro, um sábado, não estou num looping temporal, ontem foi dia 28 de outubro... foi o dia que morri.
Peço desculpa ao leitor se quer que eu siga em frente com a história, mas preciso relembrar meus passos para ter certeza daquilo que vivi.
Acordei como sempre, no mesmo lugar que acordei hoje, minha casa quitada — como diria minha falecida avó — de dois andares numa rua nobre próximo ao beco do batman, uma sacada grande da qual passo as tardes de sábado relaxando, um quintal que cabem até dois carros. Sou o único negro com uma boa casa própria na região da Vila Madalena. Você até pode dizer que sou exemplo de como uma pessoa esforçada sempre consegue o que quer, mas se olhar em volta vai perceber que eu sou uma exceção e a exceção sempre reforça a existência de uma regra. Um escritor negro bem sucedido não é algo comum de se ver.
Entre tomar um café da manhã e me arrumar para a academia fui trocando mensagens com Isabel, pequenos flertes iniciais, um pouco de elogios "cordiais" sobre os dotes físicos que um admira no outro, uma conversa leve e gostosa só para sentir aquela leve pulsação entre minhas pernas. Somente o suficiente para mencionar o meu interesse em encontrá-la. Como resposta Isabel mencionou o lançamento de um livro que aconteceria numa livraria do Shopping Eldorado. Eu já havia recebido o convite e ignorei completamente, mas diante da possibilidade de me encontrar com ela lá, o evento tornou-se mais interessante. Confirmei minha presença e como resposta ela mandou uma foto somente de sua cintura pra baixo — "estarei com minha calcinha nova" — vestindo uma calcinha fio dental cujo suas duas bandas faziam questão de esconder. Como resposta mandei um "mal posso esperar para tirá-la de você… com a boca"
Assim terminamos a conversa e eu segui com o meu dia girando em torno da excitação de encontrar com Isabel… academia, uma visita rápida a uma biblioteca, uma passada no supermercado, em todos os lugares que eu ia abria espaço para várias possibilidades de uma cena de sexo em público caso estivesse na presença dela. Eu já estava imaginando um contexto para escrever um novo livro sobre todas aquelas criativas aventuras… devo dizer que estas lembranças me trazem certo constrangimento, é como se estivesse vendo uma presa saltando para seu acasalamento sem saber que está prestes a ser devorada.
Vesti um terno todo preto com uma gravata vermelha, a ideia era passar um pouco despercebido, mas eu simplesmente não tinha roupa para isso. Estava muito elegante. Tanto que quando cheguei lá senti as pessoas me olhando, alguns me reconheceram como "aquele escritor do afrofuturismo". A estreia do livro era de Wagner Tardis, um livro pedante sobre os melhores pontos turísticos de toda Europa — seguindo os critérios somente de seus gostos pessoais
Tava me sentindo muito deslocado, sempre me sentia assim nesses eventos, por mais que estivessem me recebendo bem… era algo que soava um pouco predatório, uma certa armadilha social em ser bem recebido enquanto engravatados ficavam de longe observando como você se comportava, se as pessoas realmente ficavam felizes com o seu autógrafo, quanto dinheiro havia entrado? Era o suficiente para fingir que somos íntimos ou somente…
Foi nesse momento de desconforto que fui resgatado pelas mãos de Isabel, que pareceram me envolver devagar e maliciosamente furtiva.
— Oi preto, tudo bem? — Um sorriso inocente escondendo a luxúria.
Isabel era uma esfinge para mim — decifra-me ou te devoro — um mistério com muitas perguntas da qual preferia a sensação de suspense e imprevisibilidade que ela trazia do que vontade de desvenda-lá. Uma mulher de 1,60, aparentemente mestiça, pois tem a pele branca, seu cabelo parece liso, mas a raiz de seu cabelo me diz que é crespa, também vive pintando seu cabelo de preto, mas alguns fios grisalhos sempre escapam. Com seus 47 anos bem experientes — dava pra perceber do jeito que me tocava — mas que gostava de fingir a inexperiência de alguém que está descobrindo o mundo das brincadeiras maliciosas… sempre perguntando algo como "o que quis dizer quando disse que ia me comer?" ou "estou fazendo direito?" — quando era óbvio pelos meus gemidos — me torturava parando e somente continuava quando eu respondia bem alto "sim, Isabel, continue!".
— Chegou um pouco atrasado, a sessão de autógrafos já começou — ela dizia enquanto segurava meu pênis já ereto por cima da calça — o que foi? Parece que está tenso.
Dizia com uma naturalidade perturbadora e, o mais absurdo é que apesar de estarmos rodeados de pessoas, nenhuma delas percebia o que Isabel estava fazendo… ou pelo menos fingiam não perceber, não era como se eu pudesse prestar atenção no que estava acontecendo. A tortura continuou por mais alguns minutos, onde casualmente Isabel oscilava entre me afastar cada vez mais da multidão e me provocar de maneiras bem criativas — não posso negar que estava adorando a brincadeira, ela me deixava louco de tesão e apreensivo ao mesmo tempo.
— Isabel! Venha aqui, meu amor.
Então Wagner Tardis veio apressado em nossa direção, Isabel logo se afastou de mim e foi de encontro com ele dando um selinho e o abraçando… a propósito, o nome dela é Isabel Tardis, esposa do escritor Wagner Tardis.
— Ola, Sales… certo? — me cumprimentou, mas não me enxergou, caso contrário teria percebido minha ereção por baixo do tecido da calça social. — amor preciso que conheça alguns figurões da editora.
E assim a levou para longe de mim sem perceber que ela não estava afim de conhecê-los. Fui recuperando a compostura diante da maneira que ela havia me deixado quando recebo no whatsapp uma mensagem dela dizendo para encontrar com ela na praça de alimentação, próximo ao estacionamento… não fiz muita questão de fazer cerimônia, somente devolvi a taça de champagne e andei até o local combinado.
Antes que me critique, saiba que eu conheci Isabel em uma das reuniões com a editora, naquela época eu não sabia que era casada e ela não fez questão de me contar. Somente começou a flertar comigo após eu sair da reunião. Continuamos aumentando o nível de provocação do flerte enquanto conversávamos na rua e depois, quando dei por mim, estava metendo nela, na mesa oval da suíte 34, motel belamor. Só fui saber seu nome depois que estávamos nos vestindo. A maneira como nos conhecemos foi um tanto quanto atípica, então demorou mais uns 4 encontros para que ela me contasse que seu marido era Wagner Tardis, escritor e sócio da editora da qual eu tenho contrato. Não foi como se a descoberta mudasse alguma coisa, o nosso tesão já estava muito consolidado para deixar esse "pequeno detalhe" atrapalhar.
Quando cheguei no lugar combinado encontrei alguém que a muito tempo não via.
— E aí primo, quase não te reconheci nessas roupas chiques.
Thiago, também conhecido pelo apelido étnico Zulu, um primo meu, éramos muito chegados, mas tínhamos interesses diferentes: eu queria sair da comunidade e achar um lugar melhor para viver... ele decidiu permanecer. Não nos víamos desde a adolescência. Chegou me cumprimentando como se tivesse me visto ontem e eu? Bom, reagi como qualquer sujeito que se sente bem sucedido agiria: cumprimentei com hesitação esperando somente que dissesse o que veio dizer e logo se retirasse.
— Era para encontrar com um bacana por aqui, resolver uns trampos com um playboy, pegar meu dinheiro e sair vazando… mas o cabra tá demorando pra chegar.
— legal, faz tempo que não nos vemos… está trabalhando no shopping? — perguntei tentando parecer mais amigável.
— não é carteira registrada, tá mais pra um freela, fazendo o trampo pesado que ninguém mais quer fazer hoje em dia, sabe?
Fiz que sim sem me importar muito com o trampo do qual ele estava falando. Não estava interessado, pra falar a verdade estava um pouco preocupado em ele me ver com Isabel. Não é como se ele fosse saber de cara que ela já era comprometida, mas era algo que me incomodava… eram muitas variáveis acontecendo ao mesmo tempo.
— Agora sim, sentiu saudade?
A mão na minha nuca, a outra em meu peito, Isabel chegou dando um dos beijos mais lascivos que já tivemos. Qualquer possibilidade de discrição foi quebrada naquele momento. Mesmo que eu quisesse me desvencilhar não conseguiria. Tudo que ela fazia tinha um toque sedutor impossível de resistir. Demorei o tempo que ela quisesse demorar, com as mãos tocando todos os lugares que pudessem alcançar. Sem importar com quem pudesse olhar… a poucos metros de distância de seu marido, era uma surpresa tanto não termos sido descobertos quanto não sermos presos por atentado ao pudor.
Ela se afastou um pouco me deixando me recompor. Respirei fundo para retomar um pouco do controle. Olhei para meu primo e este sorria com certa malícia para nós.
— Isabel… este é meu primo… o…
— Pode me chamar de Zulu — apertou a mão dela ainda carregando malícia no sorriso — muito prazer.
Ela assentiu um pouco sem graça por toda a situação. Ele pegou o celular, olhou algo pelo whatsapp do qual eu quis respeitar e não olhei - devia ter olhado.
— me diz uma coisa, primo. Você conhece um tal de Zugbu?
Eu não entendi muito bem a pergunta, Zulu costumava fazer piadas da qual eu não compreendia na hora. Imaginei que fosse algum trocadilho com o seu apelido.
— Esse nome é familiar…
Achei que ele me explicaria algo, mas somente alargou ainda mais seu sorriso malicioso, se despediu e saiu sem olhar para trás. Minha mente devia ter funcionado mais rápido, devia ter percebido o comportamento estranho dele, mas estava com a minha cabeça no sexo.
Me voltei para Isabel abraçando-a por trás e ela foi bem receptiva, recomeçamos as carícias, mas foi aí que tudo aconteceu… tudo muito rápido.
Ouvi tiros e correria. Pessoas descendo a escada rolante, pessoas tropeçando, desesperadas. Mais dois tiros, mais próximos... mandei Isabel seguir por uma escadaria de emergência bem próxima, assim que ela seguiu pensei em correr para a outra escadaria, que estava um pouco mais longe, meu raciocínio? Bom que talvez o marido dela fosse alguém perigoso e tivesse descoberto. Como alguém não descobriria?
Antes que eu pudesse correr fui rendido por dois homens negros encapuzados, falavam rápido e enrolado, uma língua que eu não conhecia. Haviam outras pessoas sendo rendidas por outros bandidos armados. Me veio na cabeça que era um arrastão ou algo parecido, que era só dar o que eles queriam e tudo acabaria bem. Tirei minha carteira do bolso, levantei minhas mãos segurando-a, mas eles não a pegaram, só gritaram e fizeram gestos para que eu me virasse, eu me virei, um deles deu risada, um som de tiro bem alto seguido de uma pancada forte na nuca e a partir daí toda a minha percepção dos acontecimentos mudou.
Senti um líquido quente escorrer pelo meu rosto, senti que estava caindo no chão, em câmera lenta. Eu uso o verbo "sentir" pois após a pancada ficou tudo escuro. Até o baque no chão foi sentido não com dor, mas como uma semi dormência seguido de uma onda de formigamento por todo o meu corpo, começando pelo meu joelho subindo por todo o meu corpo e parando em meu rosto. Quando este último atingiu o chão minha percepção mudou de novo.
Uma imagem estática de uma estrada de pedra suspensa por cima de uma floresta me veio à mente seguido por 4 notas de um piano, uma das notas sempre falhando, parecia o começo de uma música que rodava em looping. Não pensei que fosse o paraíso pois não me movia e não conseguia olhar em volta, imaginei que fosse traços da minha memória, talvez minha mente estivesse falhando. A imagem foi escurecendo e as notas de piano falhando e se atrapalhando, percebi que estava morrendo, que aquilo era a minha mente se apagando de vez. Me agarrei na vontade de ficar vivo, a consciência de me manter vivo até que eu fosse socorrido… mas não deu.
A imagem se apagou.
As notas que só estavam falhando, cessaram.
Não havia luz no fim do túnel.
Não havia paraíso, nem inferno.
Até minha consciência se calou…
…
…
…
E assim acordei hoje, com a certeza que morri ontem.